De Sean Baker, realizador de filmes como “The Florida Project” e “Tangerine”, conhecido por explorar narrativas com personagens marginalizadas, chega agora às salas de cinema nacionais “Anora”, que finalmente estreia em Portugal após conquistar, em maio, a crítica e a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Passado em 2018, o novo filme de Baker conta-nos a sua versão moderna da Cinderela, em que a “princesa” é uma stripper de ascendência uzbeque que vê a sua vida tomar um rumo inesperado ao conhecer e casar-se, de forma impulsiva, com um estranho.

Nesta versão do famoso conto, acompanhamos Ani (é assim que a Anora do filme quer que a tratem), uma jovem vivaça interpretada por Mikey Madison (a filha mais velha de Pamela Adlon em “Better Things”, série disponível em Portugal no Disney+ e que recomendamos vivamente). Ani leva uma vida modesta em Brooklyn, onde trabalha como dançarina exótica e acompanhante. E, tal como aconteceu a tantas outras “princesas” antes dela, há um dia em que um “príncipe” entra abruptamente na sua vida. Esse príncipe dá pelo nome de Ivan (Mark Eydelshteyn), um cliente que é também o filho pródigo de um oligarca russo.

A química entre os dois é instantânea e meio que arrebatadora, tal como a atração apaixonada e intensa que os une, e não demora muito para que criem uma ligação forte. Ani torna-se o porto de abrigo de um Ivan sem rumo, e esse Ivan assume o papel de cliente atencioso e salvador (seja ao convidá-la a passar uns tempos na sua enorme mansão ou ao levá-la para festas de arromba). A parte do conto de fadas está no facto de Ivan e a sua família estarem rodeados de luxo, riqueza e poder. O pior vem depois, quando Ivan decide pedir Ani em casamento durante uma viagem a Las Vegas. Ele tem 21 anos, ela 23, e a família dele não gostou.

O look dos anos 70

Além das interpretações dos dois protagonistas, que têm recebido rasgados elogios, especialmente Mikey Madison (fala-se que andará pelos Óscares, e há dias garantiu a nomeação nos Gotham Awards), há dois aspetos que se destacam no filme. Como é habitual nos trabalhos de Baker, há uma mudança de tom a meio, e a história deixa de ser aquilo que parecia. Continua a existir romance e comédia, mas o que parecia evidente no início torna-se menos óbvio. Essa é uma das qualidades. A fotografia é outra. E uma está intrinsecamente ligada à outra.

Para dar vida a “Anora” e a esta visão, Sean Baker voltou a colaborar com o diretor de fotografia Drew Daniels, com quem já havia trabalhado em “Red Rocket” (Daniels também assinou a fotografia de dois episódios de “Euphoria” e um punhado de projetos independentes). Inspirados pelo cinema dos anos 70, mais concretamente em filmes de crime passados em Nova Iorque, Baker e Daniels optaram por filmar em 35mm com lentes anamórficas, criando uma estética que nos transporta para outra época.

“Decidimos que a primeira parte desta jornada precisava de transmitir uma realidade cheia de intensidade, exuberância e vitalidade juvenil, com uma câmara mais livre e através de cores e tons mais quentes, quase como numa comédia romântica”, explicou Daniels. “Para a segunda parte, quisemos pontuar a mudança dramática na história, filmando com uma linguagem visual completamente diferente, mais próxima de um filme de gangsters, com uma paleta de cores mais fria e austera”. Este contraste visual foi essencial para capturar a transição de Ani entre os dois mundos, o da opulência e o seu, dando ao filme uma autenticidade crua que reflete bem a complexidade e realidade da sua vida.

“Pretty Woman” dos tempos modernos

“Anora” tem sido amplamente aclamado pela crítica, alcançando uma pontuação de 91% no Metacritic. Publicações como o The New York Times elogiaram a forma como o filme aborda temas de riqueza, poder e amor. O RogerEbert.com destacou a “magia cinematográfica pura” criada por Baker, enquanto o IndieWire fala num “romance hilariante”, mas de “partir o coração”. Em português, o Público descreveu o filme como um “conto de fadas moderno que bebe dos clássicos certos”, considerando inclusive que a Palma de Ouro é “perfeitamente merecida”. Já a Variety diz que o “Anora” faz parecer “Pretty Woman” um “filme da Disney”.

Aliás, esta comparação, de que “Anora” é o “Pretty Woman” dos tempos modernos, é a mais comum. Mas, a julgar pelo que se lê, parece que o filme de Sean Baker é bem mais do que um simples conto de fadas moderno. Segundo o LA Times, o impacto emocional do fim de “Anora” é tal que acaba por ser um tributo à própria Mikey Madison, que chamou a atenção de Baker em “Once Upon a Time ... in Hollywood”, de Quentin Tarantino. Impressionado, Baker escreveu o papel de Ani especialmente para Madison, e ela retribuiu com uma performance que a afirma como uma estrela a ter debaixo de olho.

Os filmes de Sean Baker têm uma sensibilidade muito própria para questões de classe e privilégio, sendo o tema da injustiça recorrente. Em “Anora”, ainda que amplifique a comédia, isso é bem visível. Tanto que, de acordo com o LA Times, este é um daqueles filmes em que parece ser impossível não torcer pela "princesa". É a nossa recomendação da semana.