Ao contrário do ano novo ocidental, o seu congénere chinês não tem uma data fixa, regendo-se antes pelo calendário lunar da China e sendo celebrado durante uma lua nova. Desta vez, a data do Ano Novo Chinês calhou a 5 de fevereiro e marcou a passagem do ano do Cão para o ano do Porco, o último signo do ciclo de rotação do zodíaco chinês e que se caracteriza por anunciar dias de otimismo, mas também de trabalho árduo. Foi sob esses auspícios que se iniciaram as festas em Lisboa, dos dias 8 a 10, numa celebração que se tem repetido desde 2014.

Como vem sendo tradição, o cortejo de Ano Novo teve início na Igreja dos Anjos, mas, ao invés de seguir para Sul, rumo à praça do Martim Moniz, que acolheu esta festa nos últimos quatro anos, arrepiou caminho para Norte, tendo a Alameda D. Afonso Henriques como destino. Ainda não tinham batido as 11 horas da manhã, hora estipulada para o comboio de cor e animação seguir a vapor avenida acima, já o ambiente estava efusivo, com grupos de miúdos e graúdos a realizar os últimos preparos.

Respeitando a pontualidade ao máximo, à hora combinada já o cortejo estava em movimento, liderado por um conjunto todo ele vermelho. Com a líder a bater os pratos enquanto as restantes a acompanhavam em filas ordenadas, de tambores em riste, as integrantes da Associação Geral das Mulheres Chinesas ia vestidas de cor rubra, não fosse esta símbolo de fortuna e alegria. De perto, seguiram-nas os alunos do Instituto Confúcio de Aveiro, portugueses apaixonados pela cultura chinesa a carregar um dragão que abria e fechava a boca perseguindo uma bola, bamboleando ao sabor dos braços humanos que o carregavam.

Como é costume num cortejo, há paragens para cada grupo demonstrar o que melhor sabe fazer. Enquanto as meninas do Grupo de Dança da Escola Secundária Pui Ching de Macau dançavam sincronizadas sem nunca desarmar o sorriso, os guerreiros em miniatura das várias associações de artes marciais provaram estar desde cedo treinados nas lides do combate.

A acompanhar a parada, chineses, portugueses e cidadãos de outras nacionalidades, tanto curiosos como entusiastas, constituíam um mar de gente, empunhando as suas câmaras para captar os momentos de folia. Estes tanto podiam ser protagonizados pela trupe de artistas e saltimbancos de complicados trajes e coreografias da companhia de Ópera de Pequim, como pelo Buda azul e os dois leões que o seguiam enquanto rasavam provocantemente os espetadores, acompanhados também de três enormes Budas insufláveis da Associação Internacional Buddha’s Light de Lisboa. E enquanto algumas dançarinas hipnotizavam os espetadores presentes movimentando as longas mangas dos seus vestidos tradicionais, outras crianças desarmavam corações com os seus cestos de flores e pequenas máscaras de porco em papel.

O cortejo também foi dotado de tradição portuguesa, pela presença dos Toca a Rufar ou do Grupo Folclórico Verde Minho, e de solenidade institucional, seguindo o embaixador da China em Portugal, Cai Run, e a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, numa entourage, todos adornados por cachecóis encarnados com o símbolo do ano novo chinês.

Mais ou menos pintados, a saltar, a dançar ou simplesmente a caminhar, os demais seguiram para a Alameda.

Depois do cortejo, a Alameda Dom Afonso Henriques, junto à Fonte Luminosa, foi o palco das celebrações do Ano Novo Chinês em Lisboa. A festa também se fez com um tradicional mercado chinês, composto por expositores de associações, escolas de idiomas, turismo, artesanato, roupas e comidas de variadas regiões chineses.
Depois do cortejo, a Alameda Dom Afonso Henriques, junto à Fonte Luminosa, foi o palco das celebrações do Ano Novo Chinês em Lisboa. A festa também se fez com um tradicional mercado chinês, composto por expositores de associações, escolas de idiomas, turismo, artesanato, roupas e comidas de variadas regiões chineses. créditos: Rita Sousa Vieira | Madremedia

Uma Alameda que é casa de todos

Zona habituada a acolher diversas festas, este foi o primeiro ano que a Alameda D. Afonso Henriques recebeu a feira do Ano Novo Chinês, refletindo-se num maior número de bancas e espaços de comes e bebes, assim como num palco de maior dimensão, que em edições anteriores.

De um lado da feira, podiam comprar-se vários artigos, desde cestos de flores a trajes Qipao para as senhoras, passando por máscaras de ópera, material de leitura budista, talheres e, claro, itens alusivos ao ano do porco, fossem eles peluches, porta-chaves ou porquinhos mealheiros. Do outro, um cheiro a especiarias tomava conta dos sentidos porque era onde se encontravam os espaços gastronómicos, oferecendo noodles, pão doce chinês, espetadas, ramen ou crepes, empurrados por cerveja Tsingtao ou chá com leite. Para apreciar estas iguarias, foi necessário para muitos ter paciência budista, tais eram as filas para almoçar.

Ao centro, no extenso espaço verde que domina a Alameda, alguns grupos continuavam as demonstrações de rua, enquanto os participantes que iam chegando faziam piqueniques, brincavam em correrias ou simplesmente arranjavam um lugar sentado para ter uma boa vista para o palco onde haveria uma sequência de atuações durante a tarde.

Para Dolores Chen, o facto de ser necessário um espaço maior para organizar a festa é indicativo do que tem sido a recetividade popular às celebrações oficiais do Ano Novo Chinês em Lisboa, nas quais participa desde 2018. Filha de pais chineses, mas em Portugal desde criança, a tradutora e gestora de equipa na empresa Ibéria Universal lembra que a festa serve um propósito de entendimento mútuo entre portugueses e chineses pois “é através da compreensão que nos podemos dar melhor” e “em ambiente de festa, é sempre muito mais fácil das pessoas interagirem umas com as outras”.

Essa postura também se encontrou presente junto das instâncias de poder local, como é o caso de Margarida Martins, presidente da junta daquela que é a freguesia no epicentro dos festejos do Ano Novo Chinês, Arroios. Vestida a preceito com um casaco vermelho para a ocasião - por uma questão de “respeito por todas as tradições” - a autarca lembrou que preside uma “freguesia de inclusão” para a qual é significativo participar nestas celebrações, pois acolhe “uma comunidade chinesa muito importante”, que diz estar “bem integrada” junto de outras 91 nacionalidades. É por isso que vê com “alegria” que “os lisboetas, e não só, participam cada vez mais nesta festa”.

Esse espírito de curiosidade manteve-se palpável durante a feira, principalmente junto da banca da Escola Chinesa de Lisboa. Foi a vender diversos materiais de ensino que encontrámos Aurora Chen, a fundadora desta instituição que ensina mandarim e dá aulas de pintura, caligrafia e artes marciais, entre outras vertentes. Tal como Dolores, também Aurora, a viver em Portugal desde 1995, considera que a festa anual é uma oportunidade para que os lisboetas se aproximem da cultura chinesa, porque esta “não é só restaurantes e lojas, somos uma etnia muito cultural e queremos que nos conheçam melhor”.

Diogo Henriques, 25 anos, é um desses exemplos, de um português que decidiu ir à China sem tirar os pés do país. Professor de artes marciais, Diogo fez uma impressionante demonstração de Kung Fu e Kempo Chinês juntamente com os alunos do Instituto Confúcio da Universidade de Aveiro (IC-UA). A mestria com que envergou o Yuèyáchǎn (uma lança chinesa) em palco deve-se a um percurso de dedicação às artes marciais chinesas que levou durante quase toda a vida. “Comecei muito pequeno, desde os quatro anos, quando os meus pais me levaram a experimentar”, explica Diogo, que aliou essa paixão à de “gostar de ajudar os outros, de ensinar” para se tornar professor.

Sendo parte de um instituto dedicado a promover a língua e a cultura chinesa, Diogo festejou com os colegas e com a diretora do IC-UA, Zhiyan Guo, o Ano Novo Chinês no próprio dia e em tempo real. “Celebrámos às quatro da tarde de cá, que é a meia-noite lá, temos feito de forma semelhante a como se faz na China”, revela. Para si, iniciativas como esta que decorreu na Alameda são benéficas pois promovem o diálogo intercultural, defendendo que “não temos de estar presos à nossa cultura”.

Mas mais do que servir de ponte de aproximação, o Ano Novo Chinês tem um significado ainda maior para a comunidade chinesa em Portugal. Tal como a Escola Chinesa - criada com o objetivo de manter os filhos de chineses já nascidos em Portugal e a estudar em escolas portuguesas ligados à cultura dos pais - a celebração da “festa mais importante do povo chinês”, como define Aurora, serve um propósito semelhante. “Nós organizamos este evento para que a comunidade chinesa em Portugal não se esqueça das suas raízes” revela Dolores, falando de uma diáspora que alterou hábitos de vida para se integrar numa sociedade diferente.

Se para algumas pessoas, assinalar o Ano Novo Chinês traz memórias da China, para outras é uma oportunidade de se ligar a um país que nunca chegaram a habitar. Nascida em Portugal, Linda Xiang é uma dos mais de 800 de estudantes da Escola Chinesa de Lisboa. O significado de celebrar o Ano Novo Chinês é próximo daquele que levou a jovem de 16 anos a ter aulas nesta instituição, manter-se próxima das suas raízes. “Como não estou na China”, explica a estudante, tomar parte nas celebrações é “importante para mim [participar] porque faz parte da cultura chinesa festejar o Ano Novo”.

O caso é semelhante para Liliana e Sofia, duas jovens também de 16 anos e portuguesas filhas de pais chineses. Para ambas, o Ano Novo Chinês é um pretexto para “reunir com a família e jantarem juntos”, indica Sofia. No entanto, as duas admitem que a celebração dos seus progenitores já não é feita com a mesma adesão aos costumes tradicionais dos seus avós na China, onde as refeições são mais faustosas e “a tradição é de passar a noite toda juntos” sem sair de casa, para “evitar que os espíritos maus entrem”. De resto, o ritmo de vida em Portugal não permite a mesma preparação para a festa. “Não temos tempo para isso, temos de estudar”, diz Sofia, entre risos.

Tradição milenar que se conduzia em casa ou noutro espaço intimista, o Ano Novo Chinês começou a celebrar-se numa Lisboa que se esforçou por ser um lar para esta comunidade. A propósito disso mesmo, e indo de encontro ao facto de se entrar no ano do Porco, Aurora Chen lembrou um curioso caso da língua chinesa. O caracter chinês de casa -   - tem como base o caracter chinês do porco - 豕 - porque “antigamente, ter um porco significava ter comida, era um lar”. Na Alameda, conjugaram-se os dois.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

A arte de fazer uma festa, ou uma festa plena de arte

A demonstração artística foi uma das constantes ao longo de três dias de festa. No dia 9 e no dia 10, foram muitos os grupos que subiram ao palco montado na Alameda. Grupos de dança, canto, pantomima, ópera e artes marciais mostraram a riqueza da cultura chinesa, muitas vezes com um toque de humor. Veja-se a Orquestra Folclórica Juvenil da Escola dos Moradores de Macau que, entre canções tradicionais chinesas, teve espaço para clássicos do fado português, como o Barco Negro, ou para êxitos da Pop, como o Despacito.

Nos bastidores do palco, o cenário muda, mas a azáfama mantém-se. Espalhados por várias tendas ou sentados no pavimento em frente à Fonte Luminosa, a postura dos grupos muda consoante a posição na ordem das atuações, ora repousando depois da sua performance, ora ensaiando uma última vez antes de subir para o palco. Uns retocam as complexas maquilhagens, outros, vindos da outra ponta do globo, aproveitam o momento para dar-se a conhecer e tirar fotografias para a posteridade.

Sendo o “backstage” um espaço de interstícios, onde os intérpretes baixam a guarda e personagens de palco são despidas para lugar às pessoas reais que as corporizam, não é estranho ver situações inusitadas, como uma instrumentista a tocar a sua Pipa na tranquilidade duma tenda vazia, ou jovens maquilhadas e adornadas pelos trajes tradicionais da ópera chinesa a dançar e a cantarolar ao som de “Can’t Stop the Feeling”, de Justin Timberlake, antes de atuarem.

Uma delas é Gwen, jovem de 18 anos vinda de Macau, sendo parte integrante do Grupo Juvenil de Ópera Cantonense da União Geral das Associações de Moradores de Macau. Gwen juntou-se a este grupo em 2010 depois de ter experimentado uma disciplina de Ópera Chinesa na escola primária. Sendo uma atividade extracurricular, a jovem diz praticar ao fim de semana, “às vezes durante duas horas, outras vezes durante o dia todo". O treino é árduo, porque tem de dançar, cantar e ainda praticar artes marciais num complexo fato adornado com longas penas e bandeiras nas costas. “Temos de praticar muito, porque se moveres de qualquer forma, não vai parecer gracioso", explicou a atriz, antes de pôr a teoria em prática na Alameda.

Se jovem macaense mostrou ser uma promissora aprendiz de ópera, os mestres demonstraram toda a sua virtuosidade no dia anterior, a 8 de fevereiro, no Teatro Nacional São Carlos. Não só parte das celebrações do Ano Novo Chinês, como também um gesto para recordar o 40º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas entre a China e Portugal e o 20.º aniversário da transferência da administração de Macau para a China, a Companhia Nacional de Ópera de Pequim apresentou um espetáculo chamado “As Generais da Família Yang”.

Prova de que a inventividade humana não tem fronteiras, a ópera chinesa é uma arte ancestral que surgiu em completo paralelo à sua congénere ocidental sem pontos de contacto que não a representação do sublime e do belo. Os seus atores precisam de ter tanta destreza no corpo como na voz, dado que têm de cantar, dançar, lutar e representar de forma harmoniosa.

A história apresentada na sala lisboeta tem a sua trama situada algures entre os séculos IX e XII, e retrata uma família de mulheres guerreiras que juram vingança a um reino vizinho depois de um dos últimos generais do seu clã ser morto numa tentativa de invasão. Com o beneplácito do seu imperador, e contra as opiniões dos conselheiros, partem para a guerra, destemidas.

Ao longo de duas horas e meia, o palco foi tomado por uma demonstração assoberbante para o ouvido e o olhar ocidental incauto. O canto faz se a um tom elevadíssimo e segue harmonizado com a instrumentação, ora mais melódica, ora resumida a uma percussão frenética nas cenas de batalha, em que os atores fundem artes marciais e dança numa só expressão.

Sem grandes acessórios que não as vestes extravagantes de cor infinita - das longas barbas às penas que brotam dos fatos e às armas que usam para combater - o elenco fez da sua expressão a sua maior força. Tudo é ensaiado ao milímetro, cada movimento, cada expressão facial, cada resposta ao ritmo da orquestra, tanto que, através de gestos, conseguem fazer crer magistralmente como estão a andar a cavalo pelo meio de um vale.

Apesar de se ter encerrado o primeiro capítulo, outros seguem-se nas celebrações artísticas luso-chinesas, como promete Samuel Rego, administrador da Opart, instituição encarregue não só pelo Teatro Nacional São Carlos, como também pela Companhia Nacional de Bailado (CNB).

Falando numa “cooperação cultural fascinante”, o administrador lembrou que haverá espetáculos do Ballet Nacional da China em março e junho e que, em sentido inverso, a CNB vai a Pequim também em junho, apresentar a obra “Quinze bailarinos”. Se outros espetáculos se seguirão, ainda não se sabe, mas Samuel Rego deixa claro que as relações são para durar: "É um processo irreversível para nós".