“Como está a correr a escola?, perguntei eu ao P., separados por um vidro de forma a garantir o distanciamento social que a pandemia nos obrigou. Sempre com um sorriso na cara, respondeu-me que estava a correr bem e que finalmente a escola tinha conseguido organizar-se para dar as aulas à distância através de plataformas online e com recurso a vídeo. Na época pré-pandemia, foram várias as tentativas de colocar uma câmara na sala de aula. Muitas sem sucesso. Rematou, tentando tirar algo positivo desta nova ameaça à sua vida, “no meio disto tudo, finalmente, vou estar nas mesmas circunstâncias que os meus colegas.”. Sorri-lhe, percebendo que apesar de triste e preocupado com tudo o que se está a passar no nosso país e no mundo, sente-se mais igual aos colegas, mais igual nas oportunidades que não lhe foram dadas antes da pandemia, quando teve de conciliar tratamentos, consultas e análises com as aulas, testes e trabalhos.
A pandemia trouxe várias mudanças à sociedade, desde o mundo do trabalho, à saúde, e sem excepção, à escolaridade. No dia em que foi anunciado o fecho de escolas, surgiu toda uma nova realidade de práticas educativas. De acordo com as orientações do Ministério da Educação, foi adoptada a modalidade de ensino não presencial, utilizando diversas metodologias. Também os critérios de avaliação, foram adequados aos contextos em que os alunos se encontram. Aulas assíncronas, aulas síncronas, utilizando o Zoom, o Classroom, o Skype, o e-mail ou até o Whatsapp. Foram vários os recursos utilizados para que fosse assegurada a escolaridade a milhares de alunos que deixavam de poder ir à escola e passaram a socializar de forma diferente ou deixando de o fazer, afectando tudo isto dimensões fundamentais para o seu desenvolvimento. Esta é a realidade, todos os anos, há mais cerca de 400 crianças e jovens que deixam de ir à escola devido à doença oncológica e ao seu tratamento.
Desde o início dos tratamentos que o P. gostaria muito de ter tido todos estes recursos porque já desenhou o seu futuro: ser informático na Google.
O ensino à distância sempre foi, e continuará a ser, uma necessidade das crianças e jovens com doença oncológica. No âmbito da educação, a Portaria nº 350-A/2017, ao contrário daquilo que era esperado, pouco ou nada alterou em relação ao acesso às medidas de apoio educativo previstas para crianças e jovens com cancro que, embora legisladas, não são postas em prática. Também ao contrário do disposto na dita Portaria, não é feito o acompanhamento do processo de aplicação e de avaliação da eficácia destas mesmas medidas. É por isso importante relembrar os mais esquecidos ou os que tentam descartar responsabilidades que estas medidas existem e devem ser efectivadas.
O P., e tantos outros que cedo demais se confrontam com o cancro, não querem que seja dado um passo atrás nas medidas agora implementadas, querem sim que se lembrem que eles, mesmo sem pandemia, têm de se manter muito resguardados ou mesmo isolados porque o seu sistema imunitário se encontra fragilizado. Em tempo de pandemia, os cuidados ainda são maiores e, para eles não há “desconfinamento”. Referir também que estas crianças e jovens nem sempre têm condições de saúde, seja devido às obrigações do tratamento, seja pelas suas consequências físicas, de assistir, de forma síncrona, às aulas dadas pelos professores. Mais uma vez, não é aceitável que a disponibilização do acesso ao conteúdo das aulas em diferido fique ao critério das escolas (tal como consta no Artigo 4º do Decreto-Lei n.º 14-G/2020: “Nos casos em que, por motivos devidamente justificados, o aluno se encontre impossibilitado de participar nas sessões síncronas, pode a escola facilitar o acesso ao conteúdo das mesmas em diferido.”).
O P. e tantas outras crianças e jovens, querem que seja garantindo um acesso equitativo às aprendizagens e um acompanhamento adequado às suas necessidades. Não querem voltar a estar sujeitos aos “recursos disponíveis” e à boa vontade dos professores. Alguns, com mais sensibilidade e possibilidade que outros, acabam um dia longo de trabalho nas escolas e, do seu tempo, do tempo com as suas famílias, retiram algumas horas para ajudar os alunos que não estão presencialmente em sala de aula, às vezes a quilómetros de distância, porque estão em tratamento longe das suas casas, mas que não deixam de ser “seus” alunos.
E, já agora, porque não falar dos exames e do acesso ao ensino superior? A J., tal como tantos outros jovens, entre tratamentos e internamentos esforçava-se ao máximo para passar de ano, fazer os exames nacionais e obter a média que lhe daria acesso à faculdade. Debatia-se contra a fadiga, os problemas de atenção e concentração, as náuseas e o mal-estar generalizado causado pelos tratamentos. Debatia-se, porque tinha o sonho de entrar na faculdade. Não foi fácil. Não conseguiu à primeira. Voltou a tentar. E graças à sua força de vontade, conseguiu superar barreiras e, aos dias de hoje, está a terminar o seu primeiro ano na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Feliz por não ter desistido, quando o nosso sistema de ensino pouco conseguiu fazer por ela. Feliz por ter contado com o apoio de professores voluntários da Acreditar que, através do Aprender Mais, a acompanharam e a ajudaram na preparação para os exames nacionais de ingresso à faculdade. O Aprender Mais é um apoio escolar, para crianças e jovens com cancro, que complementa o trabalho realizado pela escola de origem e o importante acompanhamento que, com os meios possíveis, os professores destacados nos hospitais desenvolvem.
Sobre esta matéria, a resposta dada em tempo de pandemia, permite aos alunos realizarem os exames nacionais finais apenas às disciplinas que escolham como prova de ingresso ao ensino superior (de acordo com o curso e universidade a que se pretendem candidatar). Mais, deixa de ser obrigatória a realização de exames para quem não queira ingressar no ensino superior, passando a ser avaliado com as notas internas. A J., e tantos outros jovens no passado (e certamente no futuro, até que não haja alterações nesse sentido), gostariam de poder beneficiar desde medida.
As medidas educativas implementadas durante a pandemia são um início promissor da resposta, já prevista na lei, que gostávamos que fosse, finalmente, concretizada e que apoiasse, efectivamente, as crianças e jovens com cancro. Vimos, através dos tempos difíceis que atravessamos, que é possível. Não posso deixar de perguntar porque é que ao longo de todos estes anos não foi possível para aqueles a quem a doença já muito roubou? Eles querem continuar a crescer, a aprender e a sonhar com um futuro!
Jessica Arez é Psicóloga Clínica e da Saúde na Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro.
Sobre a Acreditar. A Associação existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, escolar, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.
Comentários