Depois de ouvir a mensagem de Natal do Cardeal Patriarca de Lisboa, li a nova Carta Apostólica do Papa Francisco: “Admirabile Signum” (“Sinal Admirável”) sobre o Presépio, apresentada mesmo a tempo do Natal de 2019, na qual Francisco sublinha a importância da armação do presépio através de um processo de realização que designa de “exercício de imaginação criativa, que recorre aos mais variados materiais para produzir, em miniatura, obras-primas de beleza”.
É a partir do pobre estábulo de Belém, como lhe chamou Ferreira de Castro, em Belém de Judá, Palestina, no tempo do rei Herodes, que se assinala o primeiro Natal e com ele o culto da Natividade e a sua figuração. O início da tradição da armação do presépio remonta há 796 anos atrás, quando em 25 de dezembro de 1223, foi animada pela primeira vez por São Francisco a primeira representação da natividade de Cristo.
O Papa Francisco relembra os pormenores do nascimento de Jesus em Belém, narrados no Evangelho: “O evangelista Lucas limita-se a dizer que, tendo-se completado os dias de Maria dar à luz, ‘teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria’ (2, 7). Jesus é colocado numa manjedoura, que, em latim, se diz praesepium, donde vem a nossa palavra presépio.”
Dá-nos conta ainda da sua origem tal como hoje é entendido: “A mente leva-nos a Gréccio, na Valada de Rieti; aqui se deteve São Francisco, provavelmente quando vinha de Roma onde recebera, do Papa Honório III, a aprovação da sua Regra em 29 de novembro de 1223. Aquelas grutas, depois da sua viagem à Terra Santa, faziam-lhe lembrar de modo particular a paisagem de Belém. E é possível que, em Roma, o ‘Poverello’ de Assis tenha ficado encantado com os mosaicos, na Basílica de Santa Maria Maior, que representam a natividade de Jesus e se encontram perto do lugar onde, segundo uma antiga tradição, se conservam precisamente as tábuas da manjedoura.” E prossegue: “As Fontes Franciscanas narram, de forma detalhada, o que aconteceu em Gréccio. Quinze dias antes do Natal, Francisco chamou João, um homem daquela terra, para lhe pedir que o ajudasse a concretizar um desejo: ‘Quero representar o Menino nascido em Belém, para de algum modo ver com os olhos do corpo os incómodos que Ele padeceu pela falta das coisas necessárias a um recém-nascido, tendo sido reclinado na palha duma manjedoura, entre o boi e o burro’. Mal acabara de o ouvir, o fiel amigo foi preparar, no lugar designado, tudo o que era necessário segundo o desejo do Santo. No dia 25 de dezembro, chegaram a Gréccio muitos frades, vindos de vários lados, e também homens e mulheres das casas da região, trazendo flores e tochas para iluminar aquela noite santa. Francisco, ao chegar, encontrou a manjedoura com palha, o boi e o burro. À vista da representação do Natal, as pessoas lá reunidas manifestaram uma alegria indescritível, como nunca tinham sentido antes. Depois o sacerdote celebrou solenemente a Eucaristia sobre a manjedoura, mostrando também deste modo a ligação que existe entre a Encarnação do Filho de Deus e a Eucaristia. Em Gréccio, naquela ocasião, não havia figuras: o Presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes.”
A etnologia da Natal Alentejano, da autoria de Inácio Pestana, conta que São Francisco pretendeu reconstruir ao vivo esse momento histórico e transcendental do nascimento de Jesus Salvador na gruta de Belém e que de Itália rapidamente a experiência franciscana se propagou pela Europa, concretamente por Portugal, Espanha e França. Em Portugal vêmo-lo logo na Idade Média presente nas cantigas de folia dançadas em frente ao presépio. Acrescenta que em Gil Vicente (sec. XV-XVI) já “lá está o mistério da Natividade na Sibila Cassandra, na Mofina Mendes, na Visitação no Auto do Vaqueiro, como presente está na pena de Vasco Pires, depois de Alexandre Gusmão, Manuel Bernardes, Frei Agostinho da Cruz...”
Na biografia de Machado de Castro, um dos grandes mestres escultores presepistas portugueses, da autoria de Manuel Mendes, são descritos os presépios portugueses do artista, à época, e que emanam da cultura popular vestidos então com a moda do século XVIII: “O arranjo é quase sempre o mesmo. Ao centro, entre umas ruínas de arquitectura pomposa e cenográfica está a estrebaria de Belém, e nela a Santa Família e os animais de manjadoura, de olhos ternos e pacíficos. De longe vieram a Belém, guiados por uma estrelinha, que lá está, também, viva, a brilhar, os pastores e os três Reis Magos, - uns com oferendas de ovos, de galinhas, de queijos, de cabritos, e os três outros com a mirra, o incenso e o ouro. Á volta, numa montanha de fantasia, há grutas, penedos, caminhos, fontes que cantam. Nela se agita uma verdadeira multidão de romaria – cavalgadas, grupos de camponeses, cegos cantando e tocando e cantando, pobres pedindo, garotos correndo, taberninhas com pipos, locandas, mulheres dos bolos e das castanhas, bêbedos, bailaricos. Aqui vêem-se uns que merendam sobre a relva, mais além outros que se batem em rixas e disputas, à faca e a pau. Para outra banda, cenas domésticas – a matança do porco, a velha que fia na roca, o sapateiro que bate a sola. O povo embrulha-se com os fidalgos, e ao longe passam militares de grande uniforme. É um momento de arraial, movimentado, estridente, palpitante de realidade, com música, vinho e berraria.” José Régio, nosso contemporâneo, no seu célebre volume sobre o “Natal na Arte Portuguesa”, descreve a euforia da armação do presépio a partir do seu olhar imaginativo de criança na qualidade de mestre do improviso: “os presépios ou cascatas de pedras, caixotes, papéis, musgo, ramos, casinhas de papelão, figurinhas de barro, lagos de bocados de espelhos, estrelas de papel dos chocolates, que erigíamos sobre uma velha cómoda ou mesa, num canapé de madeira, num canto as sala de jantar, no patamar da escada.”
Nesta Carta, o Papa Francisco retoma para a adultícia essas memórias afectivas do ser criança: “a mente corre de bom grado aos tempos em que se era criança e se esperava, com impaciência, o tempo para começar a construí-lo. Estas recordações induzem-nos a tomar consciência sempre de novo do grande dom que nos foi feito, transmitindo-nos a fé; e ao mesmo tempo, fazem-nos sentir o dever e a alegria de comunicar a mesma experiência aos filhos e netos. Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-la cada ano. O que conta, é que fale à nossa vida”. Para então concluir “o Presépio faz parte do suave e exigente processo de transmissão da fé. A partir da infância e, depois, em cada idade da vida, educa-nos para contemplar Jesus, sentir o amor de Deus por nós, sentir e acreditar que Deus está connosco e nós estamos com Ele (...).”
Talvez as tais memórias afectivas, juntamente com a fé, expliquem o facto de, ainda hoje, a armação do presépio - seja em casa, no trabalho, no condomínio, na escola, na igreja, em lojas ou na via pública, ser uma tradição tão sólida na nossa cultura. Talvez os seus profundos sinais expliquem a outra parte que inspira um convívio mais harmonioso e próximo entre todos os que colaboram para a sua construção e contemplação. Celebremos por isso ao ano novo, acrescentando agora os três reis, com esta tradição da realização de um Presépio com um menino “em palhinhas deitado”. Relembrando, por exemplo, outro desses muitos sinais, tão próximo do verdadeiro espírito do Natal e tão bem expresso na trova citada por José Régio no mesmo volume sobre o Natal na arte portuguesa:
“Os filhos dos homens
Em berço doirado,
E vós, meu menino,
Em palhas deitado!”
Feliz Ano Novo!
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