Não sou propriamente um desentendido no que toca a desportos de combate. Afirmo-o sem vanglória. Aliás, tenho certo pejo a lidar com isso. Quando confrontado com as acusações de que estes desportos são cruéis e desnecessários, refugio-me na cobardia argumentativa e não assumo o gosto: digo que aprecio o apuradíssimo lado técnico, ou aponto para a honradez nas justas “mano a mano”. Mas não só estou um bocadinho dentro do assunto como ainda posso acrescentar: assisti a meia-dúzia de combates de boxe do Mayweather, bem como a grande parte das lutas de artes marciais mistas de McGregor. Conhecendo os atletas e conhecendo os desportos, não consegui dissociar completamente as minhas previsões dos meus desejos para o embate. A única espécie de prognóstico que formulei era um ponto intermédio, tão próximo dos velhos entendidos como dos que só agora se entusiasmaram por boxe: eu tinha a certeza que Floyd ia ganhar, mas tinha também a certeza que queria Conor a vencer.
Creio que todos gostamos de acreditar que a vida nos vai deixar assistir a muitas justiças poéticas. Mais curiosa ainda é essa expectativa aplicada ao “combate do século”. Tenho a certeza que inúmeras pessoas que passaram a vida, ou a ignorar o boxe, ou a considerá-lo um evento bárbaro, desejaram encontrar a tal idealização poética ali, naquele ringue de incivilidades. Era fácil apaixonarmo-nos por esta história, nem que fosse por facilmente nos desapaixonarmos por uma das personagens. De um lado, o underdog irlandês de raízes humildes, que foi canalizador para sustentar os seus treinos, que há uma década é devoto da mesma namorada, que é o tipo perfeito para empolgar combates com a sua fanfarronice cartoonesca, e que nunca tinha antes pisado profissionalmente um ringue de boxe. Do outro lado, o norte-americano nascido e criado numa família de pugilistas, o melhor (e consequentemente mais irritante) num tipo de luta defensivo, o playboy fútil, o homem violento e frívolo fora do ringue, o imbecil acusado e condenado por vários abusos físicos a mulheres. Por muito que tenha dourado a pílula de Conor e enlameado a cápsula de Mayweather, não deixa de ser evidente um bom e um mau, o “mocinho” (como diriam os brasileiros) e o vilão. Por isso, quase todos esperámos que a justiça poética chegasse. Queríamos vê-la a funcionar como naquela ferradura que Chaplin põe dentro da luva de boxe (na curta metragem “O Campeão) para nocautear o adversário: um desnível que favoreça não o mais apto, mas o mais querido.
Embora eu tenha um pessimismo próximo do hobbesiano - e duvide da natureza boa do indivíduo - creio que, quando ocupamos o lugar de espectadores, nos satisfazemos sempre com o prevalecimento dos bons. É uma tendência que séculos de entretenimento e artes comprovam, promovem até. Por isso é que, com excepção dos puristas do boxe (que viram no novato McGregor uma ridicularização da modalidade), de alguma forma quase todos torcemos por quem nos parecia moralmente mais elevado, ou pelo menos vaiámos o moralmente mais retorcido. Depositámos a predilecção num conjunto de virtudes que pouco tinham que ver com a natureza da disputa, e ainda menos com a previsibilidade do resultado. Se calhar sentimo-nos pessoas melhores quando queremos que o Bem seja mais provável que as próprias probabilidades.
Se é curiosa esta noção de uma moral a ditar as nossas preferências, também curioso é quando as nossas preferências ditam a moral. Avançando para desportos mais populares no nosso meio, nomeadamente o futebol, é frequente esbarrarmos com programas de opinião onde a competição desportiva se transformou numa competição de virtudes. A análise técnica de jogos e lances deu lugar às defesas de honra e aos ataques de carácter; não pode haver vitória nem derrota sem que se prove a beatitude própria e a iniquidade do adversário. Não interessa aqui qual das facções clubísticas tem mais razão, interessa é acordar que a razão está manipulada pela facção. Demonizar o adversário é marcar um golo de belo efeito, e a liga paralela das vitórias morais já quase se assume oficial. Se calhar sentimo-nos pessoas melhores se provarmos que somos adeptos de um coletividade do Bem, e que os nossos adversários estão consagrados a grémios do Mal; queremos crer numa elevação moral que nos predestinou a determinado clube. Esquecemos que essa elevação, afinal, foi só um tio mais insistente, um par de rufias na 4ª classe, a camisola que combina com o nosso tom de pele, ou um estádio que se vê da varanda.
De volta ao combate de domingo, e ao indesejável mas esperado desfecho. Um dos primeiros comentários de McGregor foi “pareceu-me muito renhido”, o que nos leva a suspeitar que a inexperiência do irlandês não estava só na prática de boxe, mas também na análise. Rejeito a teoria tonta do combate combinado, mas renhido é a última coisa que foi. McGregor estava fora do seu elemento e demorou meia dúzia de rounds a percebê-lo. A Mayweather bastou fazer o que sabe melhor: ser o melhor. Assumo que desejava ver Conor McGregor no papel de anjo vingador, e a retribuir em dobro cada soco que Floyd Mayweather alguma vez deu numa mulher.
Mas se, por milagre, tivesse ganhado o menos dotado, menos inteligente e menos talentoso boxeur dos dois, onde é que iríamos querer ver tal injustiça vingada?
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO (sobretudo o resto)
Mais que a fanfarronice, há que registar o exemplo notável de desportivismo (“sempre arrogante antes da luta, mas humilde quer na vitória quer na derrota” – assumiu o próprio McGregor). Aqui, um apanhado da relação dele com dois dos maiores adversários que encontrou no octógono. (Aviso: imagens que podem impressionar).
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