Quero falar-lhes de Kemal.
i am just simple bosnian man my brother who want to others that what i want for myself
Há ali um país, que é uma bomba relógio de tensões étnicas, e que um dia explodirá. Chama-se Macedónia, e a capital, Skopjie, está dividida entre uma parte mais moderna, macedónia, e uma mais desordenada e menos geométrica, de vielas e mesquitas, a parte albanesa. Ali a uns duzentos quilómetros, em direcção à Grécia, há uma deslumbrante estrada de montanha, com um rio em baixo, coisa de postal. Vai dar à cidade de Gevgelija, onde está instalado um campo de refugiados, gerido pela ACNUR, pela Cruz Vermelha, e por um exército de boa vontade formado por voluntários que decidiram estender a mão aos grupos, cada vez maiores, de pessoas que vinham a pé, da Grécia e do Inferno de países em guerra, países de pobreza extrema, estado islâmico assassino, à solta, cidades arrasadas, toda a esperança negada.
Esta cidade, em tempos chamada de Las Vegas dos Balcãs, por ter tantos casinos, tem um campo onde ninguém dorme. Está 24 horas seguidas a receber refugiados e a indicar-lhes o caminho para o comboio, os autocarros ou os táxis, que depois os levam mais para Norte, para o próximo campo, já na Sérvia. E daí hão de avançar sempre mais para norte: Croácia, Áustria, Alemanha. Talvez Noruega ou Suécia. O sonho de paz segue o sentido da bússola: é algures a Norte.
No dia que lá passámos, no campo de Gevgelija, a ajudar como pudemos e soubemos, entraram neste campo mais de 10 mil refugiados. Da Síria, mas também da Somália, Eritreia, Sudão do Sul. E também Egipto. Sim. E Bangladesh, Paquistão, Irão e Afeganistão. Há de tudo. Um professor catedrático de História e História da Arte, que dava aulas numa universidade em Damasco e agora está ali, com a mulher e os dois filhos. A explicar que não entende como a Hungria fechou as fronteiras se, de 1946 em diante, assistiu a uma fuga em massa de refugiados que fugiam do controlo soviético e procuravam abrigo e futuro no ocidente europeu. "They must have forgotten", dizia ele, enquanto recebia a sandes, o sumo, as passas e, à entrada do campo, apresentava a mulher e os dois filhos. "If not Hungary, maybe Germany".
Um outro casal sírio perguntava-me, enquanto recebia a comida que nós tínhamos ali para lhes dar, acompanhada de um "welcome": de onde eu era. Portugal, respondi.
De trás dos pais, descobre-se um miúdo, 8/10 anos, que exclama, sorrindo "Portugal? Me too!", e aponta para a t-shirt onde está a foto e o nome de Cristiano Ronaldo.
Uma outra criança, esta de dois anos, com o pé ferido, chora, enquanto a minha mulher lhe limpa esse pé. Depois calçamos-lhe umas meias e uns ténis. E ilumina-se aquele rosto, um olhar de súbito conforto e o aconchego de uns pezinhos enfim quentes.
Uma mulher da Somália, com dois filhos pequenos, explica que perdeu marido, pais e sogros na travessia do mar que desaguou neste caminho das pedras, literalmente. E pergunta, na ingenuidade que diz muito sobre muitas destas pessoas e as expectativas que têm: "Germany, one day walk?"
Não, minha senhora, ainda tem muito caminho de pedras para andar.
Fomos à Macedónia com a ideia de ajudar a descarregar as mais de 30 toneladas de ajuda que milhares de portugueses reuniram, para minorar o sofrimento destes refugiados em fuga. A associação "It's Our problem" e "A Solidariedade não conhece Fronteiras" lançaram esta iniciativa, as companhias de transportes TorresTir e Garland ofereceram os camiões e os serviços dos motoristas. A burocracia e a falta de um papel (parece um sketch, mas não) mantiveram os camiões, motoristas e carga humanitária retidos na alfandega da Macedónia primeiro e depois na da Sérvia. Dias de angústia, frustração e a constatação de que estes países estão prisioneiros de uma lógica de exercício do pequeno poder, corrupção latente, uma cortina de ferro que vive dentro das cabeças de funcionários mal pagos e sem mundo nem vontade de facilitar um milímetro.
A ajuda do ACNUR em português foi decisiva e a carga humanitária foi enfim entregue a quem precisa, já na Croácia. Os milhares de portugueses que deram roupa, brinquedos e comida podem ficar descansados: a ajuda chegou. E, daquilo que vi, pode mesmo fazer a diferença.
Mas gostava que conhecessem Kemal.
"Leave emotions out of the camp", recomendava ele, de olhos cheios de lágrimas, perante uma mulher em pânico porque de repente não sabe da família, naquela confusão de gente e tendas com letras que ela não conhece, numa língua que não é a sua, num chão que lhe é tão estranho como seria Marte.
Kemal é um bósnio que é o mais próximo que conheço de santidade em forma humana. Altruísmo, desapego a valores materiais, entrega total à causa da ajuda ao próximo. E gentileza em todos os momentos. Um exemplo que me ficará, para a vida. Um dia quero mostrar-lhe a minha terra, os nossos filhos, e explicar-lhes que foi este senhor de barba rala e olhos profundos que ficou com as mochilas da Maria, do Francisco e do Miguel cheias de brinquedos que foram deles e agora estão nas mãos de outras crianças, para quem um Capitão Gancho, um Dinossauro, um Homem Aranha são um tesouro e uma espécie de portal da imaginação de novo aberta para a infância, que está a acontecer e tem de acontecer, mesmo no meio deste pesadelo.
Ter ido com a minha mulher, num labour of love, até este campo de refugiados. (Obrigado, Rita, por seres a minha Angelina Jolie. Gosto de pensar que isso faz de mim um bocadinho Brad Pitt. :-)) A sério, ter lá estado. E trabalhado para minorar o sofrimento daquela gente. Ter conhecido o Kemal, mas também a Mariana, a Cláudia, a Sandra e a Ana. O nosso improvisado guia que nos mostrou a cidade velha e nos deixou numa casa de chá turco, e nos ofereceu umas uvas sem graínha, enquanto ia fazer a sua reza do meio dia à mesquita. O Mohamed que tem uma loja e gasta boa parte do lucro a ajudar refugiados.
Ter ido foi ter encarado de frente a diferença, e ter confirmado, uma vez mais, que mesmo nas mais extremas diferenças, somos mais parecidos do que pode parecer. Just people, não é?
Não sei como vai a Europa lidar com o que está a acontecer. Mas sei que ter o gesto de ajudar o próximo é um legado que se deixa. Todo o tempo da viagem pensei muito no Gonçalo, na Maria e na Mafaldinha. Da sorte que todos temos por nos termos a todos. Por termos nascido aqui e vivermos neste país.
Esta viagem e esta experiência ficam para sempre, na pele e na memória. Como as experiencias da vida que marcam a fronteira entre um antes e um depois.
Que tenha servido para ajudar, mesmo sendo uma gota no oceano como sabemos que foi. Oxalá. In sha Allah, como diria Kemal.
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