A partir de quarta-feira e até 29 de setembro, “A Morte de Danton” conta com Albano Jerónimo à frente de um elenco que vai dar vida à peça do dramaturgo alemão, a primeira do autor, terminada em 1835, mas estreada apenas em 1903, por causa da sua abordagem da Revolução Francesa, em particular do Reinado de Terror, e do modo como o fez, numa versão pioneira do chamado “teatro documental”.
A peça recupera registos históricos para contar a história de Georges Danton (1754-1794), um dos líderes revolucionários, promotores do Comité de Salvação Pública, que viria a tornar-se no núcleo da política de terror. Perante essa evidência, Danton põe em causa o abuso de poder exercido pelos seus correligionários, nomeadamente Robespierre, o que o conduz a tribunal revolucionário e à morte por guilhotina.
Nuno Cardoso tem em “Morte de Danton” a primeira encenação como diretor artístico do TNSJ, mas a peça de Büchner era, para si, um projeto “de há muitos anos”.
“É uma peça complexa, que leva sempre tempo a criar os meios para se fazer. Entretanto, de facto estava no plano de atividades da Ao Cabo Teatro [companhia que então dirigia] e foi programada pelo Nuno Carinhas [o anterior diretor artístico do TNSJ] para abrir a temporada. Quando aceitei o convite para a direção artística, decidi [mantê-la] com o conselho de administração”, contou.
O encenador lembrou encenações anteriores deste texto, do Teatro da Garagem e dos Artistas Unidos, feitas há cerca de sete anos, como a prova de que se trata de “uma peça importante para ser feita” em diversos momentos, incluindo os dias de hoje.
“Primeiro, porque de alguma forma é uma autópsia de um momento de fratura, do dilema da Revolução Francesa, que é o alicerce de toda a sociedade contemporânea democrática e ocidental. (…) Por outro lado, os problemas e conflitos que ali surgiram continuam a ser sanados dia-a-dia na nossa sociedade”, justificou.
“A Morte de Danton” levanta vários problemas que hoje voltam a estar presentes no pensamento da sociedade, como “a ditadura, o populismo, a representatividade, a democracia”, e as várias noções “de cidadão e de igualdade que são tomadas como adquiridas”, depois de serem “um edifício [da sociedade] construído naqueles anos frenéticos”.
Para Nuno Cardoso, a peça de Büchner “tem a possibilidade de criar um espaço de reflexão e discussão sobre coisas extremamente atuais”.
“Quando alguém diz [na peça] que tudo é feito de carne humana, e temos protestos porque alguns dos nossos produtos são feitos por pessoas a trabalhar 14 a 16 horas na Ásia, dá que pensar”, ilustrou.
Do trabalho e dos direitos humanos, ao papel do Estado e dos cidadãos, todos os temas presentes na obra que “dão que pensar”, acompanhando esta “espécie de frenesim dos 10 [últimos] dias da vida de Danton”.
Condenado Danton, o orador e líder revolucionário que tentara parar as medidas que ajudara a criar, em defesa da revolução, a peça de Büchner acompanha-o no caminho para a morte, “o grande manto sob o qual todos os corações deixam de bater”.
Ao longo de todo o drama, o que se vê é o populismo, que “hoje em dia se alastra pelo mundo inteiro”, mas também “a massificação e manipulação da miséria dos outros usada para fins próprios”, diz Nuno Cardoso à Lusa.
A certo ponto no espetáculo, Danton queixa-se: “Este relógio não tem descanso?”, uma referência que Cardoso vê como um acertar do “tempo de urgência e de movimento constante para a frente”, a “grande invenção da Revolução Francesa”, depois de uma noção de tempo mais difusa, que lhe antecedeu.
“Nós vivemos o tempo que a revolução inventou, e não falo dos meses que refizeram, mas a ideia do tempo do debate, da eleição, da revolta, insurreição, e isso surge como um todo. A ideia de Estado como o vivemos surge nesse período”, afirmou.
O público é convidado a extrair da peça “as conclusões que entender”, disse o encenador à Lusa. Mas também a “divertir-se e pensar nas questões”, num espetáculo com muito de político e que se confronta com a atualidade.
“O povo é como uma criança, tem de partir tudo para ver o que está dentro”, ouve-se a certa altura, na peça.
“A Morte de Danton” é um exercício de introspeção notório que se impõe, em confronto com a atualidade. “De Bolsonaro à loucura senil de Trump e ao espetáculo do ‘Brexit’, do medo da imigração e da tragédia do Mediterrâneo”, e também desse “símbolo de quase autodestruição da Humanidade, que foi o ocorrido na Amazónia”, lembrou Nuno Cardoso.
Depois da apresentação no Porto, onde fica até dia 29, a peça de cerca de duas horas e meia passa pelo Theatro Circo, em Braga, no dia 04 de outubro, antes de subir ao palco do Teatro Aveirense, a 18.
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