Talvez não nos apercebamos nas nossas rotinas diárias, mas a humanidade está cada vez mais capacitada para dar saltos de gigante em espaços de tempo cada vez mais curtos. Se antes as mudanças paradigmáticas para a vida humana levavam séculos para ocorrer, agora sucedem-se com a diferença de poucos anos. Estes avanços - da Inteligência Artificial à ubíqua partilha de dados - têm estado na ordem do dia, sendo enquadrados junto das esferas política e económica, pelas consequências que podem ter para as sociedades, pelas questões de segurança que colocam e pelos aspetos que afetam a própria integridade dos cidadãos. Não é, contudo, por haver tão sérias discussões nestas áreas que ficamos arredados dos impactos que a tecnologia tem noutras áreas da vida humana, como, por exemplo, a cultura, e, dentro desta, a música.
Idos são os tempos em que para um tema chegar às pessoas era preciso o seu autor estar ligado a uma editora que garantisse a sua rotação na rádio e na televisão. Mais antiga ainda é a era onde, não havendo mecanismos de transmissão, a música era um privilégio para quem a pudesse financiar, ouvida em salões faustosos ou casas de ópera. A música democratizou-se, a canção chega-nos de todo o lado, tanto pelos canais tradicionais como por inovações mais (streaming) ou menos (pirataria) legais. No entanto, apesar de ser cada mais fácil ouvirmos os nossos artistas favoritos, tornou-se mais difícil para eles compreenderem que passos podem dar numa indústria cada vez mais complexa, entre direitos de distribuição, números de streaming e possibilidades de monetização de fãs.
E se uns têm refletido sobre o assunto, outros começaram a meter as mãos à obra, mas a esses já lá vamos. Christopher Leacock faz parte do primeiro grupo. Mais conhecido pelos entusiastas das pistas de dança como Jillionaire, parte do conjunto Major Lazer, Leacock deu o sinal de partida para esta discussão no palco Music Notes. O nome pomposo da sua apresentação, Shaping Competitive Advantages in Emerging Creative Economies [Moldando vantagens competitivas em economias criativas emergentes], escondeu uma ideia bem mais simples: a de que os criativos, músicos e não só, não podendo “prever como o ambiente criativo dos próximos 20 anos”, têm a possibilidade de se “prevenir para a inevitabilidade da mudança” ao “observar as tecnologias emergentes que podem tornar as atuais ferramentas obsoletas ou melhorá-las”.
Olhando para os exemplos do passado, desde a sala escura para revelações fotográficas, que quase desapareceu, até ao telefone, que se transmutou, o músico natural de Trindade e Tobago considera que se pode “tentar estabelecer um modelo para os próximos 10, 20 ou 50 para nos adaptarmos a isso”. Para tal, será necessário “usar as ferramentas que os tecnológicos estão a criar para o nosso benefício”. Visando essa análise, Leacock optou por concentrar-se nas “quatro secções mais importantes da indústria musical”: Medição, Distribuição, Consumo e Conteúdo.
Quanto à primeira, o trinidadiano mencionou que é necessário dar uso às métricas disponibilizadas, assumindo formas variadas com o número de audições de determinada música numa plataforma até às geografias mais populares. Segundo Leacock, “na indústria musical, o acesso à informação é um dos maiores desafios” e, perante um volume de dados que cresce todos os anos, “estes podem melhorar e aprimorar as nossas capacidades de marketing, [podemos] usá-los para tomar decisões mais inteligentes”. Também ligada aos serviços de streaming está a questão da distribuição, já que estes usam “algoritmos para detetar os gostos e fazer recomendações, usando modelos de Inteligência Artificial para entender que tipo de música é que as pessoas gostam”. Esta é a base das playlists modernas e, da parte dos criadores, é importante perceber como usar estas ferramentas “para fazer crescer as nossas plataformas de fãs”. Para tal, Leacock defendeu que é possível explorar alternativas que cheguem diretamente aos apreciadores, sendo exemplo o DJ esloveno Gramatik, que usou tecnologia “blockchain” e criptomoeda para contornar os canais de distribuição regulares.
No que toca ao consumo, as tecnologias atuais permitem potencialidades imensas, sendo as mais apetecíveis a Realidade Aumentada e a Realidade Virtual. São já vários os exemplos disponíveis, desde a performance que Eminem deu no Coachella, onde “implementou uma app onde os fãs tinham acesso a conteúdos exclusivos se vissem o concerto através do telemóvel”, até às potencialidades dos videoclipes em Realidade Virtual, tudo tendo em mente como se pode “criar mais valor de conteúdo, para além de comprar uma música, fazer stream ou ir a um concerto”.
O direito à identidade, o direito a ser pago
Há, contudo, uma área onde Leacock tocou apenas levemente mas que é uma das mais cruciais nesta era, em todas as áreas de entretenimento, mas especialmente na música: direitos de autor. Como o artista trinidadiano bem definiu, o copyright “determina como o artista é pago e, em muitos casos, como não é pago” sendo preciso ”compreender que os modelos de pagamento estão a evoluir à medida que a música muda de plataformas convencionais para plataformas de streaming”.
Apesar potencialmente injustos, os antigos contratos que as editoras firmavam com os artistas eram claros quanto à distribuição de lucros. Ou pelo menos parecem-nos agora, comparando com a natureza algo obscura de como é que os serviços de audição de música pagam aos seus intérpretes. O dinheiro está mal distribuído, é esse o entender de Imogen Heap, que, numa breve passagem no palco do Altice Arena, revelou como existe "uma grande ineficiência na indústria musical", havendo 45 mil milhões de dólares todos os anos para o pagamento de royalties e "metade disso não chega às pessoas certas".
A cantora e empreendedora inglesa tem sido uma das caras e vozes por uma mudança neste sistema. De volta aos palcos - toca em Lisboa a 11 de novembro - Imogen Heap têm aproveitado a tour para realizar debates com outros criadores de música. A organização que fundou, Mycelia, tem desenvolvido vários projetos para diagnosticar alguns dos problemas do atual panorama musical e solucioná-los. Uma das ferramentas de análise é o “Life of a Song”, que graficamente demonstra "a vida de uma canção, quanto tempo demora desde que é tocada na rádio até ao momento em que o artista recebe o dinheiro, o que pode chegar a ser de dois a três anos”. Uma das causas para este tão grande intervalo é a ausência de informações sobre os artistas nos metadados das músicas: uma plataforma como o Spotify "a única coisa que partilha é o nome da pessoa na capa, o nome da música e talvez a data de lançamento".
Apesar do cenário não ser o mais animador, já há uma possível solução: “blockchain”. Com esta tecnologia “podemos ter todos os dados que queremos partilhar quanto a uma música", sendo que o objetivo de Imogen Heap é dar a cada músico do mundo um “Creative Passport” para que a informação seja clara e precisa. Este documento digital inclui a informação de cada artista, os seus feitos e a sua obra, as suas parcerias e os seus dados de pagamento. Para além de servir para identificar claramente cada autor por razões dos seus direitos, tem também o propósito de fomentar colaborações, incluindo também “as paixões e interesses [de cada artista], que são o que nos vai ajudar a sermos encontrados por entre o ruído”.
Os resultados práticos já começaram a ser observados. O seu tema "Tiny Human" foi “a primeira canção do mundo em que a distribuição de pagamentos foi feita através de smart contract, o que significa que todos os músicos envolvidos foram pagos instantaneamente nas suas smart wallets assim que a faixa foi comprada". De utilização gratuita e acesso livre, Imogen Heap pretende, com esta ideia, criar uma “base de dados aberta de canções”, para acabar com problemas de licenciamento e “emancipar artistas, esclarecer quanto ao trabalho que eles fazem e onde estão as suas paixões, para criar colaborações com sentido”.
Com o lançamento de uma versão Beta planeado para 9 de dezembro, a cantora defende que “as pessoas vão poder fazer o download de uma app muito básica que nos vai meter no mapa, uma base de dados aberta de criadores de música, uma camada sem fins lucrativos que florescerá o ecossistema da música”.
Tratar a música como um negócio
A ideia de abrir uma rede aberta de comunicação musical não é utópica, mas é desafiante. De volta ao palco Music Notes, há quem tenha optado por um modelo menos vanguardista, mais ligado à realidade empresarial. DJ e produtor holandês, Sam Feldt acredita que os artistas podem “aprender muito com startups e empreendedores” ao “definir as métricas certas”. Na sua opinião, medir KPIs (Key Performance Indicator, ou Indicador-chave de desempenho) é algo lógico para um profissional da tecnologia mas não para um artista, que está mais centrado na composição, mas que devia também “estar focado em criar negócios sustentados". Não surpreende esta postura, afinal de contas, Feldt é ele próprio um empresário tech.
Na sua experiência enquanto artista de âmbito internacional, Sam Feldt começou a reconsiderar algumas práticas que tinha como garantidas. No atual panorama, os artistas e os seus gestores “estão focados nos streams duma música ou em seguidores no Instagram”, mas o que interessa mesmo “são compradores de bilhetes, super fãs que vão ouvir a tua próxima música”. O seu processo de avaliação levou-o a verificar que “tinha um milhão de seguidores espalhados em todas as plataformas, mas não fazia ideia quem eram e como chegar a eles. Aliás, eu estava a ser forçado a pagar para chegar às pessoas”.
Não ser capaz de interagir a um nível mais profundo com os seus fãs nem entender qual a sua dimensão enquanto grupo foi o que levou o DJ a criar o Fangage, uma empresa que oferece um sistema de gestão de seguidores. Através de um sistema de subscrição, os fãs que o queiram acompanhar cedem o email e tem direito a obter conteúdos exclusivos, descontos, bilhetes especiais ou músicas. Em troca, o artista passa a “ter controlo na sua base de fãs”, não estando dependente de “plataformas terceiras onde só 2% ou 3% das pessoas vêm os teus posts” e - lembrando o triste caso do MySpace - se algo lhes acontecer, os seus dados perdem-se irremediavelmente.
Desta forma, Sam Feldt conseguiu criar um dos mecanismos de relação direta com os fãs que Christopher Leacock mencionara na sua exposição, pois o holandês agora olha “para as redes sociais e para os sistemas de streaming digitais mais como fontes de tráfego”, que usa para direcionar os fãs para a sua comunidade baseada no Fangage. O produtor deu um exemplo de como esta relação se processa: ”eu publico 30 segundos do meu novo videoclipe no Facebook, deixo os fãs expectantes e depois, se quiserem ver tudo, têm de se inscrever no meu portal, onde fico com o seu email. Assim, certifico-me de que quando estou na sua cidade posso mandar mensagens personalizadas a convidar para o meu concerto, em vez de voltar ao Facebook e ter de pagar para chegar a esses mesmos fãs”.
A forma como quantifica os seus fãs a partir dos seus dados pode causar alguma alergia aos adeptos mais puristas de música (e da privacidade, convenha-se), mas Feldt é honesto na forma como aborda a sua carreira. Enquanto criador musical, crê que “é preciso criar uma marca” e manter uma popularidade sustentável, pois diz que ”se deixar de ser popular, não me contratam para concertos, não faço dinheiro e morro como artista”. Para si, ser um artista é “quase idêntico a ter uma startup: numa startup lanças uma nova feature, como artista lanças uma nova música, mas em ambos os casos tens de te certificar que as pessoas o querem”.
Criação: o objetivo último
Procurar empoderamento, seja através da cooperação global entre pares, seja através da conduta empresarial, em ambos os casos pouco há a fazer se faltar a mais fundamental das componentes para qualquer músico: a música. Até agora, tem sido um domínio praticamente exclusivo da criatividade humana, mas será para sempre assim?
Essa foi outra das temáticas que Leacock abordou, a Inteligência Artificial (IA) e aprendizagem de máquina no contexto da criação de canções. Será que se pode utilizar IA para criar um hit? No entender do trinidadiano, não, “porque, afinal de contas, não vai haver apego, não vamos seguir a sua história como fazemos com um artista”. A organização da Web Summit parece ter atuado sob a mesma batuta, pois convidou Jonas Blue para dar uma masterclass no Music Notes sobre composição, tendo o produtor inglês decomposto uma das canções que figurará no seu próximo álbum aos seus mais elementares componentes: ritmo, melodia, tom.
Supõe-se que uma máquina seja capaz de aprender a conjugar estes três ingredientes para fabricar canções, mas ao ouvir as explicações de Jonas Blue sobre as suas motivações e ideias à volta deste tema fica-se com uma clara noção de que uma música é sempre mais do que a soma das suas partes. Goste-se ou não da sonoridade do produtor, a demonstração foi a prova de que, enquanto houver pessoas com vontade de criar, a música terá sempre um elemento humano, não obstante o quão digital possa ser. Uma máquina seria capaz de explicar como é que chegou ao contacto com os três vocalistas convidados para participar na canção, de onde é que extraiu os samples que aguentam a música, qual é o processo mental para chegar a uma melodia.
O que estes artistas demonstraram é que já aceitaram que o futuro é tecnológico, e que rejeitá-lo não só não é produtivo, como é impossível; resta encará-lo com um misto de pragmatismo, prudência, conhecimento e curiosidade. Recuperando as palavras que Christopher Leacock utilizou para encerrar a sua apresentação: “Somos nós a criar a nossa história e a nossa narrativa - a máquina de ritmos nunca vai substituir o baterista. Mas, já que temos a máquina de ritmos, mais vale usá-la.”
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