O início
Desde a descoberta dos núcleos dos átomos por Ernest Rutherford, que o mote estava lançado. A “Era Atómica” dava os seus primeiros e promissores passos. No entanto, o percurso da utilização das potencialidades do átomo pela Humanidade tem sido acidentado. A descoberta da fissão nuclear por Otto Robert Frisch levou ao desenvolvimento e posterior utilização da bomba atómica, através do famoso projeto Manhattan, pelos Estados Unidos da América, em 1945. No campo da radiação propriamente dita, os trabalhos de Becquerel e de Pierre e Marie Curie, levaram à compreensão do fenómeno de emissão de raios-X primeiro observada por Roentgen, a que apelidaram de “radioatividade”.
Assim, em paralelo com o caminho de desenvolvimento da utilização do átomo como arma de destruição, um caminho paralelo era igualmente percorrido, a par e passo com o anterior, de forma benéfica para a humanidade. Aliás, logo após a célebre primeira radiografia realizada em 1896 pelo descobridor dos raios-X, Roentgen, da mão da sua esposa, Anna Bertha (tornando-se assim o pai da radiologia de diagnóstico), este apercebeu-se do potencial desta tecnologia em medicina. Um ano após a descoberta de Roentgen, Emil Grubbe começou a utilizá-los, nos EUA, como forma de tratamento.
Ao mesmo tempo, Marie Curie, punha em prática as suas recentes descobertas sobre a radioatividade como forma de terapia para erradicação de células tumorais, tendo levado à fundação, em 1909, do Institut du Radium (hoje Instituto Curie), o primeiro centro de investigação em radioterapia do mundo, ainda hoje em funcionamento, e um dos mais importantes centros de investigação nestas áreas a nível global. Em 1934, Fréderic e Irène Juliot-Curie (filha de Pierre e Marie Curie) descobriam uma forma de produzir radioatividade induzida, ao verificarem que irradiando uma folha de alumínio com polónio esta continuava a emitir partículas beta, mesmo quando não mais exposta ao mesmo material. Em 1936, John Lawrence começa a utilizar um isótopo de Fósforo radioativo para o tratamento de leucemias. Em 1946, o Oak Ridge National Laboratory, nos EUA, começa a produzir materiais radioativos para utilização em medicina. Estes foram os primeiros passos para a criação dos primeiros radiofármacos, e vê-se depois nascer a Medicina Nuclear.
As consequências de cada um destes dois caminhos paralelos não podiam ser mais díspares. O primeiro culmina com a utilização da bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki. O segundo, em avanços ímpares no diagnóstico e tratamento de doenças como o cancro.
O Pós-Guerra
O mundo começava a perceber o perigo, e ao mesmo tempo a importância, das aplicações das tecnologias nucleares e da utilização da radiação. Em 29 de julho de 1957 era fundada a Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA em inglês), com o intuito de promover a utilização pacífica da tecnologia nuclear. EM 1955, a recém-criada Organização das Nações Unidas, cria o Comité Científico das Nações Unidas para os Efeitos da Radiação Atómica (UNSCEAR em inglês).
Apesar de já fundada em 1920, em 1950, e considerando todos os avanços obtidos na utilização da radiação até então, é refundada em Londres a Comissão Internacional de Proteção Radiológica (ICRP em inglês) com o objetivo de produzir recomendações e orientações a nível internacional na aplicação de radiações ionizantes.
Todas estas estruturas serviram de suporte para um espetacular avanço da investigação na área da aplicação das radiações ionizantes não só em medicina, mas em inúmeras atividades humanas. Mas é em medicina que o avanço se faz sentir de forma mais espetacular. Avanços na tecnologia levaram ao desenvolvimento da Tomografia Computorizada (TC) por Hounsfield, baseada no trabalho de Cormack, o que levou a que lhes fosse atribuído o Prémio Nobel em Medicina em 1979. Com a TC, começou a ser possível obter imagens do interior do corpo humano de forma pouco invasiva, levando a uma verdadeira revolução na medicina de diagnóstico.
Os dois percursos paralelos de desenvolvimento desde o início da Era Atómica, um virado para as armas e outro para aplicações benéficas das radiações, voltariam a encontrar-se, e até a cruzar-se, por esta altura. Os dados dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, assim como posteriormente, do acidente de Chernobyl, permitiram obter informações epidemiológicas importantíssimos sobre os efeitos da radiação no corpo humano e no ecossistema, e compreender os mecanismos genéticos e metabólicos da ação da radiação em organismos biológicos, em particular no corpo humano, essenciais para compreender por um lado a carcinogénese associada à radiação, como também os meios eficazes de combate a tumores utilizando radiação.
Um crescimento exponencial
Por outro lado, o exponencial uso da radiação em diferentes atividades humanas cedo revelaram a necessidade de estudos sobre os efeitos nefastos da sua utilização. Enquanto inúmeros cientistas, engenheiros e outros se apressavam em encontrar áreas de aplicação dos recentemente descobertos raios-X, já estudos demonstravam a potencialidade dos mesmos provocarem danos — ou mesmo a morte. Clarence Dally, o assistente de Thomas Edison veio a morrer de complicações associadas à exposição a raios-X devido às experiências utilizado um fluoroscópio — o que inclusivamente levou Edison a deixar de trabalhar com raios-X. Num estudo de 1936 o radiologista Perry Brown de Boston nos EUA publicava um artigo intitulado “American martyrs to science through Roentgen rays” que relatava a morte de vários cientistas e trabalhadores devido à má-prática da utilização dos raios-X. Emil Grubbe, um dos pioneiros na utilização de raios-X em medicina, e referido nos primeiros parágrafos, viria a falecer a 1 de outubro de 1945 devido a complicações derivadas de exposição prolongada à radiação. Estudos a partir dos anos 80, inclusive utilizando dados de Hiroshima e Nagasaki, demonstravam que exposições prolongadas a doses baixas de radiação poderiam ter efeitos mais nefastos do que o inicialmente pensado. Aos poucos, a humanidade começa a perceber a existência de um ponto de equilíbrio na utilização e aplicação das radiações. Se por um lado são inúmeros os benefícios da sua utilização, as más práticas podem levar a consequências gravíssimas, tanto para os trabalhadores expostos, como para os pacientes.
A par e passo com estas descobertas, as instituições acima descritas, o ICRP, a IAEA, a UNSCEAR e outras, apressavam-se a redigir recomendações e orientações que prevenissem as situações acima descritas. Foi criado um sistema de proteção radiológica, incluindo unidades próprias, e enunciados os seus três princípios fundamentais, o princípio da justificação, o princípio da otimização (também conhecido como princípio ALARA, de As Low as Reasonably Achievable em inglês), e o princípio da limitação de doses. A nível de cada país, legislação era criada para a implementação destas orientações e recomendações, de forma a garantir as boas práticas tanto para os trabalhadores como para os doentes.
A atualidade
Em 2006, o National Committee of Radiation Protection (NCRP) dos EUA, publicou um gráfico que veio a mostrar uma realidade nova para a humanidade.
Pela primeira vez na história da humanidade, pelo menos nos EUA, e provavelmente nos restantes países desenvolvidos, a exposição média do ser humano a radiação ionizante produzida artificialmente é superior àquela que é produzida pela própria natureza, e esse facto deve-se sobretudo à utilização da radiação em medicina. O aumento sucessivo de aplicações da radiação em medicina, o uso cada vez mais generalizado de tomografia computorizada, a maior facilidade na produção de radiofármacos (nomeadamente o tecnécio-99-metaestável), assim como o desenvolvimento de novas tecnologias como a PET (posítron-emitting tomography) explicam este aumento.
Ao mesmo tempo, na área da radioterapia, o uso de outras formas de radiação que não os raios-X, como os eletrões, os protões ou outras partículas carregadas, veio trazer novas formas, mais eficientes, de combate ao cancro, lançando o mote para novas terapias melhoradas. Ainda, graças em grande parte ao crescente desenvolvimento das tecnologias e dos princípios relacionados com a radioterapia, a batalha contra o cancro tem visto grandes desenvolvimentos.
A investigação na área da radiação também atingiu novos patamares, com o desenvolvimento de modelos micro e nanodosimétricos que explicam de forma mais detalhada a interação da radiação com a molécula de ADN. Isto deve-se sobretudo ao aumento também exponencial das capacidades computacionais disponíveis, que levou também a que fosse possível criar modelos matemáticos que permitem simular a interação da radiação com o corpo humano de forma extremamente precisa. A modelação de órgãos e tecidos também é possível ser feita hoje em dia de forma extremamente realista.
Nunca antes foram produzidas tantas recomendações e orientações sobre a utilização da radiação. A legislação tornou-se bastante aprofundada e específica nas matérias necessárias de forma a garantir as boas práticas da sua utilização.
Conseguiu-se assim atingir um patamar bastante equilibrado, em que se, por um lado, se utiliza mais radiação do que nunca, esta mesma radiação está a ser utilizada da forma mais optimizada possível, da forma mais benéfica possível. Este ciclo não se completa no entanto, porque novos desafios surgem no horizonte.
O futuro
Apesar de todos estes desenvolvimentos, o mais provável é que a história da nossa relação com a radiação esteja ainda nos seus primórdios. A nossa vivência no planeta Terra assim o permite. Graças ao campo magnético terrestre, somos poupados aos ventos solares, constituídos por partículas carregadas e altamente energéticas. Ainda, a nossa atmosfera protege-nos da restante radiação cósmica que de alguma forma consegue atravessar o campo magnético terrestre. Esta radiação, ao atingir a nossa atmosfera, interage com as moléculas do ar, perdendo energia, dispersando-se, e gerando partículas menos energéticas e portanto, menos prejudiciais. Isto gerou condições extraordinárias que muito provavelmente tiveram o seu papel na criação de vida no nosso planeta.
Mas se o futuro está na exploração espacial, não teremos mais a ajuda destas camadas protetoras. Estima-se que a exposição a radiação em ambiente lunar, por exemplo, seja cerca de 20 a 100 vezes o valor de exposição à superfície da Terra.
O planeta Marte, que aparece muitas vezes como o primeiro planeta a vir a ser explorado, não possui um campo magnético, e, por conseguinte, possui uma atmosfera muito mais fina que a atmosfera terrestre. Isto significa que a radiação à superfície do planeta vermelho atinge níveis muito superiores aos valores que estamos habituados à superfície do nosso planeta. Sem um campo magnético para os proteger, os potenciais primeiros exploradores deste planeta estariam sujeitos a um bombardeamento constante por protões e outros iões carregados que tornariam a viagem impossível sem algum tipo de proteção extrema. Para não falar na questão da viagem dos astronautas até lá, que também acarreta uma exposição demasiado elevada a radiação.
A NASA está bem ciente destes problemas, tendo já algumas ideias sobre como proteger os astronautas e outras formas de vida nestes ambientes extremos. Em primeiro lugar, há já uma literatura bastante grande sobre simulações realizadas para determinar as doses e as características dos campos de dose tanto em Marte como na Lua. Em segundo, existem estudos de como utilizar materiais para blindar a radiação dos humanos, bombardeando-os com feixes energéticos de partículas. Isto tem permitido o desenvolvimento de conhecimento importante nesta área.
Como podemos ver, os desafios são gigantescos. No entanto, graças aos conhecimentos e ao desenvolvimento tecnológico que tem sido adquirido ao longo dos últimos séculos, desde a descoberta do núcleo do átomo por Rutherford, possuímos as ferramentas necessárias para conseguir ultrapassá-los. Fica, no entanto, claro que a nossa relação com a radiação, tanto para o bem como para o mal, veio para ficar.
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