Já depois de sair do palco principal da Web Summit, onde garantiu que fará tudo o que estiver ao seu alcance para travar o Brexit — “Sou 100% contra o 'Brexit'. Irei fazer tudo para o impedir. Aliás, é possível travá-lo. Não é do nosso interesse político nem económico, vai enfraquecer a Inglaterra e a Europa” —, Tony Blair sentou-se à conversa num palco secundário com Brad Smith, presidente da Microsoft, e Laurie Segall, jornalista da CNN.
Plateia cheia para ver dois “cabeças de cartaz” do terceiro dia da Web Summit, plateia cheia para ver o líder da tecnológica serpentear questões incómodas e Tony Blair a alertar que a forma como vivemos em sociedade está em risco se não formos rápidos a agir. A China já colocou o pé no acelerador.
Laurie Segall, a quem coube guiar esta conversa, não tinha tempo a perder: numa conferência onde a responsabilização das empresas de tecnologia domina as conversas em cima e fora de palco — na sequência de escândalos como o do Cambridge Analytica e face à aparente incapacidade das empresas tecnológicas travarem a disseminação de notícias falsas, ao ponto de isso influenciar eleições ou permitir a incitação à violência em Myanmar — e em que se profetiza um mundo em que a inteligência artificial irá mudar todos os aspetos do nosso dia-a-dia, mas com grandes perigos à espreita, a jornalista da CNN quis saber como é que se passa das palavras para os atos.
“Os governos e os cidadãos estão a responsabilizar as empresas e não acho que isso seja uma coisa má. Alguma pressão mantém as empresas conscientes”, respondeu Brad Smith, o homem ao leme da terceira maior tecnológica do mundo, segundo a Forbes.
Tony Blair foi mais longe: “O maior desafio é que legisladores e promotores de inovação tecnológica se entendam”, notou, alertando que “quando os políticos não percebem algo tendem a ser contra isso”. Em causa, diz, está um desfasamento entre o debate político sobre os desafios que a tecnologia traz e o real entendimento dos mesmos.
A tecnologia que hoje temos capacidade de desenvolver — tendo como referência as potencialidades da Inteligência Artificial (a capacidades dos computadores percecionarem o que acontece no mundo real, analisarem essa informação e tomarem decisões sozinhos) e o seu impacto na sociedade — “é muito poderosa, (…) e se tomarmos decisões erradas ao legislar sobre este setor [da tecnologia] estaremos a prejudicar-nos a nós próprios", disse Blair.
"As grandes empresas [tecnológicas] devem ser reguladas, e os reguladores devem ter meios para garantir que estas não abusam do seu poder e agem de acordo com os valores que defendemos. Mas essa regulação tem de ser flexível para se adaptar, senão ficará rapidamente ultrapassada”, acrescentou o ex-primeiro-ministro, frisando ainda que devemos evitar “criar um clima que limite o investimento e desenvolvimento das empresas de tecnologia” e que é importante envolver estes agentes na discussão e estruturação das regras — "não de uma forma hostil, mas garantindo que são respeitados os direitos dos cidadãos”.
E Brad Smith, defensor da criação de legislação internacional sobre o uso da Inteligência Artificial, acredita que há hoje outra abertura para isso. “É bom refletir no facto de que nos últimos 20 anos a tecnologia avançou rápido, e os governos não acompanharam esta evolução. E as empresas começaram por ver isso como uma coisa boa, porque não desejavam o envolvimento dos governos. Hoje já não é assim”, referiu o presidente da Microsoft.
Pegando na questão do reconhecimento facial, Smith dá o exemplo: “[Na Microsoft] acreditamos que o reconhecimento facial deve estar sujeito à lei e deve ter uma regulação apropriada. Há benefícios claros na tecnologia de reconhecimento facial — como por exemplo encontrar crianças perdidas — mas há um grande 'mas'. O reconhecimento facial muda a nossa vida, pode significar, por exemplo, que quando entramos numa loja o comerciante sabe à partida quando foi a última vez que lá estivemos; ou, imaginemos que há partilha de informação entre lojistas, ele saberá de que loja acabámos de sair. É legítimo as pessoas questionarem-se sobre como será tratada a informação recolhida [com recurso ao reconhecimento facial], mas acredito que os benefícios superam os riscos. Mas antes que acordemos em 2020 e pareça que estamos numa versão 1984 [numa referência ao livro distópico de George Orwell], temos de agir."
Tony Blair defende que Estados Unidos e Europa devem estar alinhados no que diz respeito à regulação do setor “para garantir que tiramos o máximo benefício da tecnologia e a usamos de uma forma que é consonante com os nossos valores”. “Muitas vezes tomamos por garantido o nosso sistema de valores, (…) mas o sistema ocidental [os valores comuns e o processo democrático] será profundamente desafiado. Manter os Estados Unidos e a Europa alinhados é importante porque podemos lidar com estes problemas juntos”, defendeu.
Para o ex-primeiro-ministro, a principal ameaça pode vir da China, que quer assumir uma posição de liderança no desenvolvimento e aplicação da Inteligência Artificial, mas que não encara a relação entre governo e cidadão da mesma forma que nos Estados Unidos ou na Europa. “Esta é a grande questão política do nosso tempo — e o que me chateia no Brexit é que nos distrai [do que é importante]. Isto é relevante para garantir que os nossos valores [ocidentais] permanecem”, referiu.
Vale a pena recordar que o governo chinês está a desenvolver um sistema que combina milhões de câmaras de vigilância com inteligência artificial e software de reconhecimento facial para criar um vasto sistema de segurança. Ao mesmo tempo, o estado começou a desenvolver um sistema de créditos que monitoriza os cidadãos, atribuindo-lhes e tirando-lhes créditos consoante os seus comportamentos. A juntar a isso, o presidente Xi Jinping apelou recentemente ao intercâmbio e cooperação internacional no setor de ‘big data', ou seja, à análise de grandes volumes de dados com que Pequim quer moldar a indústria e comportamento social. "A China está a implementar uma estratégia nacional para o ‘big data', centrada num ciberespaço forte, numa China digital e numa sociedade inteligente, que ajudarão o país a fazer a transição de um modelo económico com altas taxas de crescimento, para um de alta qualidade", afirmou o antigo líder do governo britânico.
Em linha com Tony Blair, Brad Smith defende que é importante, mesmo a nível empresarial, tomar decisões que têm em conta valores como o respeito pelos direitos humanos. E exemplifica: “Não podemos, por exemplo, alojar centros de dados [que guardam informação pessoal dos consumidores] em países onde existe um perigo real de as pessoas serem perseguidas; o reconhecimento facial é uma tecnologia tão sensível que já tivemos de dizer que não a algumas propostas, seja porque os países não estavam preparados para receber esta tecnologia, seja porque a própria tecnologia não está madura o suficiente”.
Laurie Segall agarrou o gancho e atirou a questão: Brad, a Microsoft recusar-se-ia a vender Inteligência Artificial à China?
E Brad...serpenteou. Começou por dizer que Inteligência Artificial é um termo muito abrangente, complementou afirmando que é “um erro pensar que toda a tecnologia é desenvolvida de forma igual”, e terminou preferindo não assumir esse compromisso em plena Web Summit.
Já em tom de despedida, Blair salientou que “a primeira geração de políticos que conseguir entender esta transformação [tecnológica] será capaz de aproveitar as oportunidades e reduzir o risco. Será deles o futuro da política”.
A Web Summit arrancou esta segunda-feira, 5 de novembro, e decorre até quinta-feira na Altice Arena e na Feira Internacional de Lisboa. O evento nasceu em 2010 na Irlanda e mudou-se em 2016 para Portugal. Este ano, na sequência de um acordo entre a organização e a cidade de Lisboa, a permanência foi estendida por mais dez anos, até 2028. Nesta edição são esperados mais de 70 mil participantes de 170 países. Saiba tudo sobre esta terceira edição em Portugal aqui.
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