Há umas semanas, estava a voltar para casa, acabado de fazer exercício físico, quando passo por uma mercearia perto da rua onde vivo. Mercearia com a entrada vedada a clientes, onde agora o comerciante atende os clientes à porta, fruto da pandemia. Estava um senhor à minha frente a ser atendido, na casa dos cinquenta, com um cabelo lambido a fazer lembrar uma espécie de Luís Represas depois de ter passado férias na zona de exclusão de Chernobyl. Mal me vê aproximar faz logo um gesto com a mão a mandar-me chegar para trás, sem dizer uma única palavra. Parecia que eu era um cão e ele era o Cesar Millan, o encantador. Esticou a mão ainda antes de eu me posicionar atrás dele, eu parei e afastei-me um pouco mais. O homem volta a olhar para trás e faz o seu gesto com a mão como se ele fosse o Magneto e eu fosse um bocado de metal.

“Afaste-se!”, diz-me num tom que fazia crer ser meio atrasado mental ou bêbedo, não consegui precisar. Quando digo atrasado mental, digo alguém que não tem respeito pelos outros e não alguém com problemas mentais, se bem que estávamos perto do Júlio de Matos. Eu respondo: “Estou afastado”. E ao que ele diz: “São dois metros!”. Segue-se uma gracinha onde pergunto se ele tem uma fita métrica, ele resmunga, eu pergunto-lhe porque não usa a máscara que tem no queixo. Segue-se um bate-boca exaltado onde eu pergunto se a pandemia lhe tirou a boa educação e que bastava pedir para me afastar e não me tratar como se fosse um cão. Ele lá refila mais um pouco, e recebe o pedido das mãos do senhor da mercearia. Já sei o que estão a pensar: com tanta preocupação, aposto que ele só pode ter saído de casa para ir à mercearia comprar bens de primeira necessidade, certo? Acertaram, ele lá agarra nas cervejas e segue o caminho dele.

À ida para casa, passo por uma esplanada e quem é que vejo lá sentado? O senhor do cabelo lambido, no meio de pelo menos dez pessoas, nenhuma delas à distância de dois metros. Talvez fossem coabitantes, numa espécie da casa dos Youtubers, mas ainda mais deprimente. Chamei-lhe logo vários nomes na minha cabeça por estar com tantas preocupações e agora estar a beber cerveja no café. Café esse pelo qual passo quase todos os dias e o senhor do cabelo lambido está lá sempre, na esplanada ou lá dentro, com pessoas diferentes à volta, e sempre com a sua máscara no queixo. Sempre que o vejo resisto à tentação de dizer: “Tanta preocupação no outro dia por causa de vinte centímetros e está aqui todos os dias no café ao molho”. Não o faço porque ao contrário dele, sou bem-educado. E choninhas, vá.

Bem, isto passou-se e a semana passada fui a um parque aquático no Algarve. Estava limitado a metade da lotação devido à covid, mas parece-me que é como fazem nos saldos: aumentaram antes, para depois metade ser o que era originalmente. Estava com demasiada gente, mas sol e cloro mata o bicho, dizem. O maior problema é nas filas, onde se aglomeram algumas pessoas, embora existam marcas no chão para os grupos se manterem afastados. Bolas azuis e amarelas, grandes, que dizem em letras garrafais “MANTENHA UMA DISTÂNCIA DE 2M”. Aposto que quando colocaram aquilo pensaram “Será que precisamos disto?” e alguém disse “É melhor, por causa dos burros”.

O problema é que nem assim os burros respeitam. Foram várias vezes onde as pessoas que esperavam atrás na fila se encostavam a mim. Quando digo encostar é mesmo encostar, sentir pele com pele. Bem sei que eu fico muito sensual de calção de banho, mas há que resistir e manter a distância. Devem ser pessoas que não veem as notícias e não sabem ler os sinais, tanto os do chão como o meu suspirar de descontentamento e olhar de lado com ar condenatório. Dei por mim a dizer bem alto para os meus amigos “O que serão estes sinais no chão? Que estranho…” a ver se os burros de trás percebiam. Não perceberam. Depois, pensei: se eu estou assim tão preocupado com o distanciamento social das outras pessoas, não deveria ter vindo ao parque aquático. E, nisto, percebi que sou igual ao Luís Represas de Chernobyl. Todos diferentes, todos meio palermas.

Para ir: Stand-up comedy no Teatro Maria Matos, Lisboa

Para ir: Banana-Papaia ao vivo no Teatro Sá da Bandeira, Porto