Um evento da magnitude das eleições presidenciais dos Estados Unidos da América gera uma cobertura mediática imensa, este ano talvez seja a maior de sempre. Contudo, na minha opinião, as análises que têm sido feitas falham em compreender muitas das nuances desta disputa eleitoral e chegam a ser ingénuas, principalmente quando os analistas não são capazes de se colocar na pele de uma grande parte do eleitorado americano. Quem tem essa capacidade é Donald Trump, quer se goste, quer não.
Na Europa a opinião pública é altamente desfavorável ao ex-presidente, o que é natural: não é aos europeus que ele quer agradar. Na América, o magnata é um íman do voto de descontentamento com as elites (mesmo pertencendo à elite), do voto rural (apesar de ele ser de Nova Iorque) e do voto dos menos instruídos (pesa, embora ele tenha tido uma educação de luxo, como a fortuna lhe permitiu). Este aparente paradoxo é incompreensível para muitos, mas a questão não é quem é o candidato republicano, mas antes com quem ele consegue gerar empatia.
No meio de todos os seus reconhecidos defeitos, Trump ainda conhece o seu público como poucos e é capaz de falar exclusivamente para eles (com o chamado dog whistle) e de os fazer sentir parte de uma comunidade, quando eles sentem que estão à margem da sociedade americana. E o perdedor das últimas eleições, em 2020, vai de encontro às vontades desta porção do país, estejam elas certas ou erradas e mesmo que tenha de dobrar a própria realidade e até as suas convicções para agradar aos fiéis seguidores do movimento MAGA (Make America Great Again). Portanto, apesar de ser grosseiro e estar, a meu ver, errado na maioria das suas opiniões, Donald é dono de um carisma e empatia históricos. Está, em parte, explicado o porquê da corrida renhida que estamos a testemunhar.
Ora, se Trump consegue ganhar o coração dos ostracizados pela elite, que representam aproximadamente metade da população americana, isso faz dele popular, ou seja, por definição do agrado do povo, em última análise democrático. É isso mesmo, a candidatura republicana é um retrato da democracia: apoiada pelo povo, independentemente do que é certo ou errado. Não me interpretem mal, eu sou a claramente a favor da democracia e reconheço um conjunto de posições extremistas na esfera da candidatura de Donald Trump, mas essa é precisamente uma parte integral da democracia. Mesmo quem não apresenta comportamentos democráticos, não respeita os resultados de eleições justas e pretende atropelar órgãos de soberania, pode ser eleito democraticamente, desde que cative uma grande porção da população.
O que vocês estão habituados é um híbrido de tecnocracia e democracia. Isto é, uma sociedade onde os especialistas de cada área chegam aos cargos de chefia dentro das mesmas, por vezes, com sistemas democráticos dentro destes subconjuntos da sociedade (por exemplo, nas eleições para reitor da universidade ou presidente de uma federação desportiva) e claro um sistema democrático para eleger os representantes dos cargos públicos, assumindo que estes darão ouvidos aos especialistas em caso de necessidade. Como em Portugal, onde ninguém viu o António Costa a opinar sobre a ciência por trás das vacinas, apenas a seguir os conselhos da Direção-Geral de Saúde. Conselhos esses que, diga-se, levaram a um dos melhores combates à Covid em todo o mundo. Tudo bem e conforme o esperado, porque a tecnocracia convive pacificamente com a democracia e assim é que deve ser. Porém, na América a história é outra…
Como sabemos os Estados Unidos da América são o país dos extremos: capaz do melhor e do pior; onde existe maior riqueza acumulada, mas também pessoas a não comer ou a não ter cuidados médicos adequados devido à pobreza; com algumas das cidades mais vibrantes do mundo e comunidades completamente esquecidas e abandonadas. Num país destas assimetrias (muito mais vincadas que em Portugal, por diversos motivos positivos e negativos) a tecnocracia e a democracia começam a não conseguir conviver. Isto porque uns têm acesso à educação de qualidade e estão numa boa condição material, enquanto outros nem uma coisa, nem outra.
O partido democrata, liderado por Kamala Harris, é, consequentemente, a escolha natural para aqueles que estão informados, possivelmente têm um curso superior e muito provavelmente vivem numa cidade. Eu diria que são as pessoas que consciente ou inconscientemente estão por dentro da tecnocracia e pretendem que esta continue, estando, quando muito, indignados com a ameaça dos retrocessos que os republicanos apregoam e com os entraves que estes têm causado ao progresso natural, liderado pelos peritos.
Considerem ainda que o senhor super carismático e empático está, por culpa própria, afogado em processos judiciais e a precisar desesperadamente de ganhar para se ver livre deles. Não bastasse tudo o que já mencionei, os democratas ainda tiveram uma campanha com troca de candidato a meio e, mesmo no seio daqueles que tenho apelidado tecnocratas, são alvos de críticas nomeadamente na forma como têm lidado com a crise no Médio Oriente e na falta de coragem para defender medidas progressistas, por exemplo, ao nível da saúde.
Realmente estão reunidas todas as condições para o caos que temos assistido e para este enorme espetáculo, que em bom inglês é um shitshow. Tudo isto, porque quem está em posições de poder e de privilégio na América, deixou que uma franja da população se sentisse tão excluída que passou a viver numa autêntica realidade paralela. Para corrigir esta clivagem, a ciência tem de saber comunicar eficientemente e o poder político tem de se preocupar fortemente com a coesão territorial e a redução das desigualdades, por meio de um elevador social funcional.
Nas eleições de dia 5 de novembro de 2024, vamos ver se a tecnocracia tem uma vida extra ou se, pelo condão da democracia, chega ao fim da linha e dá lugar à Trumpocracia. Eu não acho que Trump abrirá caminho para uma era autocrática, antes vai dobrar as instituições democráticas para seu benefício e para salvar o próprio pelo, porque é tão narcisista que eu penso que nem vai apontar sucessor (vejam quão pouca atenção dá a JD Vance), deixando apenas a democracia continuar a asfixiar a tecnocracia. Eu espero que, no final de contas, numa eleição mais ou menos renhida, Kamala Harris, sem um carisma excecional, mas com políticas equilibradas e mais corretas, consiga acabar por vencer (que bom seria para a Ucrânia e para derrotar a sombra russa que paira sobre a Europa). Mas, desta vez, se a tecnocracia tiver mais uma oportunidade, não deixem que daqui a quatro anos tenhamos uma América tão fraturada entre duas realidades paralelas. Tentem resgatar os que hoje excluem. Para o bem de todos!
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