Enquanto escrevo esta crónica, a Superliga ainda existe. Quando o leitor acabar de ler esta crónica é possível que já não exista, ou que tenha sido extinta, entretanto. O projeto da criação de uma liga europeia de grandes clubes, liderada à cabeça por Florentino Pérez, abanou as fundações do futebol europeu e trouxe uma enchente inacreditável de grandes nomes e grandes discursos para a praça pública. De todas as grandes figuras que mostraram o seu descontentamento, a minha favorita foi a reação do Comissário Europeu, Margaritis Schinas, quando afirmou perentoriamente que a Superliga era um projeto contrário aos valores europeus.
Um atentado à democracia europeia. No pasarán.
Com tal aparato, e tendo em conta os valores aparentemente em risco (a UE e a democracia) quando a Superliga morrer poderemos respirar todos de alívio. A democracia europeia terá sido salva por instituições altruístas como a FIFA e a UEFA que não deixaram a democracia morrer às mãos do grande capital. Será mesmo assim?
Para compreender a reação da FIFA a estas notícias é preciso perceber primeiro o que é a FIFA. A FIFA é uma organização sem fins lucrativos suíça (sim, leu bem, sem fins lucrativos), uma verein simpática cuja forma jurídica foi pensada para clubes de xadrez e associações de pais. Trata-se do organismo que regula o futebol mundial e é composto por braços regionais (entre os quais se conta a UEFA) que se desdobram depois numa série de federações nacionais (como a nossa Federação Portuguesa de Futebol). Em muita coisa, a FIFA assemelha-se a uma organização internacional, do tipo das Nações Unidas, em que todas as federações nacionais têm um voto tal qual os Estados na Assembleia-Geral das Nações Unidas. Em muitas outras coisas, a FIFA assemelha-se a uma multinacional poderosa, com um CEO (Secretário-Geral da FIFA) forte e um Chairman (Presidente da FIFA) que querem que aquilo faça dinheiro. Para espanto de qualquer jurista helvético, a FIFA em nada se assemelha a um clube de xadrez sem fins lucrativos ou a uma associação de pais.
O que é interessante na FIFA é o ter absorvido o pior desses dois mundos, da organização internacional e da corporação. Por um lado, tal qual organizações internacionais, a FIFA é um mundo de complexidade jurídica, uma burocracia privada de dimensões astronómicas. Ali encontramos tudo o que encontraríamos numa organização internacional e até mais. Os três poderes clássicos estaduais, que as organizações internacionais mimetizaram ao longo de décadas, estão bem visíveis. Há uma assembleia legislativa, um poder executivo (Presidente/Secretário-Geral da FIFA) e um poder judicial (a FIFA tem um sistema interno de ‘tribunais’ aos quais as federações podem recorrer) que em última instância depende de um Tribunal Arbitral para o Desporto internacional. Por outro lado, a associação tem um poder executivo fortíssimo, especialmente nas decisões que interessam (como a escolha do candidato para o próximo Mundial de Futebol), assemelhando-se a uma empresa privada multinacional. Esse outro lado, o da falta de transparência e o do favoritismo baseado no valor último do lucro, traduzem a sua face privada, de multinacional. A FIFA é por isso um bicho de duas faces: uma face pública, com grandes Cartas de liberdade e direitos fundamentais escritas por Professores que admiro muito, em que domina a democracia e o poder da maioria; e uma face privada, que efetivamente controla, que traduz a sua dimensão corporativista e escopo lucrativo.
A juntar a estas duas características, há uma outra essencial para se entender a FIFA. Só há uma. Se Portugal quiser ir jogar o Mundial organizado pela Federação Mundial do Futebol Profissional (FMFP) vai ter dificuldades. Sabe porquê? Porque não há nenhuma FMFP, nem nunca vai existir. Porque no momento em que alguma federação (ou clube pela mesma lógica) ouse sair do projeto restrito da FIFA, fica sozinho e sem apoio. Os economistas chamam a isto efeitos de rede e traduz-se em duas coisas: quantas mais pessoas estiverem na FIFA mais interessante é estar na FIFA e mais desinteressante se torna ir criar uma coisa ao lado. É por isso que a única forma de romper a bolha é através de um exercício coletivo de rejeição, apenas ao alcance de um conjunto restrito de clubes ou de federações. No entretanto, quem é que seria louco ao ponto de sair da FIFA para ir criar uma outra organização? Só se fosse para jogar sozinho.
Para quem tenha estado atento, este bastião da democracia que deitou abaixo o projeto autoritário da Superliga tem esqueletos no armário complicados de justificar. Há uns anos, os seus principais dirigentes foram alvo de investigações por corrupção e muitos foram condenados por corrupção e branqueamento de capitais. Depois vieram os escândalos de direitos humanos relacionados com a construção de estádios no Qatar, num processo de atribuição do mundial de 2022 rodeado de suspeitas de corrupção e presentes. Finalmente, e mais recentemente, a FIFA foi condenada pelo Tribunal Arbitral do Desporto por permitir que uma das suas federações regionais, a Confederação Asiática do Futebol, simplesmente viciasse uma eleição interna e afastasse a candidatura de Mariyam Mohamed, optando antes por garantir uma outra mulher para o cargo (uma mulher é sempre uma mulher! Diriam os seus dirigentes).
É por isso com alguma ironia que leio da grande defesa da democracia por parte da FIFA. Basta ver como foi tratado todo o comité responsável pela integridade dos processos eleitorais dentro da associação para se perceber de que tipo de democracia falamos. Daquelas musculadas e muito adjetivadas.
O projeto da Superliga podia ser de facto um projeto unilateral, autoritário, elitista, de uns quantos clubes que queriam ter uma competição só para eles e um conjunto de financiadores e televisões que teriam muito a ganhar com isso. De acordo. Mas não me metam a democracia no meio disto porque é abusar de um conceito que é constantemente abusado. Chamem-se as coisas pelos nomes e deixemo-nos de hipocrisias. O projeto da Superliga enfrentou um monopólio de dimensões estaduais que provou todo o seu poder, incluindo junto da UE, para rejeitar qualquer dissidente que se atreva a questionar o poder último da FIFA.
O que é que um monopólio diz quando vê outro monopólio?
‘Democracia!’.
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