Existe uma moda agora que é a de mulheres bonitas assumirem e anunciarem ao mundo defeitos insignificantes do seu corpo no Instagram. É uma moda que surgiu há algum tempo, mas que vai reaparecendo, especialmente quando algumas “criadoras de conteúdo digital” estão sem ideias para novos conteúdos. Compreende-se. Por vezes é preciso inspiração para inventar novos locais e posições para tirar fotografias a olhar para o infinito com descrições inspiracionais/foleiras ou uma nova forma de mostrar o rabo sem parecer que se está a mostrar o rabo, enquanto se promove dentro desse contexto um creme para a celulite que não faz nada ou um seguro automóvel. Bem, mas não vamos estar aqui a falar sobre a minha inveja de não conseguir lucrar nem angariar seguidores apenas com este corpinho que os meus pais me deram e falemos dessa moda. Aposto que já todos viram: mulher lindíssima e gostosa, com bastantes seguidores, decide publicar umas fotografias em que está menos bem, para mostrar que também ela não é perfeita. Afinal o rabo não é soberbamente empinado, é apenas incrivelmente empinado e era uma pose que enganava; também ela tem uma estria que nem se vê bem, ou celulite que só ao perto é que se vê, ou que tem um bocado de barriga depois de ter ido ao sushi.
Uma mulher bonita e jeitosa vir queixar-se dos seus “defeitos” como se fosse um acto de coragem e para inspirar outras mulheres é gozar com as mulheres realmente feias que só vão ficar ainda mais inseguras porque pensam “O quê? Esta gaja linda é insegura porque tem um dedo do pé torto? Então eu com esta cara de acidente na A1 estou feita!”. As pessoas bonitas não têm direito a ter inseguranças? Claro que têm, mas guardem para vocês porque nenhum de nós, comuns mortais, quer saber se vocês têm traumas com uma orelha mais pequena do que a outra ou com o pé chato ou com uma cicatriz de meio centímetro no meio desse rabo que parece esculpido por Alexandre de Antioquia.
Depois, não vale mostrar “defeitos” e dizer que a sociedade oprime as mulheres e lhes coloca muita pressão (tudo verdade) e depois nas trinta fotos seguintes estarem todas cheias de filtros e maquilhadas e lucrar com isso fazendo parte do problema e tornando as miúdas novas mais inseguras. Isto é a mesma coisa que ser activista e fazer publicidade. Não dá para conciliar as duas coisas, lamento. Ou vais a uma manifestação contra o consumismo ou fazes publicidade para uma marca multinacional que vende bens completamente dispensáveis. Não dá para ter as duas coisas. Dar, dá, mas é hipócrita. É como achar que o Jeff Bezos é o mal do mundo e explora os trabalhadores e depois mandar vir merdas da Amazon todos os dias. Não dá. Há que ser coerente. No entanto, somos todos incoerentes e hipócritas, por isso está tudo bem, mas deixem-me apontar o dedo na mesma, sabendo que também terei telhados de vidro. Vêem como ao contrário de outros cronistas e humoristas eu consigo criticar a sociedade colocando-me como fazendo parte dela sem me colocar num pedestal de moralidade? Sou um génio! (e também muito humilde).
Há algum pudor em criticar este tipo de criadoras de conteúdo digital porque parece automaticamente machismo. Não é. A crítica seria a mesma se houvesse tantos homens a fazer esse tipo de conteúdo, a questão é que não há, e isso é um elogio às mulheres. Não há tantos homens a fazer o mesmo porque elas não são tão básicas quanto nós ao ponto de seguirem pessoas só para lhes ver o corpo disfarçado de influência. Não que as mulheres não gostem de seguir homens bonitos e sexualizá-los. Claro que também o fazem e ainda bem, mas todos sabemos que a prevalência é diferente. Nada contra estas criadoras de conteúdo, eu gosto de ver e sou consumidor, mas não vamos estar aqui a dizer que exigem criatividade ou qualquer tipo de inteligência, o que não invalida que elas não possam ser pessoas criativas e inteligentes, atenção. É a mesma coisa para ser modelo: não é preciso ser-se bafejado pelo QI, mas haverá certamente muitos modelos inteligentíssimos, apenas escolheram uma profissão em que podem ter o QI de uma pedra da calçada. Ou seja, ser modelo não significa ser-se burro que nem uma porta, mas um burro que nem uma porta pode ser modelo. Perceberam a diferença? Pronto, avancemos.
Voltando à moda de expor os defeitos. Não podes ser contra o “ideal inalcançável da beleza feminina" um dia e no outro estares na capa de uma revista toda maquilhada e com Photoshop. Poder, podes, mas lá está, és hipócrita. “Ah, mas a intenção é boa!”. Hum… em alguns casos até posso conceder que seja, mas na maioria a intenção é ter likes, não se enganem. E está tudo bem, sempre que publicamos alguma coisa a intenção é um bocado essa, mesmo quando parece altruísmo ou activismo. Viram outra vez eu a falar na primeira pessoa do plural, colocando-me como parte do todo? Génio humilde, novamente.
Depois ainda há a questão das “mulheres reais”. Acho estranho as mulheres reais terem de ser sempre meio gordas e não muito bonitas. Mulheres comuns? Tudo bem. Mulheres medianas? Certo. Mulheres reais? São tão reais como as outras todas ou as mulheres bonitas e de corpos definidos não são reais? É que ter um corpo trabalhado dá trabalho. Acho de mau tom depois dizerem que as mulheres gostosas não são mulheres reais, descartando-as para o mundo da fantasia só porque têm motivação para comer bem e ir fazer desporto. Seria como eu mostrar a minha pança e dizer que sou um homem real e que o Lourenço Ortigão é uma invenção da sociedade para me oprimir, só porque eu ontem em vez de ir treinar e comer bem, fiquei o dia todo a beber minis no café.
Isto é um tema demasiado complexo para ser aprofundado numa crónica destas, que não pretende ser profunda, mas apenas parva. O impacto dos filtros que mudam as feições, a pele, etc..., daria pano para uma tese de mestrado e eu já fiz a minha há muitos anos, por isso ficamos por aqui.
Para a semana chegará ao fim a minha colaboração aqui no SAPO24. Esta é a minha penúltima crónica. Aviso já só para não pensarem que me despediram ou me cancelaram porque dez pessoas feias no Twitter não gostaram do que escrevi.
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