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Saímos de casa com passos lentos. Não queria dar voltas ao quarteirão do posto médico a fingir que ainda não tínhamos chegado. Não parecia perceber aonde íamos. Caminhava ao meu lado amparando-se no meu braço e calada para não denunciar a confusão.

Só olhei bem para ela à porta do posto médico. Casaco vestido do avesso, uma meia de vidro caída até ao tornozelo. Despi-lhe o casaco e voltei a vestir-lho, e ela não estranhou. Pensei em puxar-lhe a meia para cima, mas parecia uma ideia deslocada, duas mãos perna acima num simulacro erótico a desmascarar o pudor.

Baixei-me, mas as mãos não saíram dos meus joelhos. Levantei-me e resgatei a sua atenção.

«Puxa a meia, por favor.»

Olhou de uma realidade para outra.

«A meia, puxa a meia», e apontei para a perna.

Baixou-se como uma dobradiça perra e ajeitou-se. Ao levantar-se, a saia tinha subido até à cintura, mostrando-a sem roupa interior. Olhou para a porta.

Hugo Gonçalves junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 11 de abril, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz "Revolução", o seu último livro, editado pela Companhia das Letras.

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«Onde vamos?»

«A uma consulta.»

«Estou vacinada, não preciso de ir.»

«Eu sei.»

«Antes de me mandar para a escola, a minha mãe vacinou-me. Tenho a marca. Olha.» E arregaçou a manga.

«Vamos entrar, vamos.»

Sentei-a numa cadeira e fui falar com a rececionista. Observei o seu reflexo no vidro da receção para não a perder novamente. Fui-me sentar e ajeitei-lhe a saia de modo a tapar os joelhos. Ansiava pela ocasião em que ouviria que era cansaço, a idade não perdoava, para não me preocupar, mas, recuando até ao primeiro sinal, melhor, até à primeira vez em que assisti a sinais de revolta do seu cérebro, a esperança desfez-se. Descia o caminho empurrada pela doença.

Se calhar tinha-me distraído e não tinha reparado no princípio. Em que momento começou a envelhecer tão depressa? E sabia, sem admitir, que a velhice não vinha só; era ajudada por uma insidiosa doença. Até não ser nomeada por um médico não existia, não se fazia real. Não queria aceitar que algo não estava bem, não queria aceitar que aquele era o primeiro passo de um longo caminho.

Ao entrarmos, eu ia derrotado.

A minha avó pareceu não a reconhecer, apesar de ser a única médica que tive desde que aqui vivo. Fez conversa de circunstância, auscultou-a, viu-lhe os olhos, a boca e os ouvidos. Desenhos infantis estavam expostos na parede, ladeando o espelho sobre o lavatório e o desinfetante. Uma marquesa esperava os doentes perto das duas cadeiras junto à mesa ocupada, em grande parte, por computador, teclado e telefone.

A médica sugeriu à minha avó que fizessem um jogo, daqueles de criança. De seguida, desafiou-a a responder às suas perguntas. Em que ano estamos? Em que estação, sabe a data, onde estamos, quem sou eu. E ela imaginava certezas para preencher ausências. Disse para fazerem outro jogo e avisou que ia mencionar três objetos.

«Repita-os, se faz favor.»

Atolou-se no silêncio. Apetecia-me sussurrar as palavras aos ouvidos; depois de ouvir as respostas certas a doutora diria que era só cansaço, estava tudo bem, umas termas e tudo ficava resolvido. Mas não o disse. 

«Tente soletrar estas palavras ao contrário: mãe, pai, filho.»

«E Espírito Santo», respondeu ao fim de duas respostas certas.

Eu observava-a como se observa uma criança a passar por testes feitos de brincadeiras com propósito, encostado à cadeira com as costas bem direitas e as mãos húmidas de ansiedade.

Livro: "Cadente"

Autor: Mário Rufino

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 11 de abril de 2024

Preço: € 17,70

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«Segure o papel com a mão direita, dobre-o ao meio, ponha-o no chão.»

Obedeceu numa alegria infantil.

«Faça o que lhe peço: feche os olhos, estique os braços, levante-se. Pode sentar-se.»

Sentou-se satisfeita por estar a fazer bem o que lhe mandavam. A médica saiu do pequeno consultório e a minha avó olhou para mim, imagino, à procura de aprovação. Uma enfermeira entrou primeiro, baixou-se para falar com a minha avó.

«Venha comigo, vamos lá para fora onde há mais espaço.»

E aí, sim, olhou-me nos olhos à procura de aprovação.

Acenei afirmativamente, ela saiu de braço dado. Esperei pelo resultado do exame como ela esperou na minha escola, com receio de um responso.

«Precisamos de fazer exames complementares.»

«Para ver o quê?», perguntei distraído pelas gargalhadas da minha avó no exterior.

«Mais para eliminar hipóteses do que para confirmar.»

«E quais são esses exames?»

«Vou encaminhá-los para um colega dedicado a doenças neurológicas.»

Então é uma doença, pensei, em breve teremos um nome a embrulhar a confusão, um nome a reivindicar cuidados.

Sem desviar os olhos do que estava a escrever continuou a interrogar-me.

«Vive com a sua avó?»

«Não.»

«Ela tem família?»

«Não. Quero dizer… Eu.»

«Tem amigos?»

«Não», disse como resposta resumida. A gorda dos palmiers afastou-se e com ela as Testemunhas de Jeová, por isso, não, não tinha.

«A sua avó não pode ficar sozinha.»

Esperou que eu falasse.

«E vizinhos? Tem vizinhos?»

«Sim, claro.»

«Veja se podem vigiá-la, se podem estar atentos para o caso de ela precisar de ajuda.»

Esticou um braço e deu-me uma requisição para um eletroencefalograma, outra para uma tomografia axial computorizada, um panfleto e uma folha mais pequena com um nome e um número de telefone.

«Marque rapidamente a consulta com o meu colega. Se não conseguir para breve, venha ter comigo para eu vos ajudar. A posteriori, marque outra comigo.»

No panfleto: cuidados a ter com doentes de alzheimer. A doença tinha sido nomeada.

«Não nos precipitemos», disse em antecipação às minhas perguntas. «São só sugestões para segurança da sua avó. O meu colega, com o apoio dos exames complementares, há de ser mais objetivo. Fiz um simples exame cognitivo. O meu colega pode ter interesse em fazer outro. O relatório.» E entregou-me um envelope.

Nem me lembro de me ter despedido da médica. A minha avó falava animada com a enfermeira, que se levantou ao ver-me. Dessa vez, saímos juntos.