Traz a família na boca, o lugar mais perto do coração. Filha do cineasta João Falcão e da escritora Adriana Falcão, ambos guionistas da Globo, não se imagina quem é hoje se não fossem as horas passadas pelos camarins na infância.
A influência familiar estende-se ao humor, que sempre fez parte da comunicação na sua casa. “A gente sempre lidou com os acontecimentos da vida, principalmente os mais trágicos com muito humor."
E quem a faz rir? "A minha mãe, ela é bem louca”. Mas não só. “Eu rio muito, eu acho tudo muito engraçado, eu gosto desde o humor mais sofisticado e inteligente até ao humor pastelão de gente caindo no chão. Eu tenho propensão para achar graça nas coisas."
Clarice ficou conhecida em Portugal pela sua participação no “Porta dos Fundos”. Quem não se recorda de um dos mais emblemáticos sketches da série (a par com o do Mário Alberto, claro) em que uma mulher, Clarice, fecha o coração à sua cara metade, Gregório, da seguinte forma: “meu amor, eu já não amo mais você”. Apesar de ter fechado a porta ao coletivo em 2015, a janela ficou aberta.
A decisão prendeu-se com a vontade de se desafiar. “Estava muito confortável, fiz três anos no Porta e o Porta é um lugar muito confortável de se estar. Eu trabalhava com os meus melhores amigos, já sabia como fazer os textos, já tinha os meus truques, meus subterfúgios. Então me comecei a sentir confortável de mais. Quase fazendo mecanicamente. Aí eu notei que eu precisava de dar uma mexida na vida.” Para Clarice o desconforto é importante para os artistas. "Eu, pelo menos, sinto que quando se está a fazer a mesma coisa por muito tempo... eu começo a me repetir." No entanto, a porta não fechou (literalmente). Clarice diz estar “super aberta” para um regresso à equipa, mas esclarece: “acho difícil voltar regularmente".
Questionada sobre se faltam mulheres feministas no humor brasileiro, em alusão ao tema que fez títulos na imprensa portuguesa recentemente, Clarice não tem rodeios: "Eu acho que faltam mulheres, ponto.” Mais: “acho que faltam mulheres fazendo tudo, justamente porque a gente encontra tantas dificuldades no caminho, é tão difícil. Eu olho e vejo: na política faltam mulheres; nos altos cargos de empresas e corporações, faltam mulheres. Tem aquela frase machista: 'vai para o fogão, vai para a cozinha'. E depois você vai ver e os grandes chefes, na maioria, são homens.”
Na visão da artista brasileira, ainda temos “uma sociedade muito repelente à mulher”. “A gente deixa a mulher ir até certo ponto e a partir disso é quase como se a gente tivesse tomando o lugar dos homens", acrescenta.
"Para uma mulher ser considerada engraçada, ele tem de trabalhar dez vezes mais. Eu não sei se aí é assim, mas aqui no Brasil é. Mas, apesar disso, tem grandes humoristas mulheres."
Clarice considera-se por isso feminista (percebemo-lo bem nas suas letras). "Eu me considero feminista justamente porque luto, faço o possível para lutar pelas oportunidades e tratamento igual".
Pedimos-lhe um retrato do Brasil de hoje, o Brasil de Temer. "Estamos num retrocesso, é o que eu sinto. Como se a gente tivesse dado um passo para a frente e agora está num segundo passado para trás. Não apoio integralmente o que o Governo PT fez, discordo de vários pontos, mas acho que o que aconteceu pouca gente acha que foi benéfico. Estou vendo muita gente que lutou pelo impechement que não está exatamente arrependido, mas está protestando contra diversas medidas do Temer. Todo o mundo agora está sentido o baque do retrocesso."
Então que Brasil é este em que “Ney Matogrosso é homofóbico e Chico Buarque é machista”? "É um Brasil que está conversando. E é necessário falar sobre isso, mesmo que sempre vá ter gente que é mais ou menos radical". Esta é, conta, uma conversa que o país precisava ter e, até, “voltar a conversar".
Na adolescência começou por compor em inglês, “era o tipo de música que ouvia”. “Mas eu fui criada com muita música em português e quando comecei a escrever eu me reapaixonei pela língua portuguesa”, conta. Foi nessa fase também que, assumiu, desenvolveu “um certo estilo de composição”. “Até então era eu mimetizando coisas que ouvia e de repente eu me senti no controlo da minha própria criação.”
Clarice Falcão tem dois álbuns, “Monomania” (2013) e “Problema Meu” (2016). Muito mudou entre eles. "Parece pouca diferença essa coisa dos 20 para os 25, mas muda muito”, conta. “O primeiro álbum é quase um grande roteiro, as músicas são todas sobre obsessão, têm o mesmo personagem e são muito parecidas entre si. Ele é muito protegido dentro de um conceito. Como eu gostava de escrever histórias, falei 'pô, vou fazer um álbum que é uma história'. No segundo álbum já estava mais tranquila em ser mais anárquica, fazer mais doidice. Então o álbum é todo diferente entre si: tem rock, tem pop, tem um axê de Carnaval. Os próprios temas variam de assunto. E eu acho que estou mais madura e mais livre."
A conversa já vai a meio, Clarice 'boa onda' responde com aquela voz cantada que nos encanta. Arriscamos, ‘então e qual é o seu problema?', em alusão ao título do último álbum. Clarice ri-se, ouvimos e temos pena de não ver a sua expressão. "Neurose, sou muito neurótica", diz. "Repenso as coisas muitas vezes", lamenta.
Isso afeta-a na composição, mas vinga-se e tira-lhe proveito. “Por um lado é bom, uso essa neurose para compor”, conta. Já na vida pessoal isso “atrapalha” no momento de “lidar com os defeitos de tudo, lidar com crítica ou lidar com a fama”. É pior, portanto, que na vida profissional, “porque aí ainda consigo racionalizar”.
E já que se toca na vida pessoal, importa falar de Gregório Duvivier. Clarice e Gregório conheceram-se na juventude e casaram-se tinha ela 20 e ele 23 anos. Separaram-se em 2014. Em abril deste ano, Clarice, num texto publicado na sua página de Facebook questionou o facto de ser sempre lembrada pelo relacionamento com Gregório. “Um dia eu casei com um cara...” começava assim a publicação. Esse texto surtiu efeito ou ainda é ‘a ex-mulher de’, questionámos.
"Bem menos agora, cada vez menos”, foi a resposta. “Durante muito tempo fui a mulher de não sei quem e depois muito a ex-mulher”, continua. No início incomodava-a muito, hoje em dia menos. “Fico mais tranquila. A gente tem uma relação ótima. A questão é zero com ele, é mais com o jeito com que a gente é tratada. Fomos um casal que as pessoas gostavam”, diz. E confessa: “eu já tive esse sentimento, o de gostar muito de um casal e depois ele se separa. 'Não acredito mais no amor...'”, brinca. Mas remata “foi lindo enquanto durou e hoje a gente está muito feliz, cada um na sua vida."
Clarice hoje namora com o apresentador Guilherme Guedes. Conheceu-o no Twitter, prova de que é possível ser-se romântico em 140 caracteres. A artista brasileira confessa-se fã das redes sociais: "eu adoro o Twitter e o Facebook, mas tenho tentado não estar muito presente". E não há nada que não partilhe por lá: "Eu já falei de fazer cocó...”.
Mas nem sempre foi assim. “Quando fiz a tournée em 2013 fiquei muito assustada do tamanho que tinha tomado essa coisa da 'fama'. Aí eu sumi, parei a tournée no meio, sumi e não queria mais saber”, conta. Clarice ficou assustada: “essa coisa de ser colocada como uma pessoa diferente. As pessoas choravam porque me viam mas 'eu sou só uma pessoa, porque é que você está chorando'? Fiquei muito agoniada. E aí parei tudo, sumi de rede social, sumi de tudo”.
Agora já se acostumou “com essa vida”. “Fui vendo que na verdade é possível posicionar-me como uma pessoa normal, que não está inatingível e que faz cocó também. Agora me sinto mais próxima e também mais reservada, porque escolho o que eu mostro e o que eu falo. E o fã não me trata mais como uma pessoa que 'oh meu deus, eu preciso puxar o cabelo dela'. Então tudo fica mais tranquilo.”
E já que falamos sobre Internet, impossível deixar de lado a polémica com o vídeo “Eu escolhi você”. Nele, a artista escolheu a genitália feminina e masculina, sem pudor e com muito humor, para ilustrar o tema do seu último álbum. No Twitter, Clarice Falcão deixou então a questão: "O que é mais chocante: pessoas terem genitais ou pessoas terem ódio de genitais?". E terá já resposta para ela? "Não tenho a menor ideia. Foi outra coisa que fiz porque achei engraçado e legal. Tinha zero pretensão de quebrar a Internet. Foi muito uma coisa que eu fiz em casa com amigos, 'ai e se fosse assim o clip?', respondeu. “As pessoas são muito loucas, ficaram chocadas por saber que órgãos genitais existem”, acrescentou.
Recentemente a artista estreou um especial no Netflix. O convite partiu do serviço de streaming: "acho que o que eles queriam mesmo era um stand-up, só que não é o tipo de humor que eu faço. Gosto do humor de stand-up só que não sei fazer”. Foi aí que surgiu a ideia do especial que pudesse envolver música, mas que não fosse só um show. “Fiquei pensando e sugeri para eles a ideia do especial de Natal. Mas eles responderam com a óbvia resposta de que 'muito legal, mas o nosso catálogo fica disponível o ano todo'. E eu falei 'senhora Netflix, tem toda a razão'”, brinca. Surgiu depois a ideia do 'Especial de Ano Todo', “um especial de fim de ano, sobre o ano todo, que você pode assistir o ano todo, com uma música para cada mês. É uma bobeira, mas foi muito divertido de se fazer”.
Então, que data eliminava Clarice do calendário? O Réveillon. “Porque é carregado de expectativa e eu acho a expectativa a pior coisa para se divertir. Fica todo o mundo querendo que seja a melhor noite do ano e achando que o ano que vem vai ser maravilhoso. E a gente faz várias promessas para o ano que vem, promessas que você vai quebrar no meio do ano mas sabe que vai ter de passar um tempinho cumprindo, porque vai ficar muito feio quebrar na primeira semana. Acho esquisito, uma data estranha." Retirava o Réveillon mas aumentava os dias do Carnaval, do qual se confessa fã.
Se o especial foi um dos seus maiores desafios - escreveu, compôs, atuou, cantou e montou o espetáculo - a novela "A Favorita", que foi para o ar na Rede Globo em 2008, foi mais complicado: "era muito nova, não estava preparada para isso. Não tinha ainda maturidade como atriz para fazer esse papel".
Clarice Falcão estreia-se em Portugal esta sexta-feira, na abertura do The Famous Fest, que se realiza em Lisboa, no armazém XL da Lx Factory. Segue depois, a 6 de outubro, para a Casa da Música, no Porto. Ao seu lado vai o músico João Erbetta.
A artista confessa-se “muito empolgada”, mas deixa o aviso “se não for lindo, pega leve".
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