Em declarações à Lusa a dias de se completarem 200 anos sobre o nascimento do escritor Camilo Castelo Branco (1825-1890), o diretor do Centro de Estudos Camilianos e da Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, no concelho de Vila Nova de Famalicão, frisou a importância do autor de “Amor de Perdição”, lembrando as pontes internacionais que foram estabelecidas com universidades no Brasil e até nos Estados Unidos da América para o bicentenário.

“Camilo é tão valioso como um Machado de Assis, um Dante, um Shakespeare”, afirmou Sérgio Guimarães de Sousa, acrescentando que, “de uma maneira ou de outra”, ainda hoje os portugueses são descendentes da escrita de Camilo Castelo Branco e do seu “universo de eleição”, remetendo para o interior do país e para a região Norte.

Para o também professor da Universidade do Minho, Camilo Castelo Branco descende, por seu lado, de um “conjunto estelar” de autores que vai de Cervantes a Rabelais, “autores que cultivaram o romance no período em que o romance era inteiramente livre”.

“Camilo é um descendente direto desse tipo de criadores livres. É um escritor indisciplinado, irreverente, incondicionalmente livre, que é como quem diz um autor que não segue um rumo fixo, linear, e que subverte os códigos de género”, afirmou o investigador, que se doutorou em 2006 no Minho com a dissertação “Entre-dois. Desejo e Antigo Regime da Ficção Camiliana”.

Sérgio Guimarães de Sousa assinalou, por exemplo, que quando um leitor olha para “Amor de Perdição” como “uma narrativa carregada de sombras românticas” esquece-se de que boa parte do texto está carregada de humor e de ironia.

O diretor do Centro de Estudos Camilianos lembra momentos, na obra de Camilo, em que o autor, que sabe que quem o lê está à espera de saber o que acontece a determinada personagem, decide dedicar duas ou três páginas a uma descrição distinta. “Porquê? Porque decidiu”, afirmou o investigador, sublinhando que “Camilo é livre” e isso é algo que se manifesta na sua escrita.

As comemorações do bicentenário de Camilo Castelo Branco foram lançadas pelo Centro de Estudos Camilianos e Casa de Camilo no ano passado e prosseguem este ano, com destaque para vários momentos como o congresso internacional que se realiza entre sexta-feira e domingo, na Casa de Camilo.

Até 31 de agosto, no Centro de Estudos, é possível visitar a exposição “Jorge. Desenhos do meu filho”, constituída por desenhos da coleção do filho de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido, que teve a edição de um catálogo a acompanhar.

No próximo mês, no âmbito das novas edições das obras de Camilo, vão ser publicados, num só volume, “A Bruxa do Monte Córdova” e “A Filha do Doutor Negro”.

O programa do bicentenário inclui ainda atividades para escolas e um ciclo de cinema.

Camilo Castelo Branco nasceu em 16 de março de 1825 na Rua da Rosa, em Lisboa, e perdeu a mãe aos 2 anos e o pai aos 10, tendo ido viver com uma tia para Vila Real. Ao longo da extensa carreira jornalística e literária, assinou obras que viriam a ser livros maiores da literatura em português, de "Amor de Perdição" a "Doze Casamentos Felizes", entre muitos outros.

Homem de vários interesses, profissionais e amorosos, é preso na Cadeia da Relação do Porto, a par de Ana Plácido, acusados de adultério, dada a existência do casamento de Plácido com o comerciante Manuel Pinheiro Alves. Ambos foram absolvidos.

“Julgados na cidade e encarcerados durante cerca de um ano na cadeia da Relação do Porto, enquanto decorriam as investigações e as posteriores sessões do tribunal, o processo espoletou um enorme interesse mediático, dividindo a sociedade e a opinião pública portuguesa. O próprio rei D. Pedro V fez questão de visitar o réu no cárcere por duas vezes (em 1860 e 1861)”, pode ler-se no ‘site’ do Museu do Tribunal da Relação do Porto, onde se assinala a curiosidade de o processo ter sido alvo de despacho pelo juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, pai do escritor Eça de Queirós.

Mais tarde, instalam-se em São Miguel de Seide, numa casa que tinha pertencido ao entretanto defunto Pinheiro Alves.

“Sem outros recursos além dos do seu trabalho, [Camilo] faz da pena o ganha-pão único numa ansiosa e febril necessidade de escrever para viver. Assim lhe vão decorrer os últimos 25 anos de vida, numa casa triste, cercada de paisagem triste. O destino dos filhos adensa-lhe sobre a alma nuvens negras de funestos presságios: Manuel, após uma falhada aventura comercial em Angola, entrega-se aos excessos de uma vida de boémia e morre prematuramente [em] 1877; Nuno segue-Ihe o exemplo, numa sucessão ininterrupta de aventuras, jogo e degradação a que nem um casamento de escândalo, patrocinado pelo pai, consegue pôr termo; Jorge, que começara desde cedo a dar inequívocos sinais de perturbação mental, mergulhava pouco a pouco num estado de demência irrecuperável”, lê-se na biografia disponível no ‘site’ da Casa de Camilo.

Um dos dois “gigantes” literários do século XIX português, a par de Eça de Queirós, na opinião de Sérgio Guimarães de Sousa, Camilo Castelo Branco, já cego devido à sifílis de que padecia, suicidou-se em 1 de junho de 1890.

Mais relevo nas escolas para Camilo Castelo Branco

O escritor transmontano A. M. Pires Cabral defendeu hoje que se deveria dar mais relevo a Camilo Castelo Branco nos programas escolares, esperando que a celebração do bicentenário do nascimento do autor incentive à leitura da sua obra.

Para António Manuel Pires Cabral, o ano de 2025 é de festa e uma ocasião para se comemorar a vida e a obra de Camilo Castelo Branco (1825–1890), mas, na sua opinião, era também “muito bom” se, em consequência do bicentenário, o Ministério da Educação desse um lugar de “mais relevo”, nos programas escolas, à obra camiliana.

À agência Lusa, o antigo organizador das Jornadas Camilianas disse que Camilo é “um grande escritor de língua portuguesa”, que "domina e ensina a usar a língua portuguesa".

E na comparação entre dois grandes autores portugueses – Camilo e Eça de Queirós – afirmou que prefere Camilo Castelo Branco.

“O seu espírito, o seu modo de ser, a sua alma é portuguesa, enquanto Eça é muito afrancesado, é um grande escritor, não se pode negar isso e gosto dele, naturalmente, mas não me sabe bem como me sabe o Camilo”, salientou.

Na sua opinião, Eça é mais frio, mais irónico e menos envolvido nas coisas e Camilo mais emotivo, e quando se “metia era para valer”.

A escrita e a vida de Camilo Castelo Branco por Vila Real aproximam Pires Cabral do autor que descreveu como “insubordinado” e “incorrigível” e que acabou sovado pelo capanga “olhos-de-boi”, na cidade transmontana, devido aos artigos escritos em jornais em que atacava o governador civil da altura.

Aos 83 anos, Pires de Cabral concilia a escrita com o trabalho no Grémio Literário Vila-Realense, que tem o seu nome.

Nasceu em Macedo de Cavaleiros, no distrito de Bragança, vive em Vila Real e é em Trás-os-Montes, no encontro entre o granito e o xisto, entre a serra, o rio Douro e a "sua" Terra Quente, que o escritor encontra inspiração para a sua obra.

Trás-os-Montes foi também um local de inspiração para Camilo Castelo Branco, que passou por Vila Real, Vilarinho da Samardã e Ribeira de Pena, onde casou aos 16 anos com uma rapariga de 14 anos com quem esteve apenas um ano.

Pires Cabral foi um dos coorganizadores das Jornadas Camilianas que, na década de 1980, centraram a sua atenção na presença de Camilo em Vila Real e na divulgação da sua vida e vasta obra, da qual se destaca o romance “Amor de Perdição”.

“Os grandes especialistas em Camilo vieram cá”, realçou, explicando que o evento juntava uma parte académica com uma parte mais lúdica. “E o Camilo às vezes interrompia as nossas sessões”, brincou.

No próximo domingo, Vila Real associa-se às comemorações do bicentenário com a inauguração da exposição “Memória de Camilo na biblioteca de Vila Real” e o lançamento do livro “Camilo por terras de Vila Real – antologia breve”.

Pires Cabral explicou que esta obra reúne um conjunto de textos de Camilo Castelo Branco, referentes aos locais por onde passou nesta região, de Vila Real a Ribeira de Pena, passando por Vilarinho da Samardã, onde a sua irmã casou, ou Fojo do Lobo (armadilha para capturar lobos).

“Celebrar o bicentenário de Camilo Castelo Branco, um dos maiores nomes da literatura portuguesa, é para nós, vila-realenses, não só um orgulho, mas uma espécie de dever, visto que terá começado aqui a sua carreira literária”, afirmou Mara Minhava, vereadora da Cultura da Câmara de Vila Real.

A autarca disse que o município está a trabalhar numa candidatura à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) - “Escritores a Norte” -, com a qual pretende apresentar o projeto “Roteiro Regional: Camilo por Terras do Interior”, que abarcará a literatura, o teatro, a música e a cinematografia.

“Pretendemos celebrar Camilo, relendo-o e conquistando novos leitores”, frisou.

Ao longo do ano decorrerão outras iniciativas como o lançamento de um livro de Pires Cabral com textos que escreveu sobre Camilo Castelo Branco, serão recordadas as Jornadas Camilianas, realizados concursos literários e de caricaturas e a dramatização de textos camilianos.