Mark Holden é diretor mundial de estratégia e planeamento da PHD, uma rede de agências de meios. Para quem está menos familiarizado com o conceito, são empresas responsáveis pela compra de espaço em media, seja televisão, rádio, Internet, outdoors ou outros e que desempenham, cada vez mais, a sua função suportadas por dados que são obtidos através de vários algoritmos ou sistemas de registo. Mark Holden é, além de um dos responsáveis de topo da PHD, autor do livro “Merge - The closing gap between technology and us”, que serviu também de base ao documentário com o mesmo nome.
O livro contém múltiplas evidências de como a tecnologia nos mudou nos últimos 20 anos, mas apesar dos exemplos com crianças serem os mais comuns de usar, acaba por ser mais interessante pensar numa outra constatação: um reformado consegue hoje através do seu computador e acesso à internet estar mais informado sobre os grandes temas do mundo - em tempo real - do que o presidente dos Estados Unidos há 20 anos.
Já muito ouvimos falar do passo acelerado a que tudo aconteceu, seja pelo número de computadores - um salto cósmico dos anos 50 para os nossos dias - seja pelos acessos à internet, seja por alguns factos impressionantes. Como por exemplo que o nosso smartphone de bolso tem mais capacidade do que os computadores da NASA que colocaram o primeiro astronauta na lua ou que o Raspberry Pi Zero, o computador mais barato do mundo, pesa apenas nove gramas e custa cinco dólares.
A mudança que a tecnologia introduziu nas nossas vidas não abrandou - pelo contrário, continua a acelerar. Ray Kurzweil é um dos nomes ouvidos no livro e no documentário “Merge - closing the gap between technology and us”. Além de diretor de engenharia da Google, é um alguém que há muitos anos se dedica a estudar o futuro e o criador daquela que é conhecida como “The Law of Accelerating Returns”. Basicamente trata-se de um postulado referente à tecnologia pelo qual Kurzweil demonstra que a evolução não está a ser linear mas exponencial. Ou seja, a tecnologia não está a acelerar degrau a degrau (1, 2, 3, 4, 5) mas sim por saltos (1,2, 4,8, 16). Um padrão de crescimento que conhecemos através da Lei de Moore referente à capacidade de processamento que duplica a cada dois anos, mas escalada por Kurzweil para dimensões mais alargadas.
Mesmo que as previsões futuristas do diretor de engenharia da Google não sejam todas consensuais, alguns dados são aceites por quem trabalha estes temas. Como o facto de na próxima década mais quatro mil milhões de pessoas ficarem online. A IDC, empresa especializada em análise de tendências na tecnologia, prevê que em 2025 existam 80 mil milhões de equipamentos ligados à internet, mais do dobro dos 11 mil milhões que existem hoje. E se hoje o Google já nos sugere hotéis ou voos ou nos lembra de compromissos baseado na informação que temos em emails e agendas, no futuro teremos provavelmente assistentes digitais - as Alexas e Siris vão multiplicar-se - a organizar as nossas vidas. No campo da saúde, a aplicação da inteligência artificial terá igualmente consequências que ainda não conseguimos antever realmente.
Aliás, o dado mais sólido é provavelmente esse: com tudo o que sabemos que está a ser desenvolvido, com as leis criadas para enquadrar a multiplicação da tecnologia, a certeza ainda assim maior é que não conseguimos prever como será o futuro e como a tecnologia irá mudar a nossa condição humana.
E, dependendo da perspetiva, isso é fascinante ou assustador.
Foi essa ambiguidade que a Associação Portuguesa de Marketing escolheu para mote do congresso anual que teve lugar, na semana passada, na Porto Business School, e que começou precisamente pela exibição de um excerto do documentário “Merge” seguido de um painel de discussão.
O roteiro do livro e do documentário assenta em cinco etapas. A primeira retrata um tempo que passou, a época de massificação dos computadores pessoais; a segunda mostra invenções chave - “saltos gigantescos” - que criaram a nossa relação diária com a internet e foram a antecâmara do smartphone; a terceira é, na prática, o momento atual em que nos encontramos que representa a maturidade da nova dimensão de vida humana “online” mas com temas novos a agitarem essa dimensão, nomeadamente a forma como estamos a extrair mais informação e o que vamos fazer com ela que é o que nos espera na etapa seguinte, a quarta, com o esplendor da Inteligência Artificial. A quinta etapa - e última, pela menos por agora - é descrita no documentário como aquela que lhe dá título, o “merge” ou a fusão efetiva da tecnologia e da nossa humanidade, com as fronteiras entre ambas a esbaterem-se senão a desaparecerem em alguns casos. Fascinante e assustador - tal como Yuval Harari descreve amplamente no livro “Homo Deus” - criando uma nova forma de evolução humana em que a tecnologia integra aquilo que somos, quer biologicamente, quer na forma como olhamos e nos movimentamos no mundo.
Sendo “Merge” uma reflexão assinada por um executivo da indústria de marketing e de publicidade, com contributo de várias pessoas da rede PHD pelo mundo, é natural que estas premissas sejam aqui abordadas de um ponto de vista específico. O que não é dizer pouco. Marketing é na sua essência a forma como milhões de marcas e as respetivas empresas no mundo inteiro procuram condicionar consumidores, criando-lhes necessidades que os produtos e serviços resolvem. A forma como essa relação entre marcas e consumidores existe tem já hoje uma forte influência da tecnologia, nomeadamente no planeamento de campanhas e no trabalho de dados.
Também já à data de hoje, as marcas trabalham com algoritmos procurando entendê-los e influência-los - e não, não basta pagar para estar posicionado no topo do Google ou para ter um anúncio no facebook ou instagram no grupo de interesse de quem promove. É e vai ser cada vez mais complexo trabalhar nesta plataforma de fusão entre a tecnologia e os humanos, até porque os algoritmos despertam hoje questões cada vez mais complexas, nomeadamente do ponto de vista ético.
E foi este o cenário servido a uma audiência em que marcaram presença alguns dos principais responsáveis de marketing de Portugal, pessoas que decidem como as marcas comunicam, com quem, em que moldes. E não será surpresa constatar que, a par com a necessidade cada vez maior de um uso eficiente das ferramentas que a tecnologia nos traz, há uma percepção da importância que o contacto de pessoas com pessoas tem. Tem para as marcas porque tem para os consumidores que servem e essa dicotomia de avanço tecnológico e regresso aos básicos da nossa humanidade constitui um desafio que dificilmente terá acontecido no passado, pelo menos com esta dimensão.
Bastou ver a forma calorosa com que a audiência acolheu o testemunho de Konstantin Arnold, um alemão de 28 anos a viver em Lisboa, e que se retratou como uma pessoa não digital, sem smartphone, sem redes sociais e com um computador que demora 17 minutos a enviar um email. O que lhe faz sentido já que considera que hoje em dia “estar desligado é o mais importante para ser criativo”.
O tema tem eco nas preocupações dos gestores. António Fuzeta da Ponte, diretor de comunicação da Worten - “uma marca tecnológica que quer ser uma empresa digital” - também traçou fronteiras. Por exemplo, contou, que proibiu a equipa com que trabalha de receber ideias e propostas criativas por email. “Também não mandamos o nosso filho para a escolha pela A5”, brincou. A tecnologia, defendeu, deve “não atrapalhar” e, enquanto humanos, “a virtude de tagarelar” distingue-nos.
Uma marca com uma relação entre dois mundos, entre duas dimensões da nossa evolução é a Casa da Música. Um local de eventos com públicos fiéis à tradição mas também com públicos novos que levam para o espaço da tradição os seus hábitos e necessidades. Há reclame porque a pessoa sentada na cadeira ao lado ligou o telemóvel, e isso interrompeu a sua fruição do concerto, há quem nem pense em não usar o smartphone durante um espetáculo. É nessa linha entre dois mundos que Gilda Veloso, a responsável de comunicação, retratou o seu dia a dia numa marca que gera paixões - descobriram mesmo que “há dois ou três clientes que tem a casa da musica tatuada no peito”.
Mesmo marcas que nasceram enquanto produto da Internet - na segunda etapa como descreve “Merge” - estão especialmente sensíveis à necessidade de convivência da promessa tecnológica com as necessidades da comunicação humana. Foi o que relatou Filipa Martins, diretora geral do SAPO: “para o futuro achamos que o nosso valor acrescentado face às virtual assistants ou outras formas de chegar aos utilizadores passará sempre pela adaptação a estas tecnologias e por humanizar e localizar conteúdo, num mundo em que os algoritmos, por serem globais, nem sempre respeitam a especificidade do local, e por aprenderem com grandes números, nem sempre dão a visão do todo e fecham por vezes os utilizadores em bolhas de informação”.
Os múltiplos relatos que se ouviram - do Futebol Clube do Porto à representação da Bentley e Porsche do Porto, da multinacional Galp à multinacional Turismo de Portugal, dos locais Douro Boys aos locais organizadores do Boom Festival - a convivência da tecnologia com a capacidade de perceber o que somos enquanto humanos foi o traço comum. Tudo muda, nada muda.
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