A voz é a dos Mão Morta. O poeta, "não no sentido tradicional", é o que agora podemos ler numa colectânea organizada por Valter Hugo Mãe para a Porto Editora.
Ao décimo terceiro disco de originais, a banda de Braga apresenta um álbum de base modular, com 11 faixas/módulos no total. Uma ideia que vai buscar inspiração à música eletrónica, por camadas. A música e a história contada em “No fim era o frio” serviram o espetáculo de dança, de Inês Jacques, que a banda apresentou este ano em locais como Guimarães e Castelo Branco. Transversal a todo o disco está uma história. Distópica, de perda, de desolação e com a crise climática como pano de fundo.
Foi a poucas horas do concerto em Lisboa, no LAV, que falámos com Adolfo Luxúria Canibal. Publicamo-la no 1º de novembro — recordando o tema em jeito de efeméride. Lala lala la la...
I. Os módulos
"O disco é modular porque a ideia de base na sua origem é estritamente musical. Parte dos sintetizadores modulares, de uma forma típica de compor em eletrónica, a da composição por camadas. Quisemos experimentar fazer isso sem fazer música eletrónica".
II. A coreografia
"Surgiu o convite para fazer um espetáculo de bailado e com a nossa falta de tempo para fazer tudo decidimos integrar os dois no mesmo. Passamos a fazer a música não só para o novo disco, que já estávamos a compor, mas também para o bailado".
"A composição começou antes sequer da ideia do espetáculo de dança. Quando surgiu o convite para o espetáculo de dança, ainda estávamos numa ideia muito inicial do disco. Toda a composição do disco foi feita para o espetáculo de dança".
III. O disco
"Tudo o que está no disco já estava pronto [antes do espetáculo] e estava pronto tal como está no disco. Quando a Inês [Jacques] começou a trabalhar na coreografia, houve pequenas alterações que foram feitas".
"Houve partes que precisaram de mais tempo e nós alongámos e outras que não havia necessidade e encurtámos. A grande diferença entre o que está no disco e o que era a banda sonora do espetáculo de dança é desta ordem".
IV. A história
"Não estávamos a pensar ter uma história transversal a todo o disco".
"Havia uma história específica para cada tema, mas quando cheguei ao módulo IX — já que os temas iam tendo o nome do módulo I, II, consoante iam sendo prontos — olhando para trás, para as diversas micro histórias que tinha feito, achei que tinha uma história transversal que seguia a sequência numérica".
"Os dois módulos finais, o X e o XI, já foram feitos a pensar nessa história final".
V. A perda
"Esta história tem várias camadas. A mais imediata é uma história de amor, de perda, de perda que nos leva a questionar a vida. A nossa relação com o real, que nos leva de alguma forma ao destrambelhamento. Mas depois há outras camadas de leitura. E a questão ambiental é uma das outras camadas de leitura. A perda, em vez de ser da coisa amada, é simultaneamente do nosso território, do nosso habitat, do nosso modus vivendi. Não é só o amor, que para mim é a história principal. Mas depois há todas as outras leituras que podem ser feitas a partir do cenário inicial".
VI. O ambiente
"Ainda não chegamos a essa capacidade de adivinhação [ri-se]".
"É evidente que este não é um tema novo, está agora é nos holofotes mediáticos. Mas de facto, estávamos longe de pensar que o ambiente ia ser um tema com tanta atualidade no momento em que o disco sai. De qualquer maneira, este não é o tema essencial do disco. É o cenário onde as coisas se colocam. A distopia é o cenário onde a história se desenrola".
"Sou sensível para esse tema, uma vez que é a minha área profissional desde há muitos anos. É verdade que estou dentro do tema, mas não é por aí que vou falar dele. Até já podia ter falado há muito mais tempo. O que me levou a colocar as coisas nestes termos foi exatamente a música. A música é que me impingiu a questão ambiental".
VII. A distopia
"Quando o [António] Rafael me apresentou o primeiro esboço [de temas], aquilo fez-me pensar num cenário de desolação. Não tanto numa distopia, mas numa cidade escavada, com os prédios em ruína e as pessoas a aquecerem-se em fogueiras durante a noite. Assim uma coisa desconfortável".
"É esse cenário que nos coloca na história, o resto são pequenos pormenores. Podiam até nem ter nada a ver com a história. O grosso é o cenário, que é dado no módulo II".
"Mais uma vez a questão modular. Quis pegar em pessoas isoladas, que no fundo é a forma como as pessoas hoje vivem nas grandes cidades, fechadas, comunicando através da tecnologia e ligadas à rede mas isoladas. Pegar nessas pessoas e transpor essa comunidade de seres atomizados para uma outra realidade fictícia. Se falássemos dessa atomização em Lisboa, em Londres ou em Paris, seria corriqueiro. Porque as pessoas habituaram-se ao quotidiano delas. Mas se pegar nessa mesma atomização e a puser num cenário apocalíptico, de subida das águas do mar, de poluição e de gases tóxicos, etc., e se lhes acrescentarmos o facto de as pessoas não se tocarem, de repente a atomização ganha visibilidade. Isto é mais uma vez jogar com a ideia modular. Pegamos num módulo vivencial do isolamento, tiramo-lo daqui e pomo-lo acolá e o cenário ou a visão que temos das coisas ganha outro sentido".
VIII. O frio
"É uma resposta ao Genesis — 'No início era o verbo' — que é o principio da criação. Como quem diz que é a nomeação das coisas que cria as coisas. Deus nomeia, cria a palavra, e a coisa surge. Aqui nós estamos no contrário, estamos no fim da génese bíblica. Depois de todas as coisas existirem, o fim delas é o frio do vazio. Seja o frio cosmológico, seja o frio afetivo. O vazio é o frio e estamos no vazio, como se houvesse uma espécie de buraco negro que engolisse todas as coisas que foram nomeadas no inicio dos tempos. É este o sentido de "No Início o Frio. A construção da frase, replica a construção bíblica".
IX. O sexo
"O módulo IX foi o que me fez descobrir que havia uma história. Quando o Miguel [Pedro] me apresentou o tema, disse-me que a música era muito repetitiva, muito espraiada... 'Queria fazer aqui umas explosões, mas que não têm um sítio certo, dependem da colocação da voz'... Nós tínhamos feito há alguns anos um tema, o "Divino Marquês", que também tinha sido uma experiência de estúdio, e só o tocámos uma vez ao vivo, em que tocávamos todos a mesma coisa do princípio ao fim, mesmo que a certo ponto nos afastássemos da música até ser tudo uma cacofonia final que acompanhava o desenrolar da letra. Letra que explorava a história do Marquês de Sade, uma história sexual. A experiência musical acompanhava o desenrolar do que se passava em termos de história. E o Miguel disse-me que era bestial uma coisa desse género, algo sexual, onde pudesse fazer as explosões. Foi a pensar no "Divino Marquês" que introduzi o sexo. Este tema do contacto sexual com a amada que de repente se transforma numa espécie de monstro horrível, nojento. E, depois, as reações à descoberta desse nojo".
X. A poesia
"É uma questão de perspetiva. Se antes de me meter na música já escrevia e a ideia era escrever livros e poesia, a partir do momento em que comecei a escrever para canções e, sobretudo a partir do momento que comecei a escrever para canções pré-existentes, estamos a falar em meados dos anos 90, praticamente deixei de escrever coisas que não fossem direcionadas. Temos um livro [“No Rasto dos Duendes Eléctricos”] muito grosso, mas aquilo são quase tudo coisas direcionadas. A "Tu Disseste" é capaz de ser o último poema que escrevi, depois foi aproveitado para uma canção. Não era para uma canção, escrevi porque interiormente fui incitado a fazê-lo. Mas são muito poucas as coisas que surgem por necessidade interior".
XI. A necessidade
"A necessidade é uma necessidade prática... Se decidimos fazer um disco, se há canções, é preciso letra para aquela canção, não é por necessidade interior que tenho de fazer a letra. As músicas não são propriamente a musa que inspira os poetas. E quando não são canções, são outras coisas. Como escrever um poema para um livro de fotografia. São tudo solicitações externas que me obrigam a escrever. Quando o Bob Dylan ganhou o Nobel da Literatura houve muita gente indignada porque ele não fazia poesia, fazia canções. De facto é isso que sinto que faço. O que faço, de facto, são letras para canções. Não é poesia no sentido tradicional. Se é [poesia]?, claro que sim. Agora, não me sinto um poeta no sentido tradicional".
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