José Mário Branco (Porto, 25 de Maio de 1942) é o homenageado da edição 2018 da Feira do Livro do Porto e a escolha não poderia ser mais feliz.
Em 1975, José Carlos Ary dos Santos dirige no seu longo poema “As Portas que Abril Abriu”, um sopro de louvor ao exercício da resistência dos “poetas que estrebuchavam / cantores que não se vendiam” e das suas armas enquanto valentes co-construtoras da verdade: “Porém cantar é ternura / escrever constrói liberdade / e não há coisa mais pura / do que dizer a verdade.” Pois nomear a palavra, seja escrita, falada, cantada, é – tal como nos dá conta a escritora Yvette Centeno no ensaio “Dizer o Mal: a Serpente e o Tigre” (2016), dar existência: “Nomeou, e dizer o nome é dar existência ao que não existia anteriormente. Nomear é um gesto de criação”.
O combate com essas palavras-verdade, palavras-cantadas, marcam coerentemente e sonoramente cada uma das últimas cinco décadas de activismos que o criador José Mário Branco se tem dedicado e que a programação da Feira do Livro do Porto enaltece. Em bom rigor, poderíamos até recuar ainda mais, talvez mais uma década, até ao final da década de 1950, quando o agora homenageado era então redactor-chefe do Jornal do colégio portuense Brotero: “O Arauto”. Já então manifestava sinais de tentativa de domínio sobre figuras de estilo.
Olhando sumariamente o seu percurso dos últimos cinquenta anos, percebe-se que dificilmente fraqueja na defesa dos seus ideais e, talvez por isso, nas inúmeras intervenções que faz a sua voz seja escutada a denunciar o mundo orwelliano em que se vive, na defesa dos valores democráticos da liberdade, da igualdade de oportunidades e da solidariedade. Tudo isto oferecido com erudição, tanto no contacto face-a-face com o seu público, tanto na distância do exílio forçado, tal como o viveu em Paris durante o período pré-revolução.
Utilizando uma expressão do autor Gonçalo Frota, José Mário Branco, tal como aliás em Zeca Afonso, “o popular é invadido por um pensamento erudito”. Não é por isso mera coincidência que o álbum Cantigas do Maio seja um projecto dos dois, juntamente com Francisco Fanhais e Carlos “Bóris” Correia. Talvez pelas evidências do produto dos seus contributos, e da variedade de colaborações, em José Mário Branco artista e intelectual não se excluem mutuamente.
O contexto de revolução que se desejava iminente, serviu de rastilho à criação de objectos que de modo mais ou menos subtil, denunciavam a injustiça social e a ausência de protecção dos direitos dos mais fracos. Escreve e canta e talvez por isto ao ler os textos que este ano se publicam sobre si se encontre justaposto com rótulo de cantautor - palavra-valise, oportuna por ser de vanguarda, mas também por resultar de um esforço de concentrar numa só designação uma identidade artística complexa que tem tanto de multifacetada como de espessura política e intelectual.
Em inúmeras reflexões o contexto marcado pelo esforço de resistentes como José Mário Branco, favorece a arte em relação com a política. Eric Drott demonstra (V/d. Music and the Elusive Revolution: Cultural Politics and Political Culture in France, 1968-1981 / Música e a Revolução: Política Cultural e Cultura Política na França, 1968-1981) que, por exemplo, as sublevações do Maio de 1968, tornaram-se plataformas para uma ampla variedade de experimentação política e artística no campo musical francês deixando marcas nos mais diversos patamares.
Nesses tempos, que José Mário Branco classificava da “noite de Portugal”, a censura vivia casada todos os dias com a auto-censura. Era preciso, pois, combater essa dose de “boa consciência”. Num texto seu publicado em 2007 sobre o jornalismo em Portugal conta um desses episódios que ajuda a compreender, por exemplo, o modo como a censura prévia aos discos de canções poderia ser contornada: “Esta questão colocou-se-nos claramente, aos músicos resistentes ao fascismo, logo a seguir à breve ‘primavera marcelista’ de 70-71, quando o governo passou a impor a censura ‘prévia’ aos discos de canções (que até então só eram censurados após a edição, tal como os livros e outras publicações não periódicas). Que fazer? Discutíamos. O meu segundo álbum de canções de parceria com o escritor Álvaro Guerra, crónica, de 1972, nunca foi publicado porque eu não admiti os cortes que a censura lhe fez. E, como sabíamos ‘como se faz um disco’, decidimos passar a fazer (também) discos clandestinos ou marginais. Foi o caso da ‘Ronda do Soldadinho’, de que conseguíamos meter 2 ou 3 mil exemplares em Portugal, que se venderam a 20 escudos por baixo das mesas do café. Assim se tentou, mal que bem, assegurar a função social das canções em disco”.
Segundo o investigador Alexander Brown, esta função social, própria de quem cria com intenção para além da mera fruição, é o que, e quanto ao protesto musical, o sociólogo Stevphen Shukatitis denomina de “composição afectiva” definido enquanto processo através do qual as opiniões políticas colectivas são formadas e aprofundadas através da expressão de emoções compartilhadas. Iniciativas actuais incluem as que por exemplo se seguiram ao desastre nuclear de Fukushima, em Março de 2011, quando os habitantes de Tóquio invadiram as ruas para protestar. DJ’s e rappers, munidos de poderosos sistemas de som, inauguraram aquilo que se poderia chamar de “demonstrações de som anti-nucleares”. Deste modo, catapultavam para um outro nível o modo o exercício de activismo através do protesto musical.
Por tudo isto, espera-se também que esta homenagem, que se espera politicamente esclarecida, assinale também a renovação e o fortalecimento do contrato moral da cidade do certame com a defesa dos valores democráticos da liberdade e que historicamente fazem parte do seu ADN.
Talvez possamos terminar invocando o homenageado naquilo que deixa aos seus leitores num texto que escreve para o Boletim da FAPIR, editado em Fevereiro de 1977: “as consciências paradas e auto-satisfeitas não medram; reduzem-se a pó, como os vampiros à luz do sol”.
Parabéns, José Mário Branco.
A Feira do livro do Porto irá decorrer nos jardins do Palácio de Cristal entre 7 e 23 de Setembro.
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