1. A justiça brasileira confirmou a injustiça brasileira. O “julgamento” de Lula da Silva, anteontem, não foi uma derrota para ele, nem para o Partido dos Trabalhadores (PT). Foi um golpe contra 200 milhões de pessoas, um país. E, como esse país é o Brasil, milagre da invenção humana, foi também um golpe, mais um, contra quem acredita que o mundo possa ser um lugar um pouco menos terrível.
Em 2016, o poder executivo (Dilma Rousseff) foi derrubado pelo poder legislativo (Congresso) com argumentos patéticos. Agora o judiciário derruba-se a si mesmo, num julgamento pré-cozinhado, sem prova de crime que se veja, sem crime que se entenda, com procedimentos bizarros, desfecho anunciado à partida, sentença agravada de modo a afastar Lula por mais anos, e uma infindável lista de bandidos no poder não condenados.
Que resta à democracia? Votar para mudar este sistema, sim, votar por outros ocupantes do legislativo, do executivo, com certeza. Mas para já, e abrindo caminho a isso, sair para a rua. Em Agosto começa a campanha eleitoral, em Outubro são as presidenciais. Até lá, a diferença viria de milhões de brasileiros, dezenas de milhões de brasileiros encherem as ruas como nunca antes na história desse país. Não só antes e depois do carnaval, mas fazendo do próprio carnaval um grande basta.
2. Se eu votasse no Brasil, não votaria PT. O PT fez muito que não devia, e não fez muito que devia. Eu votaria à esquerda do PT, mas lutaria sempre para que o candidato do PT pudesse ser candidato, para que o ódio figadal que a pior classe média brasileira tem ao PT não tirasse ninguém da corrida com esquemas canalhas. E, sendo esse candidato Lula, e as alternativas as que se apresentam, votaria nele, com alguma garantia de que não repetiria algumas coisas.
Entre essas coisas, as que para mim são o maior problema dos anos de Lula no poder, destaco as alianças. Os destruidores da Amazónia, os ladrões do dízimo, as milícias do puritanismo que ele empoderou, e hoje dominam boa parte do Brasil.
Parte da tragédia brasileira é que o primeiro homem que saiu da pobreza endémica, herdeira de séculos de exploração, para governar os seus semelhantes, e de facto arrancou milhões da fome, de facto fez com que gerações pela primeira vez chegassem à universidade, de facto ajudou milhões a ter direito à cidade, à palavra, à acção, ao mundo, esse mesmo homem foi o que não deixou de se aliar com alguns dos piores em nome da governabilidade. Para governar pelos pobres uniu-se aos que desde sempre se estarão marimbando para os pobres. Mais, os usam. Mais, os desprezam. Não acredito que o tenha feito por lucro pessoal. Acredito que pensou que era um preço que valia a pena pagar por tudo aquilo que era inédito, e que ele resumia com a sua frase: “Nunca antes na história desse país.” Estava errado, esse preço saiu muito caro.
Fora isso, creio que nunca vi e ouvi ao vivo um político que tivesse emergido de circunstâncias adversas tão naturalmente dotado, com tamanha força, intuição, inteligência. Lula é uma figura prodigiosa da viragem entre os séculos XX-XXI, pelo que fez no Brasil e pelo que inspirou mundo fora. Ninguém lhe tirará isso. Moros, Cunhas, Temers, Bolsonaros podem bolsar, uivar, serão pó porque são nada. Lula está no coração de milhões porque os mereceu. Qual a dúvida de que nunca antes na história desse país houve um presidente assim?
Não sei se é cúmplice de algum tipo de corrupção. O que há de revoltante na sentença de anteontem não é, claro, que ele, Lula da Silva, possa ser julgado. É esta acusação, este processo, este julgamento. A armação de golpe.
3. Mas, sendo um golpe canalha, é um golpe burro. Do ponto de vista dos golpistas é burro porque nunca antes na história de Lula ele sairá tão mártir. O 3-0 dos juízes lá em Porto Alegre chutou Lula para a fasquia de um Mandela na imaginação de muitos. Ele mesmo o disse.
Portanto, os canalhas podem ficar com a factura de beatificar Lula. E os simples oponentes ficarão com um processo que não se aguenta nas canetas, juridicamente. Em suma: esta condenação é, por diferentes razões, má para o país inteiro. Eventualmente incendiária. Pois a partir de agora dará muito mais trabalho dissuadir incendiários que não acreditam no judiciário. Como acreditar, de facto?
Com nostálgicos da ditadura marchando nas avenidas, brigadas censurando arte, igrejas perseguindo gays-feministas-carnaval-candomblé, o Brasil é um país partido, puxado por todos os seus membros, em todas as direcções como se fazia aos condenados a esquartejamento. Precisa urgentemente que algo se interrompa, algo vire.
4. E do que o Brasil não precisa é que Lula seja beatificado, pelo contrário. Se conseguir assegurar a sua candidatura, ele deve ser lembrado do que não fez e devia ter feito, do que fez e não devia ter feito. Lula, a esquerda, o Brasil, precisam de pensar no que podem fazer de diferente.
Será preciso trabalhar muito mais para ir além do incendiário, ou do beato.
5. O assunto não está arrumado. Lula ainda pode ser candidato. Tribunais superiores ainda poderão ter uma palavra. Muito ainda vai correr. E seria fantástico que este ciclo terrível, já a caminho dos quatro anos, desse uma reviravolta com a grande saída às ruas de quem até hoje nunca saiu.
Em Junho de 2013, quando o Brasil explodiu em manifestações, o morro, o subúrbio, também estavam lá, mas não em massa. Milhões, no morro, no subúrbio, nas cidades do Nordeste, nos lugares mais remotos onde a gente nem sabia que tinha direito a ser gente, nunca se levantaram em protesto. Talvez não seja possível esse levante acontecer, por todas as razões da natureza humana, mais especificamente as do Brasil. Mas seria bonito de ver, enfim.
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