Não é simpático começar um artigo por escrever isto. Mas a verdade é que uma cerimónia como a que ontem decorreu em Los Angeles de entrega dos Óscares, os mais cobiçados prémios de cinema no mundo, nunca poderia acontecer em Portugal. Ou, numa visão mais optimista, ainda não poderia acontecer no Portugal de hoje. Porquê? Porque apesar de Hollywood ser tão poderosa e mesmo que haja ali muitas costas devidamente aquecidas pelo Partido Democrata, agora na oposição nos Estados Unidos, é preciso um determinado entendimento da liberdade para passar mais de três horas de emissão televisiva a criticar o homem que está à frente dos destinos do país. O homem, o seu staff e todos os interesses que estão à sua volta.
E isso aconteceu na noite passada e, não, em Portugal, não aconteceria. Em Portugal, não somos menos capazes na crítica, e somos definitivamente mais invejosos, mas mantemos uma relação reverencial com os poderes que nos dita que certas coisas não se fazem.
Mas voltemos aos óscares de 2017. Se é um facto que a cerimónia dos Óscares é das mais guionadas em televisão - há ensaios e ensaios e ensaios, equipas dedicadas a criar alinhamentos e a rever o que vai ser dito, quando vai ser dito, como vai ser dito - é também verdade que é virtualmente impossível colocar todas as pessoas que poderão subir ao palco alinhadas num mesmo discurso e numa mesma ideia. E ainda bem - porque só é suportável o guião quando se espera por um improviso a qualquer altura (e se estes Óscares nos deram essa benção!).
E com tantos nomeados a desfilar, mais convidados e protagonistas de momentos especiais, foi no mínimo sintomática a sintonia que se encontrou em cada discurso, como se cada peça integrasse um todo. Pedindo emprestadas as palavras Jimmy Kimmel, desde a parte do show “em que ainda estava tudo cheio de esperança e a achar que valeu a pena tirar o fato do armário” até ao fim, quando alguns terão perguntado a si próprios o que ali estavam a fazer (já lá vamos …), a sintonia manteve-se.
Jimmy Kimmel, o apresentador da noite, foi grandemente responsável por essa cola. Não era um nome entusiasticamente esperado e sabia disso. Mas soube ganhar o lugar e ainda a cerimónia não ia a meio e já estava claro que havia ali um maestro. De Kimmel, dizia-se, não se podia esperar grande irreverência. Uma presunção que já terá sido certamente reavaliada. O anfitrião dos Óscares começou o monólogo de introdução a recordar os mais de 200 países que hoje odeiam os Estados Unidos, passou para o "agradecimento" devido a Trump porque, afinal, em 2016 dizia-se que os Óscares eram racistas e concluiu esses primeiros minutos a levantar a plateia numa ovação a Meryl Streep, “a actriz mais sobrevalorizado dos últimos anos”. Isto tudo com uma contenção que se tornou mais e mais apreciável à medida que a noite avançou - não houve histrionismo nem piada gratuita (bom, talvez a do O. J. Simpson …) e houve sempre a certeza que ele sabia para onde queria levar toda a gente.
Pouca coisa do discurso - e da prática - de Trump sobre a América e o mundo terá ficado de fora. Com perícia. Falou-se de imigração, de discriminação, de fake news (de medieval news …), da Suécia, de Ivanka Trump (“nice dress”, disse Kimmel a Meryl Streep, "é da Ivanka?") e claro dos tweets de Donald Trump (quão fantástico é, relembrou um imperturbável Kimmel à audiência, saberem que amanhã deverão estar em letras maiúsculas no Twitter dele). Já a noite ia avançada quando o apresentador decidiu mesmo enviar uma mensagem a Donald Trump (no Twitter, claro) e o ecrã mostrou a seguinte imagem:
Discriminação, liberdade, migrantes, união, solidariedade, verdade foram também as palavras que vencedores, vencidos e convidados levaram ao palco do Dolby Theater. A Academia, ela própria tantos anos acusada de cobardias e dissimulações várias, este ano mostrou-se apostada em marcar uma posição. Premiar o um filme iraniano como melhor filme estrangeiro, de um realizador ausente, em protesto contra o decreto da imigração de Trump, será isso mesmo, marcar uma posição.
E a verdade é que em poucas edições os prémios terão sido distribuídos com tanto equilíbrio e com o sentimento latente de justiça. Como se a Academia tivesse chamado a si uma espécie de papel regulador e em alguns casos corretor dos males que afectam o mundo. Não estamos habituados. Viola Davis ganhou o prémio de melhor actriz secundária. Viola Davis, a extraordinária, a mulher que clamou em plenos pulmões para que se exumem os corpos e se conte a sua paixão - o que fez deles humanos. Porque o que faz das pessoas humanos é o que faz deles, e dela em particular, actores.
Mahershala Ali ganhou o Óscar de melhor actor secundário. Pela primeira vez, um muçulmano ganhou um Óscar na noite dos Óscares que ainda há um ano eram apelidados de “tão brancos”.
Damian Chazelle venceu como realizador e tornou-se o mais jovem de sempre a consegui-lo.
Casey Afleck, a braços com acusações de teor sexual, não deixou de ser premiado como melhor actor pelo desempenho de tirar o fôlego em "Manchester by the Sea".
Podem parecer, mas não são decisões nada fáceis. Pelo contrário, são decisões que num ano normal atirariam Hollywood para o politicamente correcto. Não seriam tantos negros, muçulmanos, jovens, sob suspeita ou pelo menos certamente não seriam todos numa mesma edição. Sobretudo numa edição antecipadamente vista como de celebração do sonho americano - há lá coisa mais evocativa do que o "La La Land", o filme que chegou à noite de ontem com mais nomeações?
De "La La Land", além de uma melodia maravilhosa que entrará na história do cinema, ficará um jovem realizador premiado, e o sorriso sempre irresistível de uma La La Stone que falou de sorte e de oportunidade quando recebeu a estatueta que a reconhecia como a melhor actriz. Sorte, oportunidade e trabalho, que foi aquilo que Emma Stone disse que a estatueta simbolizava. Ela que ali em palco estava, como só no cinema pode acontecer, a fazer de si própria - ou do seu próprio papel em "La La Land", a actriz que do nada chega à glória.
De certa forma, "La La Land" era uma forma de contar a história destes dias. A história de uma América que mesmo que não seja “great again”, seria pelo menos “do sonho outra vez”. Com o triste final feliz do filme a simbolizar o preço do sonho, lembrando que para “sermos alguém” na vida deixamos para trás aquilo que perdemos, aquilo que esquecemos, aquilo que escolhemos não levar connosco. Podia ser esse também o final escolhido para esta cerimónia dos Óscares. Não surpreenderia ninguém, irritaria algumas pessoas, mas, no fim das contas, conta uma história que é aquela pela qual muitos americanos batalham.
E por breves minutos, foi esse o final antes de passarem os créditos. "La La Land", Óscar de melhor filme, The End.
Só que não.
Em poucos minutos tudo mudou. O sonho americano afinal não era a rapariga bonita que alcança o sucesso e o rapaz charmoso que a deixa seguir o seu caminho - e que de certa forma também encontra o seu próprio caminho de sucesso em modo Rick de Casablanca.
O sonho americano afinal teve uma reviravolta - um plot twist como se diz no cinema. O sonho americano é a história de um rapaz homossexual e negro.
"Moonlight" foi o filme do ano depois de mais uma primeira vez em noite de Óscares: a primeira vez que se trocou o final, que se leu o envelope errado, que vencedores passaram a vencidos (e fizeram-no com honra) e vencidos foram felizes mais do que alguma vez tinham imaginado. "La La Land": os sonhos acontecem. Aos outros.
Na hora da grande confusão, vimos mais uma vez um Jimmy Kimmel sereno a serenar Warren Beaty, o actor veterano a quem aconteceu essa coisa inédita de anunciar um filme vencedor que não era o filme vencedor. Ao princípio da noite, Kimmel tinha dito que não era ele o homem para unir o país - mas se calhar foi.
Artigo atualizado às 13h19 com correções de edição.
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