O fruto desse trabalho chama-se “O Terrorista Elegante e Outras Histórias” e reúne três contos, baseados em peças de teatro também da autoria partilhada de ambos, editado em Portugal pela Quetzal.
O livro é em parte consequência da amizade entre os dois escritores, que têm desde há muitos anos o hábito de trocar ideias, enviar os textos um ao outro antes de publicar, de servirem de conselheiros, contou à Lusa o escritor moçambicano Mia Couto.
“Eu gosto da maneira como isso rompe aquela ideia feita do escritor que tem um território sagrado, solitário e que isso não é partilhável com ninguém. Acho que isso é um disparate, acho que se pode fazer literatura como se faz música, a quatro mãos, a seis mãos, a doze mãos”.
Os dois primeiros contos – “Chovem amores na rua do matador” e “A caixa preta” - foram escritos à distância, através de trocas de mensagens, em que José Eduardo Agualusa e Mia Couto acrescentavam, aos poucos, o texto um do outro.
O último - primeiro do livro e que dá título à obra – foi escrito sob um alpendre de colmo em Boane, perto de Maputo, Moçambique, num jardim imenso, onde os dois amigos passaram dias sentados à mesma mesa, cada um diante de um computador, rindo, brincando e apostando na negação dessa ideia de que a criação literária é sempre um ato profundamente solitário.
Por isso, este conto “é o que está mais contaminado do ponto de vista daquilo que não é propriedade de nenhum que não podemos localizar o que é meu e o que é dele, porque trabalhamos frase a frase juntos”, contou.
Nesta história, um angolano elegante que veste fatos de alfaiate e se apresenta sempre aprumado, de nome Charles Poitier Bentinho, é preso em Portugal por suspeita de participação em atos de terrorismo.
O homem acredita que consegue voar e na prisão fala com um pássaro desenhado na parede, que parece dar-lhe as orientações necessárias para que cumpra a sua missão.
Segundo Mia Couto, “O terrorista elegante” foi inspirado numa notícia verídica de um homem apanhado no aeroporto de Lisboa, em que se percebeu de imediato que havia ali um equívoco.
Para o escritor, este é o melhor texto do livro: “É um texto mais estruturado. Tivemos uma relação sempre de puro divertimento, porque assumimos desde o início que não somos dramaturgos”, mas apesar desse divertimento, dessa paródia à obsessão do ocidente com os terroristas e a necessidade de apresentar um inimigo de rosto visível, foi intenção dos autores fazer uma chamada de atenção e uma crítica.
“A melhor maneira de criticar é fazer rir daquilo que nos queremos distanciar. Na verdade, vivemos nesta situação de construção do medo e que cria a facilidade de construir falsos culpados, porque à partida é alguém que tem uma certa raça, um certo discurso religioso, qualquer coisa que o torne diferente e que seja fácil depois arranjar essa etiqueta. Não é importante que seja verdade ou não, porque serve essa confirmação reiterada de que está ali uma ameaça um inimigo. A história é contada com essa intenção mesmo: pode ser engraçada, pode ter momentos em que se ri, mas o que está por trás disso não tem graça nenhuma”.
A elegância da personagem é como se fosse “um contraponto dessa acusação, que se percebe logo que é inventada, que é infundada”: a resposta tem que ser essa elegância e tem que se romper essa distância que leva a que nem se queira conhecer o outro porque já sabemos quem é. “Basta conhecer o grupo a que pertencem e todos são iguais, e essa é uma enorme violência”.
A vida, a liberdade, o espaço de abertura no infinito, são temas fortes neste livro, já que em todas as histórias há referências ao enclausuramento.
Na primeira história há a prisão, na segunda um homem enclausurado na sua própria demência, na terceira uma casa fechada pela guerra.
“Chovem amores na rua do matador”, segundo conto e aquele que originalmente era de Mia Couto, apresenta como protagonista Baltazar, um homem que pretende fazer as pazes com o seu passado matando as três mulheres da sua vida, que acredita terem-no atraiçoado.
Aqui é dada também voz às três mulheres, que contam a sua versão da mesma história contada por Baltazar, permitindo aos escritores exercitarem a capacidade de encarnarem homem e mulher.
Esta tarefa criava em Mia Couto, no início da sua carreira de escritor, uma dificuldade “que na realidade nunca existiu”, conta, explicando que é de uma geração em que era importante ser homem e exibir isso a tempo inteiro.
“Como é que eu criava personagens que eram mulheres?”, questionava-se, mas depois perdeu o medo de aceitar que isso estava dentro dele, que isso é o que se chama “o nosso lado feminino”, e que tudo o resto são “construções sociais”.
A última história do livro, “A caixa preta”, original de José Eduardo Agualusa, passa-se à noite, numa cidade mergulhada em caos e, enquanto o conflito se desenrola nas ruas escuras, um mascarado entra numa casa e procura alguém para matar, obrigando gerações de uma mesma família a confrontarem-se e a enfrentarem os segredos mais bem guardados.
Mia Couto confessa que há neste conto uma certa intenção de fazer analogia entre aquela família e o pós-guerra, um tema que é caro aos dois escritores que viveram a infância e a adolescência em ambiente de guerras, um em Angola, o outro em Moçambique.
Há “essa personagem que surge com uma máscara, porque tem medo da não-aceitação por parte dos outros. Moçambique e Angola viveram muito essa situação extrema, em que as pessoas viviam uma situação polarizada, em que ser o outro já era razão de desconfiança, de criação desse rótulo do inimigo”.
Quanto a projetos futuros, o escritor que se assume como um poeta que está na prosa porque anda “a fazer contrabando”, está a escrever um texto em que pela primeira vez volta ao seu tempo de infância e adolescência, para mostrar como é que o mundo da guerra colonial era vista pelo lado de Moçambique.
“A guerra colonial vista pelo lado de Moçambique era uma guerra de libertação, era assim pensada pelo menos. Na minha cidade quando isso surgiu a cidade enlouqueceu, a cidade da Beira entrou em delírio e eu quero revisitar esse delírio, quero uma resposta, como é que a loucura coletiva pode ser uma resposta para uma situação insustentável”.
“Do ponto de vista do estilo [literário], quero uma coisa mais seca, mais enxuta”.
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