Carlos Manuel Santos Vicente, 66 anos, ultima os pormenores das bancadas do estádio do Sport Lisboa e Benfica (SLB). Na sua mesa de trabalho, amontoam-se tesouras, espátulas, pinças de ferro, cola e os recortes da cobertura do estádio, que mais tarde ficará dentro de uma garrafa. Na garagem nº 17 da Rua Major Perestrelo da Conceição, no Bairro da Urbisado, não faltam motivos para olhar lá para dentro. Navios da marinha de guerra e mercante, estádios, pontes, rios, animais, motos e até mesmo a Sagrada Família estão dentro de garrafas e lâmpadas de tamanhos diversos, constituindo um espólio invulgar de alguém apaixonado pelo mundo do artesanato e pela arte de criar peças genuínas.

Natural de Cascais, o artesão está em Setúbal há 45 anos. Quando saiu da Tropa, foi trabalhar para a fábrica A História, na Avenida Luísa Todi. Só mais tarde conseguiu entrar para a Setenave, onde trabalhou como montador. “Depois de ir para a Setenave, tirei um curso de inspector, na Holanda e nunca mais parei”. No âmbito da sua actividade profissional, esteve no Bahrain, Dubai, Arábia Saudita, Kuwait, Irão, Iraque, Rússia, Ucrânia, Jugoslávia, Checoslováquia, Mar do Norte, “porque fazia inspecções de tudo quanto o Homem faz em ferro, que anda em cima da água”.

Em virtude da experiência profissional, apaixonou-se pela marinha e rapidamente transferiu esse gosto para as suas primeiras criações. Contudo, tudo começou com uma ida à Troia com o seu filho mais velho. “Chegado a Portugal e, mais precisamente a Setúbal, quando ia para a Troia com o meu filho mais velho levava sempre um canivete, porque gostava de fazer uns bonequinhos para ele. Fiz um barquinho com velas feitas de iogurtes e, então dei-lhe para pôr dentro de água.  Certo dia, o barco voltou a aparecer na dispensa e pensei em fazê-lo dentro de um frasco. E assim começou a minha obra, que não é cópia de ninguém”, explica ao DIÁRIO DA REGIÃO.

A partir daí começou a fazer as suas construções como hobbie até hoje. Quem olha para as peças, rapidamente percebe que se trata de um trabalho muito minucioso. Tudo o que está dentro das lâmpadas ou garrafas de vidro é feito com as suas próprias mãos e entra pelo gargalo ou casquilho. O segredo da sua arte, esse é mais difícil de desvendar, mas Carlos dá algumas pistas. “Eu não sou mágico, os anos é que me ensinaram, com muitos erros, muitas peças partidas, porque não estavam ao meu gosto, mas hoje já consigo fazer o que quiser. Construo tudo peça a peça. O principal é a base, depois tiro as medidas interiores e escolho um utensílio diferente para cada trabalho”, revela.

Veja a fotogaleria com o restante trabalho de Carlos Vicente no site do DIÁRIO DA REGIÃO.

Carlos Vicente
Carlos Vicente Carlos Vicente, em entrevista ao Diário da Região de Setúbal. créditos: Diário da Região de Setúbal

A matéria-prima das obras também é fácil de obter. “Tudo o que está dentro das lâmpadas ou das garrafas é reciclagem, uns rapazes amigos oferecem-me as lâmpadas, e as garrafas são dadas por um rapaz conhecido que é barman, no Casino do Estoril”. Depois, é a inspiração que fala mais alto.

Dada a originalidade da arte, Carlos Vicente já foi convidado a participar em várias feiras de artesanato. “Fiz várias vezes a Feira de Santiago nos anos 90, quando ainda era na Avenida Luísa Todi. Gostava muito, as pessoas apreciavam e compravam uma pecinha ou outra. Era para ir expor à Marinha Grande, mas tive de dizer que não, porque não temos apoio e fica muito caro”. Actualmente, face à falta de apoios financeiros, o único certame em que Carlos participa, por ser natural de Cascais, é na FIARTIL – Feira de Artesanato do Estoril. “Estou lá uma semana e as pessoas ficam pasmadas, quase que não acreditam que isto é mesmo puro artesanato. Quer dizer, se digo que entra pelo gargalo entra mesmo, não corto a garrafa nem o vidro”, insiste.

Caso contrário, diz, “não teria ganho prémios internacionais”, designadamente um prémio nacional para uma lâmpada com 1,20 metros, composto por vários navios da marinha mercante e marinha de guerra; uma menção honrosa, na Bélgica e um prémio internacional atribuído à peça mais pequena da colecção, inferior à largura de um cigarro.

Além do reconhecimento internacional, Carlos já teve oportunidade de entrar para o recorde do Guiness, mas não foi possível, porque não conseguiu arranjar um garrafão de 50 litros. “Eu já tenho a ideia, era colocar a fragata D. Fernando e Glória num garrafão de 50 litros, que acho que é a medida maior que existe feita em vidro. Vou ficar com esta mágoa até viver, mas ainda tenho fé, se aparecer, entrar para aquele nível do guiness, seria um mar de rosas”, acrescenta.

Aos 66 anos conta com o apoio dos filhos para a manutenção da garagem, mas a sua grande ambição era expor as mais de 500 peças numa galeria e ter um atelier próprio. “O que está aqui é uma amostra daquilo que tenho guardado no quarto onde durmo. Se tivesse um espaço, onde pudesse expor os meus trabalhos seria um orgulho muito grande para o resto da minha vida e ia privilegiar muito Setúbal”, confidencia.

Depois de ter as obras expostas, gostaria que a sua arte passasse para a nova geração, concretamente para a sua neta Matilde, de 6 anos. “Teria muito gosto e seria um orgulho muito grande para mim que a minha neta conseguisse dar continuidade ao meu legado. Ela gosta, mas vamos lá ver, tudo depende do tempo, ela ainda é muito nova”.

Apesar das contrariedades, Carlos admite não desistir daquilo que mais gosta, que é criar. “Se deixar de fazer aquilo que gosto, não quero o sofá ou o café todo o dia. Tenho de estar activo e essa actividade dá-me saúde. Não quero desistir, seja contra aquilo que for, nem que tenha de ir para a rua”, declara.