Numa viagem ao Porto, uma parede que era branca num dia deixou de o ser no seguinte. Uma das ilustrações de Clara Não ocupava-a agora. Aquela parede que foi o nosso ponto de referência durante a estada era agora um statement para transeunte ler. No regresso a Lisboa, o correio havia deixado o seu livro, recentemente editado pela Ideias de Ler, uma chancela da Porto Editora. Coincidências? Só se acrescentarmos que estaria também ela pela capital nos dias seguintes. Clara não nos deu uma nega, e na véspera de estar a desenhar os problemas dos seus seguidores, leitores, fiéis, sentámo-nos à conversa.
Clara tem 25 anos. Lê-se nas notas biográficas que abrem o seu livro que nasceu no meio de freiras, na Ordem no Carmo, Porto: "Teve de nascer dois dias mais cedo porque, no dia marcado, o coro de que a freira-parteira fazia parte tinha uma atuação". Perde-se no entusiasmo do diálogo e encontra-nos em novos temas e angústias. O fio condutor é o seu livro, "Miga, Esquece Lá Isso! - Como transformar problemas em risadas de amor-próprio".
O interesse pelo inquietante começou com o norte-americano Basquiat, ainda no secundário. Tirou Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes, no Porto. Em Erasmus mergulhou — palavras suas — na ilustração. Foi exatamente nessa altura em Roterdão, na Willem de Kooning Academie, que começou a trabalhar, a par do desenho, na narrativa. E, no traço de Clara Não, a imagem não vive isolada do contexto que lhe dá mote. "São duas perspetivas da mesma situação", diz.
Em 2015 assumiu que queria ser conhecida pelo seu trabalho. Surgiu então a necessidade de se apresentar: Clara Não. E de onde vem o nome? "A resposta mais fácil é: porque não? Eu sou Clara Silva, e Silva é dos apelidos mais comuns em Portugal e no Brasil. Fiz uma pesquisa! A Wikipédia vale o que vale, mas acredito que seja mesmo isso". Por muito gostasse do seu nome — "é português, é meu" —, queria ser reconhecida. Fez então uma lista de nomes para trocar o Silva, "mas não gostava de nenhum". Uma coisa era certa: "Clara era para ficar".
Da lista de nomes que fez, só se recorda de que não gostava de nenhum. "Lembro-me de os estar a riscar com um marcador. 'Não, não, não'. Depois parei e pensei: 'Porque não Não?' E assim ficou: Clara Não". Uma escolha que se revelou útil para os trocadilhos com a semântica — "Clara Não gosta, Clara Não vai".
"Mulheres bem comportadas nunca fazem história"
"Com o passar dos anos fui-me apercebendo de todos os problemas à minha volta e de toda a problemática dos protocolos sociais. Por isso o 'Não' também faz todo o sentido por ser contestatário", prossegue na explicação do nome.
Mas nem sempre foi assim. Pelo contrário. "Antes era demasiado comportada", brinca. Comportada "no sentido em que devia adaptar-me ao mundo". "Não conseguia distinguir entre ser boa aluna e boa pessoa, por exemplo". Foi um papel que encontrou no chão de uma das ruas de Roterdão que mudou tudo, ao ponto de ainda hoje o guardar.
"É um papelzinho assim deste tamanho. Vocês não sabem porque não me vão estar a ver, mas é assim, um cartãozinho de visita, ou um bocadinho maior. Era uma publicidade para uma festa num bar chamado "Bar" — sim —, que tinha as festas mais esquisitas. O papel dizia: 'well-behaved women never make history' [mulheres bem comportadas nunca fazem história]. Se formos a ver, se não lutares por aquilo que defendes, se não contares uma história, se não te defenderes a ti mesma, vais estar a ver a vida pelos outros".
"Os desenhos também começaram por essa altura, para perceber-me a mim mesma. As coisas não batiam certo. Quem eu era suposto ser não coincidia com a pessoa que era. Esse papelzinho foi o choque. Se calhar devia dar mais valor ao que penso, e ao que acho. E aprender a dizer que não".
"Umas pilas depois, estamos na mesma"
"Este livro é um pedacinho de mim que partilho com muito amor e indignação", explica na introdução, antes de oferecer quatro capítulos organizados numa narrativa. São eles: 'Para enviar aquele indivíduo', 'Eu passei / Tu Passaste / Agora Não Passa', 'Manifesto de uma mulher independente' e 'Os elefantes voadores semeiam girassóis'. A ideia transversal aos quatro é clara: "Migas, não estamos sozinhas".
Ora em palavras ora via desenho, suavizadas pelo traço, inflamadas pela escrita — sendo a frase acima a negrito uma delas —, afinal de onde vêm estas reflexões?
"Falo muito sozinha. Às vezes estou chateada com alguma coisa e começo a falar. Paro, e: 'Ah, isto é giro', e escrevo. Lembro-me perfeitamente de um dia estar chateada com alguém e de dizer 'eu não percebo um caralho, eu percebo um, dois, três, quatro, cinco'. E ilustrei isso. Outras são coisas que oiço ou vejo na rua. Também há quem me mande mensagens ou comente, e bebo inspiração daí".
Quem tem conta no Facebook ou no Instagram já se pode ter cruzado com a partilha das suas ilustrações: algumas delas integram o livro sobre o qual falamos e que está no top 10 dos mais vendidos, em português, na Wook, Bertrand e FNAC. "As pessoas normalmente agradecem-me porque se reconhecem nas ilustrações", conta quando questionada sobre as reações que já lhe chegaram. "São sentimentos de que às vezes as pessoas não falam, mas que existem. Tenho tido uma boa receção. Claro que às vezes há uns comentários mais desagradáveis. Eu respeito que não concordem. Mas eu já recebi insultos por mensagem". E, como os sentimentos, Clara diz que "este livro não é só para uma geração, é para todas, homens ou mulheres".
E se fosse o João ou o António Não?
Se é indiferente quem lê, não é quem escreve: uma mulher a falar abertamente (e graficamente) sobre relações, ex-namorados e sexo. Ou sobre como não lhe devem dizer como se vestir, pensar ou comportar. E se fosse um João ou um António Não a fazer este livro?
"Cheguei a pensar muito nisso. Se uma mulher tivesse feito isto a um homem [refere-se a atitudes de ex-namorados], acho que ele estava no direito de fazer o que fiz [retratar a situação em livro]”.
A receção masculina, diz a ilustradora, tem ido do “eu não sabia que isto era assim” ao “obrigado” ou a pedidos de desculpa em nome dos homens. “Claro que também há os que sentem o ego ferido, mas aí o problema é com eles, não é comigo. Tenho gosto em ferir o ego, se esse ego é machista".
"A minha ilustração é cute, mas aggressive. Chama a atenção por ser fofa, mas não é. Tem esses dois lados. E é esse o poder da ilustração. Passa mensagens muito fortes, de uma maneira simples e visual".
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