Pouco há que não tenha sido já dito, ou escrito, sobre os Mão Morta. Ao longo de mais de 30 anos de carreira, a banda de Braga conseguiu ocupar um espaço singular na música portuguesa, unindo o rock n' roll à palavra viva, a arte erudita ao entretenimento pop, a militância pela liberdade a um som que nunca o foi menos. Rock, punk, metal, eletrónica, jazz, chamem o que quiserem às suas canções – os Mão Morta irão sempre ser, como disse o mítico radialista John Peel sobre os britânicos The Fall, "sempre diferentes, sempre os mesmos".
Muita da culpa pela sua popularidade de culto está na figura do seu vocalista de sempre, Adolfo Luxúria Canibal – homem letrado, que encontra sempre uma história por contar, desde o cadáver que é arrastado nas ruas ao frenesi sádico de um divino marquês, passando pela bófia, pelo poeta alemão Heiner Müller, por Lautréamont e pelo situacionismo de Guy Debord, pelos ossos de Marcelo Caetano. E pela viagem alucinada, caótica, de “Mutantes S.21”, álbum que celebra este ano 25 de existência e o qual os Mão Morta irão apresentar, na íntegra, no festival Vodafone Paredes de Coura, já esta quarta-feira.
As celebrações, essas começaram num outro festival – o Rock Nordeste, que se realizou em Vila Real em junho –, tendo entretanto passado, também, pelo Curtas (Vila do Conde) e pelo Bons Sons (Cem Soldos, Tomar). Mas um concerto dos Mão Morta em Paredes de Coura será sempre especial, já que o número de vezes que por lá atuaram quase que lhes atribui o estatuto de “banda residente” (são, aliás, a banda que mais vezes lá tocou). No entanto, há sete anos que os bracarenses não punham os pés em Coura. Esta celebração soa, assim, ao pretexto ideal. “Nós acompanhámos o festival de Paredes de Coura praticamente desde o início. Fazia todo o sentido – fazendo o festival 25 anos – que o espetáculo passasse por lá. Foi com imensa alegria que soubemos que o Paredes de Coura estava interessado em que o 'Mutantes S.21' passasse também por lá”, afiança-nos o vocalista.
"[Paredes de Coura] Não é um festival de modas, não é um festival de meninos betos, despejados de sua casa enquanto estão de férias. É um festival de pessoas que gostam de música e que só lá estão por causa da música"
Ao longo desses 25 anos e dessas muitas atuações dos Mão Morta em Coura, nenhuma terá ficado tão marcada no imaginário coletivo como aquela que a banda deu em 2007, o mesmo ano que acolheu os Sonic Youth, M.I.A. ou os Spoon. Tudo por culpa da muita chuva que foi caindo, e que permitiu a Adolfo Luxúria Canibal uma das suas mais inspiradas diatribes enquanto vocalista, ao ver a reação do público ao concerto: “Apesar da chuva e da lama, consegui levantar poeira. Isto, mesmo para um não-crente como eu, sobretudo para um não-crente como eu, é milagre!”. “Parecia que estávamos com alguma estrelinha a amparar-nos e que nos inspirou”, diz, referindo-se a esse espetáculo. “Ainda hoje vou ao YouTube ouvir aquele discurso e fico pasmado como é que aquelas palavras saíram de mim, pareciam teleguiadas por algum heterónimo escondido do Pessoa..."
Adolfo Luxúria Canibal faz questão de marcar presença em Paredes de Coura todos os anos, mesmo quando não o faz como artista. O festival é, afiança, diferente dos demais. "Tem um espaço único – não há hipótese nenhuma de concorrer com o espaço de Paredes de Coura. Isso limita a assistência, e ainda bem, porque quando os festivais se tornam grandes também se tornam demasiado cansativos e exasperantes. Para além disso, há um belíssimo gosto permanente na escolha da música: sente-se que a música, ali, não é apenas um chamariz – é o essencial. Não é um festival de modas, não é um festival de meninos betos, despejados de sua casa enquanto estão de férias. É um festival de pessoas que gostam de música e que só lá estão por causa da música."
A música, essa, não esteve sempre presente na vida – ou na carreira – do vocalista. Foi, como diz, uma “descoberta tardia”, proporcionada pelo movimento punk e pelo seu espírito, o de que "qualquer pessoa, independentemente da sua vocação ou da sua preparação, pode subir a um palco e divertir-se num palco. Conseguir conceber coisas e fazer coisas que lhes apeteça". Foi isso, garante, o que o levou à música. E, depois de nela entrar, foi "a descoberta sucessiva, a aprendizagem, o querer saber mais coisas" o que o levou a querer continuar. "Porque há muita coisa para aprender, e enquanto houver coisas para aprender e que me interesse aprender, eu estou disponível", remata. Uma definição que vai ao encontro do título de uma palestra que fez na Universidade de Lisboa, por ocasião do centésimo aniversário desta: "Profissão: Diletante. Da Música à Conservação da Natureza"."É um bocado o resumo de quem sou. Faço as coisas essencialmente por gosto, não sou propriamente especialista em nada, ao contrário de uma época em toda a gente é especialista. Sou movido pela curiosidade e pelo gosto de saber, conhecer e perceber as coisas", afirma.
"No mundo em que vivemos, a música essencialmente é variedade, é entretenimento. Mesmo quando a música tenta ser uma arma, acaba a ser recuperada como entretenimento"
A música dos Mão Morta tem sido conotada a uma ideologia anarquista, mas não é uma arma apontando a revolução – porque a música em si não é uma arma. "Como arma tem muito pouco alcance, seja para defender, seja para acusar. No mundo em que vivemos, a música essencialmente é variedade, é entretenimento. Mesmo quando a música tenta ser uma arma, acaba a ser recuperada como entretenimento. Portanto não vale a pena pensar as coisas nesses termos", explica. Tendo em conta esse lado mais ensosso em que a música se atolou, existirá ainda algo que faça Adolfo 'rock n' rollar'? "A música, mesmo. Quanto mais sei de música, mais gosto de música. Quanto mais espetáculos vejo, mais gosto de ver espetáculos. Quanto mais música ouço, mais gosto de ouvir música. De maneira que é uma espécie de vício que se instala, que nos agarra pelo cachaço e não nos deixa levantar a cabeça..."
Falamos desse “rock n' rollar” porque é esse o lema de “Budapeste”, ainda hoje o maior êxito dos Mão Morta e o tema de que todos se lembram quando falamos de “Mutantes S.21”. Poder-se-ia pensar que esta poderia, eventualmente, sentir-se “refém” da sua criação. "Não propriamente. Tratámos imediatamente de cortar o jugo que nos poderia fazer reféns da 'Budapeste' – deixámos de a tocar ao vivo. Tínhamos pessoas, nos concertos, que não conheciam os Mão Morta, e que tinham ouvido a 'Budapeste' na rádio ou na televisão e ficavam espantadíssimos, a odiar os Mão Morta, pelo resto da música que fazíamos... De maneira que sentimos que havia ali uma data de público que não nos interessava, que estava lá equivocado. Deixámos de tocar a 'Budapeste', esse público deixou de ir aos nossos concertos e nós ficámos felizes para sempre", ironiza.
Que tipo de público, então, têm hoje os Mão Morta? "Quando começámos, o nosso público era, essencialmente, composto por homens. Era raro encontrar uma mulher no meio do público. Havia um medo de se aproximarem dos 'gandulos' que nós éramos... Hoje em dia as coisas não estão ela por ela, mas há uma grande comunidade entre homens e mulheres", diz. O facto de terem conquistado gerações diferentes também não lhe é alheio. "Hoje temos pessoas da nossa idade e pessoas mais novas, até aos 16, 18 anos, que vão aparecendo. É uma coisa que é constante, e são sempre minorias, em cada segmento geracional. São essas minorias que formam o nosso público."
25 edições do festival de Paredes de Coura e 25 anos após o lançamento de “Mutantes S.21”, muita coisa mudou – não só na música, como também na sociedade. O próprio álbum levou a uma mudança nos Mão Morta. "Se já éramos uma banda de culto, com o 'Mutantes S.21' extravasámos esse círculo mais restrito e chegámos a um círculo muito mais largo de pessoas. E, sobretudo, chegámos a Braga", cidade que os via, sem rodeios, como "uma vergonha". "Com o 'Mutantes S.21' passámos a ser os heróis da nossa cidade. E depois deu-se o crescimento normal de uma banda que foi sempre procurando coisas novas por fazer, metendo-se por áreas que nunca tinha experimentado, arriscando".
"Alguém nos convidou para fazermos um concerto a propósito desses mesmos 25 anos, e foi aí que nos demos conta [da data]... A nossa primeira resposta foi não, mas a insistência foi tanta que acabámos por o considerar"
Tido como um diário de viagens por várias cidades, de Lisboa a Paris, de Berlim a Marraquexe, “Mutantes S.21” é ainda hoje uma das obras maiores do rock cantado em português, e o magnum opus dos Mão Morta. O retrato dessas mesmas viagens pertence a um tempo fixo, não sendo de todo possível imaginar como seria se o álbum, e as canções, tivessem sido compostas e gravadas hoje. As cidades evoluíram, as vivências também. "Se me tornasse a meter nessa aventura, com os olhos e a sabedoria de hoje, não faço ideia no que é que iria dar", afirma Adolfo Luxúria Canibal. Poderiam, no entanto, vir a ser acrescentadas outras cidades: Roma ou Dublin, por exemplo. "Na altura não meti, propositadamente, Londres. E hoje voltaria a não meter. É miragem para todos os portugueses, é a Meca do alternativo", explica.
Canções como "Lisboa", "Berlim", "Budapeste" ou "Barcelona" são bem conhecidas dos alinhamentos dos Mão Morta ao vivo, mas há três temas que irão ser interpretados, pela primeira vez, nesta digressão de celebração. Adolfo volta às origens da mesma para o explicar: "Nós nem nos lembrávamos de que o disco fazia 25 anos. Alguém nos convidou para fazermos um concerto a propósito desses mesmos 25 anos, e foi aí que nos demos conta [da data]... A nossa primeira resposta foi não, mas a insistência foi tanta que acabámos por o considerar", revela.
Na digressão original em torno de "Mutantes S.21", os três temas em questão - "Marraquexe", "Istambul" e "Shambalah" - ficaram de fora porque os Mão Morta consideravam que "não funcionavam ao vivo", mas desta feita adaptaram-nos a esse formato. E, de forma a "fugir ao passado", a banda decidiu "explorar um lado visual, uma ligação da música com as artes visuais", como aliás já o havia feito originalmente, com uma edição especial do disco acompanhada por uma BD. Para tal, convidaram vários ilustradores portugueses para criar obras inspiradas em cada um dos temas de "Mutantes S.21". "As ilustrações são trabalhadas digitalmente ao vivo, de maneira que têm uma espécie de movimento visual que ocupa grande parte do espetáculo. É nessa exploração, nessa ligação da imagem com a música que nós inovamos e avançamos para essa comemoração, sem ser uma mera comemoração ou revisitação". É um espetáculo novo, longe de quaisquer nostalgias ou lembranças do passado. E vai voltar a levar-nos em viagem, 25 anos depois da primeira vez.
Fotografia de Vera Marmelo
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