Sem revelar qual a editora em causa, o escritor Afonso Reis Cabral partilhou esta segunda-feira na sua conta de Facebook a resposta que recebeu a justificar a recusa de ver dois dos seus livros traduzidos e editados no mercado norte-americano, acrescentando que "a honestidade do email chega a ser tocante".
"O escritor é claramente muito talentoso. No entanto, sinto que a franqueza de 'O Meu Irmão' pode ser problemática para o mercado dos EUA onde estes temas são levados muito a sério pelos media", lê-se na resposta partilhada pelo autor de 33 anos, cujo livro acima tem um dos personagens com Síndrome de Down.
Além deste problema, a pessoa que enviou o email fala ainda nos problemas à volta de Pão de Açúcar. "A crítica de Pão de Açúcar foi na sua maioria boa, mas um/uma colega exprimiu preocupações quanto a uma pessoa cis escrever sobre uma pessoa trans — outro tema altamente sensível", escreveu.
Em causa estão o facto de que Afonso Reis Cabral é um homem cis — isto é, tanto o sexo biológico como o género coincidem — e a história aborda o assassinato de Gisberta, a mulher transexual brasileira que foi assassinada por um grupo de 13 adolescentes, entre os 12 e os 16 anos, em 2006, no Porto.
"Eu tentei encontrar uma pessoa LGBTQ falante de português para tentar escrever um relatório de sensibilidade, mas não encontrei ninguém que falasse português. Por essas razões, decidi passar”, termina a nota.
Afonso Reis Cabral, que venceu o Prémio José Saramago com “Pão de Açúcar” em 2019, denunciou ao Observador [acesso restrito] o que considera ser uma cultura de "hipersensibilidade" no meio literário. A pessoa que lhe respondeu "demonstra preocupação em que um homem, que se identifica como homem, escreva sobre uma mulher trans, e que portanto não tem lugar de fala para o fazer. Isto é a negação total da ficção e da literatura tal como ela é. É querer transformar a literatura no fundo num traduzir da experiência própria de vida, e isso não é aceitável. Literatura não é nada disso”, disse ao meio online.
Em sentido contrário, no seu entender, “é evidente que uma mulher trans pode escrever sobre um homem que se identifica como um homem e vice-versa”.
Apontando para o que considera barreiras "completa e totalmente artificiais" à edição, o escritor disse que estas têm sido impostas cada vez mais por essa hipersensibilidade e vão tornar-se cada vez mais problemáticas para a liberdade de quem escreve”. "O escritor é perfeitamente livre para fazer o que quiser e a literatura não deve ser instrumentalizada, muito menos desta maneira”, aponta.
Recordando que o caso ocorreu há dois anos, o escritor adianta que esta partilha surgiu na sequência das iniciativas que têm sido noticiadas da reedição de livros de autores como Roald Dahl, Ian Fleming e Agatha Christie com alterações para eliminar termos potencialmente ofensivos relacionados com o género, a raça e o peso. A este propósito, Reis Cabral considera que “reescrita talvez seja uma palavra simpática para censura”.
Esta segunda-feira, Pedro Sobral, administrador executivo da editora LeYA e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), fez uma publicação na sua conta do LinkedIn concordando com uma intervenção da escritora Alice Vieira.
"A Alice Vieira disse que a reescrita de obras clássicas é censura e que é preciso ter em conta o contexto histórico em que foram escritas. Totalmente de acordo. Também eu o digo", escreveu, aproveitando para tornar público o caso de Afonso Reis Cabral.
Apontando os casos acima mencionados de "O Meu Irmão" e "Pão de Açúcar", Pedro Sobral diz que "o que é certo é que aos leitores americanos foi negado acesso a dois livros extraordinários (mérito reconhecido até pelo mesmo editor americano que não os edita pelas razões anteriormente indicadas) porque outros argumentos se levantaram além da mera qualidade literária das obras de ficção em causa".
"As personagens, o escritor, são de repente também julgados perante o altar de uma nova moralidade e de uma espécie de preocupação pelos leitores que acéfalos têm de ser resguardados da literatura", critica, garantindo que "por cá, onde a liberdade de escrever, editar e ler o Afonso Reis Cabral tem de ser protegida, continuaremos a editar com honra e alegria, os livros do Afonso, com os personagens que melhor entender e quando e sempre que ele entender".
Além do Prémio Saramago, Afonso Reis Cabral venceu, em 2014, o Prémio LeYa, com o romance “O Meu Irmão”. Em 2017, foi-lhe atribuído o Prémio Europa David Mourão-Ferreira, na categoria de Promessa, e, em 2018, o Prémio Novos, na categoria de Literatura.
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