A tecnologia é apontada como motivo para a separação física das pessoas e para a solidão, apesar de se estar ligado em redes ditas sociais e por telemóvel. Essa constatação não é nova: a 26 de Dezembro de 1906, um desenho numa revista antecipava a solidão entre pessoas ligadas a dispositivos de telecomunicações.
Há 110 anos, a revista inglesa Punch, or The London Charivari, publicou uma imagem de antecipação sobre o ano seguinte. Com o título de "Previsões para 1907", nela viam-se duas pessoas no londrino Hyde Park que, segundo a legenda, antecipava "o desenvolvimento da telegrafia sem fios" (que então estava em crescendo, dinamizada por Gugliemo Marconi), com duas pessoas que não comunicavam entre si. A dama estava a receber uma mensagem erótica ("amatory message"), enquanto o cavalheiro acedia aos resultados de corridas desportivas.
O "cartoon" fazia parte de uma série de quatro, pelo menos, desenhados por Lewis Baumer. Um outro trabalho gráfico do mesmo autor, impresso na edição de 5 de Dezembro desse ano e que aparenta ser a primeira imagem da série, mostra um médico a visitar a clientela em balão.
A Punch foi uma revista humorística, publicada entre 1841 e 2002. Foi ela que generalizou o termo "cartoon" e surgiu como equivalente britânico à edição francesa Le Charivari - daí a expressão inicial "The London Charivari" -, uma publicação surgida no final de 1832 e que foi posteriormente replicada em vários países.
No final do século XIX, a revista inglesa dava alguma atenção aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, como um "photophone" que surge no Punch's Almanack de 1881.
1906 a 2016: descubra as diferenças
Perante o "cartoon" da Punch de 1906, há vários aspectos diferentes com a actualidade, embora algumas semelhanças sejam premonitórias. Em síntese:
- não são apenas as classes altas a terem acesso aos dispositivos móveis mas são elas quem mais se interessa por notícias;
- a actual quantidade de informação é muito maior;
- a antena não está no chapéu de damas ou de cavalheiros mas no próprio dispositivo;
- não é preciso estar sentado (bem pelo contrário) para aceder ao dispositivo tecnológico;
- a solidão derivada do uso das tecnologias e das chamadas redes sociais é tida como preocupante.
No primeiro caso, Portugal é um bom exemplo. Segundo dados da autoridade reguladora Anacom, o número de utilizadores efectivos no terceiro trimestre deste ano "aumentou 8,2% em relação ao trimestre anterior e 12,2% face ao trimestre homólogo, atingindo 6,14 milhões" de utilizadores, enquanto o acesso à Internet fixa chegou aos 3,3 milhões de subscritores. Também "o tráfego de acesso à Internet através dos acessos móveis aumentou 31,4% neste trimestre".
Por mês, o tráfego médio no "acesso à Internet em banda larga em local fixo foi de 62,3 GB, enquanto "o tráfego gerado por cliente de banda larga móvel com utilização efectiva foi de 1,93 GB", valor que sobe para 10,3 GB no uso de tablets ou PC portátil.
Os tablets e os smartphones são usados por 3,6 milhões de utilizadores nacionais para acederem a notícias. Segundo os dados para 2016 do Bareme Internet da Marktest, este "hábito de ler notícias no telemóvel ou tablet quadruplicou em quatro anos" (eram 9,9% em 2012, enquanto no ano passado se cifrava nos 34,9%). A análise centra-se em indivíduos com 15 e mais anos, residentes em Portugal Continental, e corresponde a 41,7% do universo total mas tem variações etárias e sociais significativas.
A leitura de notícias no tablet ou telemóvel é comum para 76,1% dos jovens entre os 15 e os 24 anos, percentagem que baixa para os 4,4% acima dos utilizadores com mais de 64 anos. Ler notícias nesses dispositivos móveis "é hábito de 75,5% dos indivíduos da classe alta e de apenas 11,7% dos indivíduos da classe baixa".
Na recente apresentação "Mobile Is Eating the World", o analista Benedict Evans da empresa de "venture capital" Andreessen Horowitz confirma essa tendência a nível mundial.
O número de utilizadores de dispositivos móveis em 2015 estava perto de se equiparar com o número de adultos (com a ressalva de que há utilizadores com mais de um dispositivo). Mas se o número desses dispositivos ultrapassava os cinco mil milhões, já os computadores pessoais ficavam-se pelos 1.500 milhões de unidades.
O que é um zetabyte?
Em Portugal, 79 sites noticiosos tiveram em Novembro uma média diária de cerca de 43 milhões de visualizações de páginas Web ("pageviews").
Segundo os dados do Netscope da Marktest, no total, esses sites conseguiram um tráfego de 1.295 milhões de "pageviews", com o consumo móvel a representar 41% de "pageviews". Em 27 dos sites, este tipo de acesso "correspondeu a mais de metade do seu tráfego total".
Se estes números parecem astronómicos, calculava-se que a Web tinha em Março passado mil milhões de sites (sem contar com a chamada "Dark Web"), num total de 4.660 milhões de páginas Web. O tráfego global da Internet deve ter atingido este ano os 1,1 zetabytes, devendo chegar aos 2 zetabytes anuais em 2019. "Um zetabyte é o equivalente a 36 mil anos de vídeo em alta definição", explicava a Live Science.
Neste dilúvio de dados, há quem assuma problemas com a sobrecarga de informação. Nos EUA, 20% dos 1.520 inquiridos em Abril pelo Pew Research Center assumiram alguma "ansiedade" (eram 27% há uma década), enquanto 77% assume gostar de ter tanta informação disponível e sentir-se confortável na sua gestão. Curiosamente, os que têm mais acesso online (por banda larga doméstica, smartphone e tablet) assumem saber gerir melhor a informação, ao contrário dos que têm um ou nenhum dispositivo.
O que nos leva ao terceiro ponto. A antena não está no chapéu das damas ou dos cavalheiros, mas no próprio dispositivo e a apropriação destes para acesso sem fios a conteúdos está a alterar-se radicalmente.
Em Outubro, pela primeira vez, o acesso à Internet nos dispositivos móveis ultrapassou o acesso em computadores "desktop", atingindo os 51,3% de utilizadores, segundo a empresa de analítica Web StatCounter.
Para Portugal, segundo dados de Janeiro a Dezembro deste ano, a média no acesso ainda é maioritária para o computador (82,8%), seguindo-se o telemóvel (12,5%), o tablet (4,2%) e, com reduzida expressão abaixo de 1%, as consolas de videojogos.
Mas, como nota Benedict Evans, o impacto nos lucros anuais das empresas já se faz sentir desde o início da década. No ano passado, enquanto os computadores Wintel (contração do sistema operativo Windows, da Microsoft, com os processadores da Intel) tiveram um retorno a rondar os 150 mil milhões de dólares, o conjunto de empresas GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) ultrapassou os 400 mil milhões de dólares.
Por outro lado, é também notório que o crescimento de ambas as indústrias numa década em que foram preponderantes foi totalmente diferente. A associação Wintel, entre 1990 e 2000, ficou abaixo dos 50 mil milhões de dólares em lucro anual, enquanto os GAFA ultrapassaram os 400 mil milhões de dólares entre 2005 e 2015.
A questão é tanto mais preocupante para a indústria dos PCs dado que tem estabilizado no tempo de acesso online nos EUA, enquanto as aplicações móveis continuam a crescer, pelo menos desde 2013, segundo os dados da Andreessen Horowitz.
Os smartphones e os computadores estão a transformar as nossas mãos
A quarta diferença com o "cartoon" premonitório de Baumer é que já não é preciso estar sentado para ter acesso à informação. O "próximo estágio da evolução humana" é a "caminhada do telefone", o "phone walk" como foi denominado.
Mas esta tendência acarreta problemas físicos. "Andar enquanto se usa um telefone muda fisicamente a maneira como as pernas se movem", também afecta o pescoço (por se estar a olhar para baixo, para o ecrã do telemóvel) e coloca pressão na coluna vertebral. Aliás, a imagem da Punch retrata a senhora precisamente com este sintoma.
O uso de dispositivos móveis e de computadores está a criar um outro problema físico: as mãos humanas estão a modificar-se. "E se, ao invés de nos focarmos nas novas promessas ou descontentamentos da civilização contemporânea, víssemos as mudanças de hoje como as primeiras e principais mudanças no que os seres humanos fazem com as mãos? A era digital pode ter transformado muitos aspectos da nossa experiência, mas a sua característica mais óbvia embora ainda negligenciada é que permite às pessoas manter as suas mãos ocupadas numa variedade de formas sem precedentes", escrevia Darian Leader, autor do livro "Hands".
"Teremos mãos diferentes, da mesma forma que a boca foi alterada pelo uso dos talheres, que mudou a topografia da mordida" na comida, salientando que os médicos já estão a detectar essas mudanças quando os dedos e o pulso estão a ser usados para novos movimentos para os quais não foram treinados - pelo menos nas gerações mais antigas.
O mesmo está a suceder com a vista, com a chamada síndrome da visão do computador, que afecta mais de 70 milhões de pessoas em todo o mundo "e só tem tendência a aumentar". Os principais afectados, que não conseguem trabalhar sem o uso do computador, são "contabilistas, arquitectos, bancários, engenheiros, controladores de voo, artistas gráficos, jornalistas, académicos, secretárias e estudantes". Além das crianças e jovens que abusam dos videojogos.
Uma razão pela qual este problema está tão generalizado deve-se a que, "ao contrário das palavras impressas numa página que tem bordas acentuadamente definida, os caracteres electrónicos, que são compostos por pixéis, têm as bordas desfocadas, tornando mais difícil aos olhos manter o foco. Inconscientemente, os olhos tentam repetidamente descansar, deslocando o seu foco para uma área atrás do ecrã, e essa mudança constante entre ecrã e ponto de descanso cria fadiga visual".
Acresce que "outro efeito inconsciente é uma frequência muito reduzida de piscar os olhos, o que pode resultar em olhos secos e irritados. Em vez da taxa normal de 17 ou mais piscadelas por minuto, enquanto se trabalha ao computador essa taxa é muitas vezes reduzida a apenas cerca de 12 a 15 piscadelas".
Solidão sem estar só
A par dos efeitos físicos, o uso das tecnologias de comunicação faz emergir problemas com os relacionamentos sociais e uma potencial solidão derivada do uso das chamadas redes sociais, que é vista como preocupante. A ilustração de Baumer é, nesse sentido, bastante actual.
Numa análise ao livro "Reclaiming Conversation", de Sherry Turkle, explica-se que nos tempos actuais, "estar sozinho com a tecnologia é, assim, não estar completamente sozinho, não completamente desligado. Esta é uma situação profundamente ambivalente, que não é explicada pelas declarações de Turkle sobre a capacidade de corrupção da tecnologia ou sobre a linha do Silicon Valley de que a tecnologia nos salvará. Solidão e isolamento significam algo novo. Se um smartphone significa que estar fisicamente sozinho já não implica automaticamente estar sozinho, então a solidão é agora uma escolha. O isolamento não o é".
Não o é, excepto pelas escolhas que se fazem. Três anos após o "cartoon" de Baumer, um outro autor escreveu uma pequena história de ficção científica (para a época), sobre o isolamento mediado pela tecnologia. Em "The Machine Stops", Edward Morgan Forster antecipa os seres humanos protegidos numa célula de uma espécie de colmeia, gerida por uma Máquina global, e comunicando através de ecrãs. Este pequeno excerto pode ajudar a entender como se previa a solidão mediada por artefactos tecnológicos:
- Já te liguei antes, mãe, mas estás sempre ocupada ou isolada. Tenho algo a dizer-te pessoalmente.
- O que é, querido? Sê rápido, porque não podes enviar por correio pneumático?
- Porque prefiro dizer-te. Quero...
- Sim.
- Quero que venhas e me vejas.
[A mãe] Vashti observou o rosto na placa azul.
- Mas eu posso ver-te, exclamou. O que mais queres?
- Quero ver-te não através da Máquina - disse [o filho] Kuno. Quero falar-te não através da cansativa Máquina.
- Oh, silêncio!, disse a mãe, vagamente chocada. Não deves dizer nada contra a Máquina.
- Porque não?
- Não se deve.
- Falas como se um deus tivesse feito a Máquina, exclamou [Kuno]. Acredito que rezes por isso quando estás infeliz. O homem fê-la, não te esqueças disso. Grandes homens mas homens. A Máquina é muito, mas não é tudo. Eu vejo algo como tu nesta placa mas não te vejo. Eu ouço algo como tu através deste telefone, mas não te ouço. É por isso que quero que venhas. Visita-me para que nos possamos encontrar presencialmente e falar sobre as esperanças que tenho.
Ela respondeu que não conseguia ter tempo para uma visita.
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