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PRIMAVERA, 2018
Tudo mudou, embora Martín não tenha a certeza de que as suas recordações sejam fiáveis, pois já passaram quase quarenta anos desde que chegou à aldeia a meio de uma tempestade dentro de um hord branco desconjuntado que pedia aos gritos uma morte digna.
Agora, as ruas recebem-no em silencio. Não o reconhecem. Não sabem quem é. Pensarão que se trata de mais um forasteiro que deseja afastar-se do ruído da cidade, mas o que procura o homem de setenta e dois anos que acaba de parar diante da estalagem é um amor perdido. Ainda não sabe ao certo como começar a busca; ao fim e ao cabo, não se trata de uma meia ou de um cvomo antigo. E não vai ser tão simples encontrar essa pessoa, porque o que lhe interessa não é um corpo, mas descobrir se tudo o que ambos tiveram, aquela história efémera, no entanto profunda, sobreviveu após tantas décadas.
Martín também é assaltado por outras dúvidas que surgem sempre com o passar do tempo, por isso tem medo. Tem tanto medo que não tem a certeza de que as mãos rígidas se devam somente à artrose. A pergunta que flutuou em seu redor durante todo o trajeto desde Madrid até Valência foi: será que continua a bater aquele coração de que sente tan- tas saudades ou terá parado um dia qualquer, e o vínculo que os unia estava tão desgastado que ele nem sequer reparou? Se calhar estava a tomar um café na cafetaria da zona ou a ler as notícias no jornal, incapaz de perceber que aquilo tinha acontecido.
Seja como for, precisa de o averiguar.
Martín está convencido de que um relógio inflexível que mais ninguém consegue ver o acompanha para todo o lado desde há uns anos, e o tiquetaque não o deixa dormir tranquilamente. Sabe que o tempo corre contra si. Sabe que é a sua última oportunidade. E sabe que precisa de ter mais uma conversa com o seu antigo amor antes de se despedir deste mundo.
A dona da estalagem diz-lhe que ainda há dois quartos livres.
— Qual é a diferença entre eles?
— A janela do quarto duplo dá para a rua principal; além disso, é maior e tem uma zona de estar com uma cafeteira e chá.
— Fico com esse.
— Vai ficar quantas noites?
— Ainda não decidi.
A mulher dirige-lhe um olhar curioso, mas é óbvio que, após anos a cargo daquela estalagem, domina a arte de não fazer perguntas indiscretas.
— De acordo. Basta pagar cada noite com vinte e quatro horas de antecedência — diz ela, enquanto Martín tira algumas notas e as deixa sobre o balcão de madeira envelhecida. — Tome, esta é a chave do quarto.
Depois, demora uma eternidade a subir até ao primeiro andar: um degrau, outro e mais outro, qualquer um diria que nunca mais acabam. Ao entrar, deixa a bagagem sobre o tapete, que possui um desenho floral que se parece fundir com o padrão do edredão que cobre a cama. Martín abre as janelas, respira o cálido ar primaveril e a seguir começa a desfazer a mala. Não trouxe grande coisa, apenas algumas camisas lisas de algodão, calças de bombazina, que a sua neta insiste que já passaram de moda, um chapéu de palha que nunca usou em Madrid, alguns livros que anos antes prometeu a si mesmo reler, várias fotografias dentro da carteira, os seus medicamentos e, o mais importante, um caderno de desenho antigo com as páginas amareladas.
A algumas pessoas dá-lhes para se agarrarem a coisas materiais conforme vão ficando mais velhas, mas a ele aconteceu precisamente o contrário: respeita o fascínio que os objetos despertam na alma, mas deixou de lhes dar valor ao compreender que nada disso o poderia fazer feliz. Martín considera que há dois tipos de felicidade: a dos pequenos momentos, ordinariamente acessível, e a plena, pura e imensa, um bem-estar tão profundo que é capaz de embriagar até ao delírio.
Uma vez, ele sentiu-se assim.
Mas não acredita que se possa repetir, pois esse tipo de felicidade é como ver uma estrela cadente numa noite nublada ou perder um botão na rua e encontrá-lo dias mais tarde.
Antes de sair do quarto, olha para o seu telemóvel e não lhe surpreende descobrir que não tem nenhuma chamada não atendida. Os seus filhos andam sempre ocupados, a correr de um lado para o outro, como sucede com os jovens, e as suas duas netas têm coisas melhores para fazer do que perder tempo a falar com um velhote como ele. Certa vez, a mais nova fez um trabalho para a escola que intitulou «O Meu Avô Martín» e, várias tardes, lancharam churros com chocolate num café de Lavapiés e falaram durante horas. Ao terminarem, ela assegurou-lhe que se tinha divertido e que deviam repeti-lo uma vez por semana, mas a intenção caiu no esquecimento e ele não quis recordar-lho para não a incomodar.
Martín sente-se como se fosse um punhado de açúcar a dissolver-se em café quente. Acredita que todo ele vai desaparecendo à medida que envelhece. Nas últimas décadas, desapareceu a força que tinha nas pernas e nos braços; desapareceram recordações, objetos que um dia lhe importaram e a emoção de alcançar metas, desapareceu inclusive a perceção que tinha do tempo e do espaço, como se tudo fosse mais moroso.
Tornou-se invisível, incluindo para as pessoas que lhe são mais chegadas.
Apesar da dor, Martín percebe, porque ele também foi jovem e lembra-se da sensação de pensar que o mundo era um lugar borbulhante e cheio de estímulos.
No entanto, teria gostado de comer mais churros com chocolate com a sua neta, sim. E talvez continuar a descascar com ela fragmentos da sua vida até deixar para trás o supérfluo e chegar mais e mais abaixo, até tocar na aguçada verdade. Aquela verdade que só outra pessoa conhece e que tem que ver com uma história de amor e desamor, tão doce como a calda e tão amarga como todas as despedidas.
VERÃO, 1980
Dentro do seu velho ford branco, Martín debruçou-se e semicerrou os olhos para tentar ver alguma coisa no meio da tempestade que se abatera instantes antes de seguir pelo desvio que conduzia à aldeia. Os limpa-para-brisas moviam-se com rapidez, mas não era o suficiente para ganhar a batalha contra as grossas gotas de chuva.
— Merda. — Soltou um suspiro e parou na berma da estrada.
Sacou o mapa do porta-luvas e abriu-o sobre o volante. Não fazia a mínima ideia de onde estava, embora as indicações do seu chefe tivessem sido precisas: «Assim que chegares à aldeia, viras à direita, segues em frente e, no terceiro cruzamento, viras à esquerda. É a casa número 17, tem uma caixa de correio verde.»
Andava há um bocado a dar voltas sem ver nenhuma maldita caixa de correio verde. Por fim, grunhindo por entre dentes, lutou estupidamente com o mapa, atirou-o para o assento ao lado e saiu do carro. Não tinha guarda-chuva. Correu até à tasca da esquina e umas campainhas tilintaram quando abriu a porta. Vários pares de olhos pousaram nele e, certamente, demoraram menos de um segundo a deduzir que ele não pertencia ali. Não estavam enganados. Martín afastou o cabelo húmido da testa, aproximou-se do balcão e pediu uma gasosa. Depois, abordou o empregado de rosto escanzelado que o fitava com desconfiança.
— Estou à procura da casa do Álvaro Ugarte, talvez o conheça. É o meu chefe. Deu-me instruções para a encontrar, mas com esta chuva...
— Fica ao final da rua. A gasosa são quarenta pesetas.
Martín agradeceu-lhe, terminou a sua bebida e saiu dali com a esperança de não ter de regressar. Nunca gostara das pequenas povoações porque tinha a sensação de que as pessoas o julgavam com condescendência por não ser capaz de deduzir o tempo que faria no dia seguinte só de olhar para o céu, ou de adivinhar que hortaliças se deviam plantar na primavera ou no outono. Ele era um homem da cidade, sempre fora. Gostava do ruído de fundo, daquele ronronar do tráfego, das pessoas e das persianas dos estabelecimentos que abriam de manhã bem cedo. E, nos seus tempos livres, gostava de ir ao teatro ou visitar algum museu, nada de queimar as tardes a jogar às cartas numa tasca enquanto se falava de futebol ou a criticar os políticos sem conheci- mento de causa.
A casa acolheu-o no seu silêncio quando conseguiu entrar.
Tal como lhe prometera o seu chefe, era um lugar pequeno e tranquilo. As paredes grossas pintadas de um branco calcário protegiam dois quartos, uma sala agradável sem televisão e uma cozinha de azulejos retangulares com um padrão de laranjas.
Tirou o maço de tabaco do bolso das calças e acendeu um cigarro. Lá fora, a chuva continuava a precipitar-se com fúria, como se estivesse zangada. Talvez tanto como a Candela, pensou ele. Sim, sim. Candela cairia assim em cima dele se se pudesse transformar em água, apesar de ele nem sequer saber o que teria feito de mal e talvez isso fosse o pior de tudo. «É a tua atitude em geral», costumava ela dizer, «não tens ambições, não avanças, não arriscas».
Expulsou o fumo sem grande vontade e olhou em seu redor.
Era o ano de 1980 e o seu chefe tinha sido muito atencioso ao lhe emprestar aquela casa, que herdou de uma tia afastada, para que Martín pudesse terminar o último projeto de que fora encarregado pela editora. A ideia era simples: uma enciclopédia botanica com plantas e flores desenhadas a lápis, destinada a todos os públicos, nada demasiado técnico. Martín andava há algum tempo a compilar informação e a sua única tarefa durante os próximos dois meses de verão era passar tudo a limpo para o poder entregar em setembro. Em teoria, era fácil, nada que não tivesse feito antes, mas andava desconcentrado e o tempo estava a esgotar-se.
Deixa-me ver o que tens — pediu-lhe Álvaro, semanas antes.
— É que ainda não comecei a trabalhar na última versão...
— Por esta altura? É para entregar na gráfica em finais do verão. — O seu chefe dirigiu-lhe um olhar perspicaz enquanto a azáfama no escritório seguia o seu curso; a editora, pequena e quase desconhecida, estava longe de ser um lugar sofisticado. — O que é que se passa contigo? Tens problemas em casa? É isso? Vá, rapaz, podes contar-me.
Apesar de trabalharem juntos há anos, nunca tinham ultrapassado aquela linha fina que separa o companheirismo da amizade. E, mesmo que fosse esse o caso, Martín não tinha nada para dizer, pois nem ele sabia o que se passava. Sentia-se... inquieto, sim. Quase desconfortável na sua própria pele. Talvez mais irritável do que o habitual.
— Talvez seja do calor de verão em Madrid. Olhe, tentarei trazer os primeiros capítulos dentro de umas semanas, dê-me só mais algum tempo.
— Tenho uma ideia melhor: pega nos teus apontamentos, na máquina de escrever e nas chaves da casa que tenho numa aldeia de Valência. A única condição é que termines a tempo. Se ficares por aqui, pouco farás estes meses com as crianças de férias.
Ainda o surpreendia ter aceitado, mas tomou a decisão assim que regressou a casa, e Candela e ele começaram a discutir sabe-se lá porquê. Cada vez ocorria com maior frequência, quando não era por estarem apertados de dinheiro, surgia outro problema qualquer. E na mente de Martín um pensamento angustioso dava voltas: Nunca serei capaz de a fazer feliz. Não importava quanto se esforçasse, porque seria insuficiente. Partilhavam momentos bons, claro, picos altíssimos que só faziam com que, mais tarde, a queda fosse ainda maior. Ao seu lado, Martín sentia-se um inútil, e havia uma vozinha a gritar-lhe que era defeituoso.
«Devias ambicionar mais», insistia ela. E ele percebia que ela quisesse um carro melhor, e que os filhos fossem para uma escola mais prestigiada, e que pudessem comprar a roupa na boutique mais elegante do bairro, e que fossem àquele supermercado de frutas brilhantes em vez da loja da esquina, gerida por Josefa, e que pudessem jantar em restaurantes caros com velas bruxuleantes, e que o céu fosse mais azul, e os pássaros cantassem melhor e todos os dias surgisse um arco-íris e...
Mais, mais, sempre mais.
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