Numa história já muito velha de António Ennes (1848-1901), duas crianças são abandonadas no artifício da “Casa da Roda”. As razões poderão ser muitas: a pobreza da família biológica, o facto de serem enteadas, filhos ilegítimos, poderem interferir em processos de heranças. Estas crianças, as chamadas «enjeitadas», crescem na desordem emocional talvez, tal como nos sugere o autor, pela expectativa sempre presente de reencontrarem os pais. Neste drama moral, oitocentista, “em quatro actos”, a busca da identidade dos pais aumenta a comoção dos personagens que os rodeiam, mas que nem por isso parecem mais comprometidos em ajudá-los a resolver o enigma. Aos enjeitados, restam-lhes pouco mais do que os produtos do seu próprio fado e o facto de despertarem a comoção alheia. E tal como seria de esperar, numa época ainda pré-histórica aos Direitos da Criança, o final não é feliz.
Ainda que a literatura e as telenovelas continuem a servir-se dos dramas destas crianças para emocionar e, com isso, vender, na Europa real muito se evoluiu no campo dos seus direitos. Hoje, a esmagadora maioria dos estados reduziram drasticamente, por exemplo, o número de crianças que crescem entregues a instituições. Investem em contrapartida em medidas efectivas de acolhimento familiar, que incluem a colocação destas crianças aos cuidados de famílias de acolhimento. Deste modo, concretizam o direito de as crianças crescerem numa família, tal como expresso na Convenção dos Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989.
Segundo o Relatório CASA - Caracterização Anual da Situação do Acolhimento, do Instituto da Segurança Social, lançado em 2018, que apresenta o retrato deste sector em Portugal em 2017, 7553 crianças continuariam entregues aos cuidados de instituições e apenas 246 crianças em acolhimento familiar. Em 2008 eram 918. Estes números são evidências de que em Portugal, apesar de existirem, teoricamente, três grandes vias clássicas para a colocação de uma criança numa família: o apadrinhamento civil, a adopção e o acolhimento familiar, o Estado tem insistido de forma contínua na sua entrega a organizações.
A questão que então se impõe é onde estão de facto medidas efectivas de acolhimento familiar no Portugal do século XXI? Nesta matéria, e em contraciclo com os parceiros europeus, Portugal insiste em medidas de assistencialismo puro que passam pela mera institucionalização, particularmente em estruturas geridas por instituições particulares de solidariedade social. O panorama nacional é por isso simultaneamente inexplicável e preocupante, tornando urgente uma mudança que altere o foco do discurso político, académico e técnico em Portugal, centrado na “institucionalização” de crianças, para a sua “desinstitucionalização”. Mas de que estaremos a falar quando falamos de desinstitucionalização?
A desinstitucionalização centra-se, principalmente, nos aspectos de transição dos cuidados centrados em instituições, para cuidados centrados na família e na comunidade. Segundo o que se encontra na literatura internacional nesta matéria, isto implica uma mudança nos modos de agir que dá mais ênfase aos direitos da criança e à qualidade do encaminhamento que lhe é dada. O processo de desinstitucionalização implica a transformação sistemática de todo o sistema de protecção à criança. Isso poderá começar, por exemplo, com a disponibilização de serviços para ajudar e apoiar famílias e pais e, em última análise, para garantir que separar uma criança da sua família seja realmente o último recurso.
Se a retirada da criança, por exemplo, à família biológica, não puder ser evitada, e no sentido do melhor interesse da criança, opções diferentes devem existir e necessitam de ter em consideração as necessidades e desejos da criança, que deverá participar também ela nos processos de tomada de decisão. Estas medidas devem priorizar medidas de acolhimento familiar.
Os prejuízos para a criança do facto de crescer numa instituição são mais do que evidentes e estão mais do que estudados. Um relatório de Setembro de 2009 da Comissão Europeia aclara, por exemplo, o mito dos benefícios das instituições, ainda que de pequena dimensão, referindo que este tipo de instituições não é definido primeiramente pelo número de crianças e jovens que albergam, mas particularmente pela sua cultura institucional, baseada sobretudo em cinco aspectos: a despersonalização, a criação de rotinas rígidas, o tratamento em bloco, o distanciamento social e o paternalismo — factores que nem a boa vontade do melhor técnico consegue ultrapassar. Adicionalmente, e sobre o impacto da institucionalização, a comunidade científica também apresenta os efeitos adversos globais dos cuidados baseados em instituições: no comportamento e na interacção social, na formação do vínculo emocional, no desenvolvimento intelectual e da linguagem e até no cérebro da criança em desenvolvimento.
Em Portugal o ano de 2019 poderá marcar a tão desejada transformação nesta matéria. Esteve em consulta pública durante um mês, até ao passado dia 27 de Maio, um projecto de decreto-lei do governo que tem por objectivo impulsionar e priorizar o acolhimento familiar face a outras medidas.
As boas notícias desta proposta incluem garantias de protecção laboral e benefícios fiscais às famílias que decidam ser famílias de acolhimento. Agora o importante é que avance. Ao ser aprovado entraremos numa nova era de um sistema renovado, a caminho de se tornar verdadeiramente amigo das crianças. Caso contrário, permaneceremos distantes do interesse da criança e submersos num ambiente que se reveste das propriedades de um objecto arqueológico, que certamente inspirarão muitas outras novelas oitocentistas.
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