Os primeiros relatos conhecidos sobre a vida de Camões aparecem já depois da morte do poeta. O grande motor da sua fama, Os Lusíadas, surgiu poucos anos antes do seu desaparecimento, pelo que a sua consagração como “príncipe dos poetas” é póstuma. Estes primeiros testemunhos, de Pedro Mariz/Manoel Correia, Severim de Faria e Faria e Sousa são, durante dois séculos, as principais fontes para o estudo da vida do poeta. Não são fontes coevas, mas não são distantes. São escritas quase como memórias, em primeira ou segunda mão, da vida do poeta.
Quando, no século XIX, o grande movimento erudito de reorganização e alargamento dos arquivos nacionais, aliado ao estabelecimento da filologia moderna, estabelece os princípios das biografias e dos estudos literários modernos, é natural que a vida de Camões também seja reexaminada. De facto, todas as fontes coevas que sustentam hoje as biografias camonianas vêm desse tempo. Com variações maiores ou menores, o esqueleto biográfico de Camões ainda é aquele que montaram Storck, Carolina Michaelis ou o visconde de Juromenha. Todos eles espremeram os documentos existentes até à última letra e formaram mapas engenhosos sobre a vida de Camões. Usaram poemas, documentos laterais, tradições populares, tudo o que pudesse descortinar mais um pouco da vida do poeta, perdida entre tantos anónimos do século XVI.
Este esforço extraordinário poderá, por vezes, esconder o dado biográfico mais importante sobre a vida de Camões. Aquilo que de mais verdadeiro e seguro se pode dizer sobre a biografia do poeta é que, à data de hoje, ela é uma miragem. Conhece-se uma dezena mal contada de documentos sobre o poeta, os testemunhos póstumos já referidos, alguns documentos apócrifos e as inferências que se podem retirar de alguns poemas.
Daqui resulta que, passada a curiosidade natural dos anos que se seguiram à consagração, que pediam um conhecimento mínimo sobre o poeta, e aqueles anos de verdadeira revolução filológica, que obrigavam a procurar nos tombos antigos informações sobre o poeta e a escrutinar o conhecimento tradicional sobre a sua vida, a ideia de um estudo biográfico sobre Camões perde o seu propósito.
A biografia de um escritor pode ser importante para esclarecer pontos mais obscuros da sua obra, para se conhecerem motivações ou para enriquecer a interpretação dos escritos com ângulos a que, de outra forma, estaríamos cegos. Para isso, no entanto, é necessário um conhecimento biográfico que os documentos conhecidos sobre Camões não permitem. Se o essencial de Camões é a obra, então o que conhecemos da sua vida pouco nos diz sobre o essencial, e voltarmo-nos para ela é voltarmo-nos para o que menos interessa. Mais, o corpus camonístico é pouco mais do que a sua obra, pelo que só vasculhando nas entrelinhas dos seus poemas podíamos especular um pouco mais sobre a sua vida. Acontece, no entanto, que o corpus poético de Camões, como o de tantos poetas do século xvi, é bastante incerto6. A sua lírica é extraída de edições póstumas que aproveitam cancioneiros nem sempre fiáveis e de outros cancioneiros também eles cheios de atribuições autorais contraditórias. Conhecem-se vários poemas atribuídos, nos cancioneiros, quer a Diogo Bernardes, quer a Camões, por exemplo. Daí que, mesmo que não violentasse uma consciência literária a redução do alcance da poesia de Camões ao âmbito da sua vida, a conjectura sobre a vida de Camões a partir da sua obra seja ainda mais difícil: não só é complicado extrair conclusões biográficas a partir de qualquer obra literária, como, no caso de Camões, é possível extraí-las a partir de poemas que não lhe pertencem, o que reduz o grau de certeza deste método a quase nada.
A biografia literária, qualquer que ela seja, já provoca alguns problemas de método. Ninguém lê uma biografia de um escritor sem a confrontar com a obra, pelo que tudo o que pode ser dito sobre a vida de Camões, ou de Shakespeare, ou de Cervantes, remete naturalmente para a sua obra. A biografia constrói-se, mesmo que involuntariamente, como uma causa do que foi escrito, como uma explicação. Quando acontece, como em Camões, que a vida é pouco conhecida, ou se perverte o propósito – e uma obra universal passa a servir para explicar uma vida, reduzindo o seu alcance – ou a explicação é ainda mais ilegítima.
Posto isto, é importante esclarecer que o facto de nos parecer tão inútil como ilegítimo, sem novos dados de monta ou uma revolução metodológica completa, tentar uma biografia de Camões, isso não impede que se estude o poeta tendo em conta também as suas circunstâncias. Isto é, por muito que não conheçamos a vida do poeta, temos um conhecimento mínimo do mapa e da cronologia dos seus movimentos, que permite aproximar o poeta das mentalidades que o rodeavam. O confronto dos textos de Camões com estas mundividências permite encontrar neles certos sentidos para os quais, por vezes, estamos adormecidos. Não quer isto dizer que os textos de Camões só têm um significado histórico, que só podem ser entendidos no contexto da sua época, mas sim que o seu significado universal por vezes pode escapar-nos se não percebermos o quadro de sentido em que ele se move. É diferente, para usar um exemplo extraído de Frederico Lourenço e de Hélio Alves, perceber a alusão que Camões faz ao “estilo corrente” usando os significados modernos da palavra “corrente” – que nos apontariam para a ideia de “escorreito” ou mesmo “comum” – e percebê-la conhecendo as leituras latinas de Camões e o uso desta mesma palavra na descrição do estilo épico em Horácio, Ovídio, Cícero ou Aulo Gélio, em que o que está em causa é uma metáfora fluvial, comparando a expressão ao caudal forte e grandioso de um rio.
O sentido não é circunstancial – a metáfora tem validade hoje –, no entanto, a mudança das referências e dos usos do vocabulário cegam-nos para o significado do poema. É neste sentido, então, que Camões precisa de estudo. Embora falemos ainda a sua língua, esta não é sempre exactamente a mesma, e até o seu pensamento subentende ideias e mentalidades em que podemos não reparar, criando assim uma ilusão de compreensão da leitura.
A primeira razão que torna importante estudar Camões – e fazê-lo de um modo que implica conhecer minimamente as suas circunstâncias e olhar para fora do texto – é, então, esta: pela amplitude dos seus temas, pelo facto de repassar a História de um país e os grandes temas filosóficos, de tocar a política e o humor, as relações mais chãs e os temas mais elevados, por escrever tanto sobre particularismos nacionais e até preocupações do homem-só como sobre o sentido da História universal ou da máquina do mundo, por tudo isto a obra de Camões leva-nos a uma época, no seu modo de pensar, nos seus gostos literários e nos tipos de relação, de um modo muito peculiar. Há uma cultura que está em Camões, mas que está, de certo modo, escondida nele. Sem pretensões herméticas, mas simplesmente porque se trata de uma cultura que, nalguns aspectos, já não é a nossa, embora noutros ainda o seja, criando assim a ilusão de uma compreensão total que importa desmascarar. Mais, esta cultura, como qualquer cultura, não é homogénea – alberga contradições e é cega em relação a alguns problemas, não é um sistema, em que todas as crenças e comportamentos derivam uns dos outros – mas tem ainda assim a sua coerência. Significa isto que um conhecimento mais aprofundado desta cultura também harmoniza as próprias ideias de Camões, dota-as de um alcance mais amplo e mais fundamentado. Isto é, estudar Camões também a partir das suas circunstâncias dá-nos uma visão geral que tanto permite ir para lá dele no sentido em que ninguém está desperto para todos os elementos do seu campo linguístico e gnosiológico, como permite aprofundar a compreensão da sua obra.
Há, no entanto, outro aspecto que nos parece igualmente importante no estudo de Camões. Camões não é apenas símbolo de uma cultura, o expoente máximo do maneirismo ou a mais candente expressão do cruzamento entre o experimentalismo das descobertas e a renovação do estudo da cultura clássica, a síntese entre um messianismo que pode ter inspirações judaicas e o pressentimento de uma desgraça iminente, o filho mulato de uma cultura cavaleiresca e de uma burguesia aventureira nascente.
Camões é também, desde o século XVI, o arquétipo da visão dominante da cultura nas suas várias desformalizações ao longo dos séculos. É o escritor clássico no tempo dos árcades, o romântico quando Garrett escreve o seu poema sobre o vate e o “monumento nacional” no dealbar da República. É um escritor maldito, o símbolo do Império e até, na versão de Eduardo Lourenço, uma antecipação pós-moderna da obra literária voltada para as suas condições de possibilidade. Ou seja, trata-se de um arquétipo cultural muito elástico, com duas notas importantes. Por um lado, representa sempre uma ideia dominante de cultura. Ou seja, o entendimento de Camões só se faz a contra-corrente quando a própria ideia de contra-corrente passa a ser a ideia dominante sobre o papel da literatura. Camões tem um significado universal no sentido em que o entendimento da sua obra tem sido sempre tomado a partir dos moldes “certos” de compreensão da literatura, o que confirma a sua como uma “obra aberta” no sentido que lhe dá Umberto Eco.
Acontece ainda, contudo, que a função arquetípica de Camões não é apenas social. A sua interpretação revela, ao longo dos séculos, um entendimento sobre o que deve ser um escritor que ultrapassa o plano literário. A construção da biografia camoniana sofre com a tese de que há um modo psicológico de ser escritor, que há uma personalidade própria de um grande escritor. É por isso, porque Camões tem servido para legitimar várias ideias de cultura e de literatura, que também nos parece útil ir dando alguma notícia sobre as divergências acerca da biografia de Camões. Estas divergências espelham também várias culturas e, nesse sentido, conhecer a genealogia dos estudos sobre Camões também nos dá uma paisagem da história cultural ao longo dos séculos, que ultrapassa o encadeamento factual da história da cultura. Permite conhecer os modelos psicológicos e literários que formam a história intelectual.
É difícil, assim, encontrar uma resposta esclarecedora sobre o método que preside a este livro. Não será certamente uma biografia e só num sentido muito lato poderá ser considerado um trabalho de crítica literária. Haverá alturas em que se aproximará da História das mentalidades, outras em que se assemelhará a um estudo psicológico e outras em que o foco estará na beleza, a que só com grande cinismo poderíamos retirar valor como ideia independente, de um verso ou de uma passagem. Esta amálgama parece-nos justificável porquanto o grande foco, mais do que no método, está na obra de Camões, e o método variará assim consoante aquilo que nos parecer mais útil para aprofundar a compreensão desta obra, bem como o seu alcance. Isto exigirá que nos lancemos por vezes para fora dela – quer no encalço daquilo que ela sugere, quer em busca dos elementos necessários para mergulhar nela – e que noutras tentemos focar-nos nos aspectos mais circunscritos e formais dos poemas.
Acrescentamos ainda duas notas práticas. Para facilitar a leitura, a indicação da proveniência dos poemas de Camões não é referida em nota bibliográfica. São poemas geralmente aceites como camonianos, e figuram nas recolhas de referência, como a de Maria Vitalina Leal de Matos, editada pela E-Primatur. Também a bibliografia secundária só tem referência bibliográfica quando é referida no texto pela primeira vez ou quando pode haver dúvida, motivada pela citação de outros livros do autor. Parte-se assim do princípio, quando se menciona um autor, de que nos estamos a referir ao livro já citado.
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