Foram 56 dias de rodagem, ou “dois meses e meio com folgas pelo meio”, como prefere dizer o realizador Bruno Gascon, para contar a história de Viktoriya (Michalina Olszanska), uma jovem russa apanhada numa rede de tráfico ilegal, e de António (Vítor Norte), um velho camionista.
Gascon pergunta-nos se não preferimos que baixe o som da música para que a nossa conversa fique audível na gravação. À nossa volta, celebra-se a estreia do lançamento do trailer da longa-metragem “Carga”, num ambiente descontraído em que atores, produtores, equipa técnica e vários convidados aproveitam para beber um copo e meter a conversa em dia. Isto, claro, sem conseguirem não se perder pelos carros e máquinas de jogos da Tim’s Garage, que ajuda a que tudo isto não seja só sobre cinema.
E não era só sobre cinema que podia ser aquela conversa. Não, quando o foco do filme é um tema que nos foge tanto, e que está ali tão perto.
“O filme é sobre tráfico de seres humanos e é também acerca de escolhas e sobrevivência. O tráfico não afeta só aquelas pessoas, mas todo o círculo que as rodeia, e é isso que eu tento mostrar no filme. Muitas vezes o tráfico de seres humanos acaba por ser uma causa silenciosa. E que está agregada a muitas outras causas. Na pesquisa para este filme - em que li muito, mas acima de tudo, quando estudei para realização e fiz muitos documentários para a televisão sobre causas sociais - deparei-me muitas vezes com este tipo de problemas: as pessoas eram traficadas, só que como muitas vezes as redes de tráfico conhecem a tua família, conhecem as pessoas de quem gostas, muitas vezes estas pessoas não podem falar. Há um medo subjacente a isso. E este medo faz com que muitas vezes seja uma causa silenciosa”, explica o realizador.
Não há como fugir da evidência latente no nome do filme: “tem tudo a ver com o facto de as pessoas traficadas serem transportadas num camião e também com a carga emocional que todos nós transportamos”, conta Gascon.
“Espero honestamente que [este filme] seja um grande murro no estômago para todo o mundo”
Em "Carga" Vítor Norte é António, “o motorista do camião das pessoas que são transportadas. Um homem simples, um homem do povo que se calhar para ganhar dinheiro entrou naquilo, mas depois como tem uma neta da idade de alguns meninos que ele transporta começa com remorsos. Mas nas teias muitas vezes quando se entra já não se sai e ele tem que tomar a uma decisão muito importante na sua vida, mas isso depois descobrem no filme”, diz, entre sorrisos, um dos atores principais.
Para Vítor Norte não há como fugir: este “é um filme sórdido, duro, mas de abertura, de conhecimento também”.
“As pessoas só têm noção, ultimamente, de futebol. A realidade do país é que há prostituição, há tráfico de órgãos, há tráfico humano. Às pessoas não lhes toca, e eu estou a falar também de mim. Quer dizer, penso pouco sobre o caso, só em meras notícias muitas das vezes. Mas se virem o filme se calhar ficam com outra perspetiva do que é, e pode ajudar a combater esta realidade com conhecimento, muitas vezes as coisas conseguem-se atacar e o conhecimento é que faz as coisas acabarem, ou começarem, ou ficarem”, diz o ator.
Duarte Grilo, também ele um dos protagonistas do filme, não podia estar mais de acordo: o tema é “muito cinzento. E além de ficar muito cinzento, há uma quantidade astronómica de casos no nosso país sobre os quais as pessoas não têm propriamente a noção, portanto foi um desafio muito grande para lidarmos com situações limite. São sentimentos que à maior parte dos seres humanos, como eu e como tu, fazem certamente muita confusão”.
Ao contrário de Vítor, Duarte diz não poder levantar o véu sobre a sua personagem, mas isso não importa. O ator que interpreta Ian Garda, diz esperar que “que [este filme] seja um grande murro no estômago para todo o mundo”, confessando que ele próprio ao mergulhar no tema viu nascer em si “uma raiva enorme sobre quem tem coragem de tratar o ser humano desta maneira”.
“Quando andámos à procura de financiamento para fazer o filme muitas das pessoas não sabia que existia tráfico de seres humano em Portugal. A Rita Blanco, por exemplo, foi das poucas pessoas que me disse: 'não, não, eu sei que existe'. E de certa forma queremos mostrar esta realidade, que existe tráfico de seres humanos em Portugal, não só sexual, que é aquilo que eu estou a retratar neste filme, mas também laboral, é uma realidade que existe hoje em dia”, acrescenta o realizador.
O financiamento, esse, veio pela mão da Caracol um estúdio fundado em 2016 do qual o ‘tubarão’ Tim Vieira é um dos rostos.
“Era uma história que tinha de ser contada, é uma história que não é verídica, é uma ficção, mas que ao mesmo tempo podia ser real. Acho que acontece mais vezes do que pensamos e que qualquer um de nós podia ser apanhado por esse círculo”, confessa Tim ao SAPO24.
Se este é um mundo estranho para um nome que costumamos ouvir associado ao ecossistema empresarial? Talvez, mas Tim diz que como empreendedor é difícil resistir. “É fácil ser apanhado por este mundo porque há muita gente com talento, criativos, atores persistentes, é tudo aquilo que um empreendedor procura. Acho que também é uma boa altura para começar a apostar no cinema e eu gostava de ajudar um bocadinho porque merece, não é? Temos atores e atrizes espetaculares e depois, mais do que isso, temos equipas técnicas muito muito boas e temos histórias para contar ao mundo”, diz o produtor.
“Ser empreendedor é escolher as pessoas certas, apostar em projetos e tentar. Não acho que todos os filmes que a gente vai fazer vão ter sucesso, eu sei que é assim porque é assim no negócio, mas também não estou muito preocupado porque fazer e trabalhar com estas pessoas, só isso, já é muito bom”, diz o 'novo' Tim, apanhado pelas rédeas do cinema.
“Temos que sair desta lógica de que só filmam os que têm apoios do ICA”
Numa altura em que a produção de cinema nacional está muito restrita ao financiamento do Instituo do Cinema e Audiovisual (ICA), o filme "Carga" surge como uma solução diferente, assente numa diversidade das fontes de financiamento.
"Eu acho que está a haver uma abertura e eu acho que é preciso, digamos, fazer os possíveis para aumentar a diversidade das fontes de financiamento. Isto é, não esgotar todo o cinema português ao que se faz com o apoio do ICA, e tentar abrir a mais investidores. Temos que sair desta lógica de que só filmam os que têm apoios do ICA”, afirma Nuno Artur Silva, antigo administrador da RTP com o pelouro dos conteúdos e que marcou presença na Tim’s Garage, em Cascais, na apresentação do trailer.
Para Nuno Artur Silva este é o momento em que deve haver “uma colaboração com as televisões, em particular com a RTP, mas também com os distribuidores, dos grandes operadores, a NOS desde logo”, para que o cinema possa dar o salto. “Acho que é possível começar a trabalhar para a diversidade, e sobretudo acho que o cinema narrativo tem um caminho ainda para fazer. Mas os sinais a que estamos a assistir agora são positivos, sim”, afirmou.
“Carga” é a primeira longa-metragem da produtora Caracol Studios e do realizador Bruno Gascon, e é protagonizada pela atriz Michalina Olszanska, considerada uma das mais talentosas atrizes da sua geração na Polónia. Ao seu lado conta com nomes consagrados portugueses como Vítor Norte, Rita Blanco, Miguel Borges, Ana Cristina Oliveira, Dmitry Bogomolov, Duarte Grilo, e Sara Sampaio que tem assim a sua estreia na sétima arte.
*Artigo atualizado às 23h03 do dia 22/07/18 relativamente ao financiamento do filme
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