Este Setembro Dourado a Acreditar tem o lema: “O meu cancro não é só meu, também é da minha família 

A frase trouxe-me à memória um evento perdido nas minhas recordações de infância, numa vila pequena da Beira Baixa. Uma vila igual a tantas outras.

A escola primária era um edifício grande e as classes dividiam-se pelas diversas salas e professores, numa época em que o interior tinha gente. Muitas eram as crianças que enchiam aquelas salas, os recreios e também as ruas da vila no regresso a casa.

Havia um rapaz que era um pouco mais velho do que eu e que era irmão de uma das minhas colegas. Adoeceu. Estava muito magrinho. Estava muito doente. Tinha uma cor que me impressionava, porque era o mais branco que já tinha visto. E eu só o via à janela. 

Ninguém falava sobre a doença dele. A família protegia-o separando-o dos demais, mas protegia os demais separando-o dos irmãos. A mãe encolhia os ombros, com o olhar mais triste que já vi nuns olhos azuis, quando as outras mães lhe perguntavam pelas melhoras do filho. Parecia envergonhada por ter um filho doente.

Na escola só se falava à socapa. Achava-se que ele tinha uma coisa “má”. Que se calhar se “pegava”. Era melhor ficarmos longe. Longe dele. Longe dos irmãos. Nunca se sabe…

Este era o retrato de um jovem doente de cancro há algumas décadas. A doença impronunciável, a doença que era dele, da família, da escola, dos colegas, da vila.

O menino morreu. Percebi que os meninos também podiam morrer, eu que pensava que só os avós é que morriam.

A família ficou muito afectada e também algo conformada, porque na verdade algumas crianças morriam no Portugal profundo dos idos anos 60.

A história ficou algures na minha memória até que um dia entrei na Acreditar e entendi. Entendi que o que se passou não deveria ter passado. Entendi ainda que aquela solidão, aquele olhar sobre a família, aquele afectar de toda a vida dos irmãos, dos pais, dos avós, já não é vivido na pobreza ignorante de então, mas ainda marca, marca todos. Marca para sempre.

Entendi que a solidão da família ainda se sente. 

Que a vergonha ou a culpa ainda existem. 

Que ainda há meninos e meninas que morrem. 

Que os tratamentos não são o que de melhor deveria estar disponível. 

Que nem todos têm as mesmas oportunidades. 

Que a doença afecta todos os que estão em redor de quem tem um diagnóstico de cancro pediátrico. 

Por isso é preciso:

  • falar sobre o cancro pediátrico;
  • dar a cara às caras da doença;
  • discriminar positivamente para que a marca não precise de ficar lá.

Por isso é preciso que a Nova Estratégia para o Cancro 2021-2030 dê ao cancro pediátrico o lugar que este deve ter numa sociedade que o ignorou tempo demais. O cancro pediátrico não carece de deixar marcas. Para isso temos de marcar nas agendas o dia a partir do qual iremos investir em melhorar a qualidade de vida dos doentes, a qualidade dos tratamentos e a vivência das famílias. Esse dia para mim será o dia em que a nova Estratégia para o cancro 2021-2030 (depois de revista) entrar em vigor. 

Portugal já não é uma vila pequena dos anos 60, e não precisa de o parecer. 

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A Acreditar existe desde 1994 com o objectivo de minimizar o impacto da doença oncológica na criança, no jovem e na sua família. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, jurídico entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica.