Antes

Devem estar cerca de 10 graus sob o imenso céu azul de novembro. Não há quase ninguém na faixa de rodagem dupla, apenas um camião que oscila sobre a linha do horizonte. O ponteiro da velocidade ultrapassa os 130. Emma continua a acelerar. A estrada desfila, hipnótica. O volante treme sob os seus dedos. Hesita em pôr a tocar CocoRosie, o seu CD do momento, mas Jeanne, a mãe, dormita ao seu lado.

Está quase a alcançar o camião. Atrás dele, um velho Citroën, bamboleia-se, sugado pelo seu rasto. O camionista vai demasiado depressa para o 90 que tem afixado na carroçaria. Pelo menos a 110. Emma faz pisca para ultrapassar.

Tudo acontece em simultâneo, num caos em câmara lenta.

O Citroën a mudar de faixa, o brilho ofuscante de um raio de sol, o pé a escorregar no pedal do travão, o grito da mãe, um choque, o grito que não termina, o carro a derrapar mesmo antes de capotar.

Uma, duas, três voltas! canta uma voz na sua cabeça.

O céu, a estrada, o céu, a erva sulcada, um clarão de luz, depois o silêncio, como um vazio depois do trovão.

Presa pelo cinto de segurança, Emma abre um olho e observa o mundo de pernas para o ar. É o cheiro que vem primeiro, antes mesmo das sensações: borracha queimada, gasolina, terra... e algo mais. Um cheiro que se lhe prende na garganta e a reveste de ferro. Vira a cabeça, onde se entrechocam fragmentos de pensamento. 

A sua mãe está suspensa de cabeça para baixo, tal como ela, os olhos abertos, tal como ela. Olha para o céu através da chuva vermelha de sangue.

Olha para o céu.

Emma mergulha na escuridão. 

Voa numa chuva de vidro, ela voa e o seu corpo gira numa queda sem fim. Há forçosamente barulho, o guinchar dos travões, a chapa de metal que se rasga, no entanto ela não ouve nada, é um estrondo mudo, um grito sufocado, preso na sua garganta...

Emma senta-se na cama, o coração acelerado, um sabor a ferro na boca. Abana a cabeça, ainda atordoada. O pesadelo desperta-a normalmente uma vez por mês.

Francisco Mota Saraiva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de abril, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morramos ao menos no Porto", publicado pela Quetzal.

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"Morramos ao menos no porto" pediu o título emprestado a Séneca e venceu o Prémio José Saramago no final de 2024. É "um romance que abala os fundamentos da narrativa clássica, um fogo que alastra até consumir todas as suas personagens e que revela o seu autor como uma voz poderosa na literatura portuguesa".

Pode ler um excerto aqui.

Mardi solta um miado de protesto antes de se esticar voluptuosamente. Um brilho pálido escoa através das cortinas. O despertador marca as 6h11. Emma enrola-se no edredão, decidida a voltar a dormir. Um ronronar faz-se ouvir, imperioso.

Posso?

Não. O gato não permite outra coisa a não ser a cooperação total. Empurra-a com o nariz, mordisca-lhe a gordura do ombro até ela se levantar da cama. Este felino deve ser a reencarnação do Rei Sol, não tem qualquer tolerância para com os crimes de lesa-majestade.

Na sala de estar, sapatos espalhados pelo chão, uma pilha de roupa por dobrar, chávenas sujas, o tabuleiro da refeição do dia anterior, livros, uma fita métrica – vá lá saber-se porquê! –, meias enrodilhadas... num móvel alto repintado de amarelo-limão, Jeanne sorri sonhadora na sua moldura. Emma faz-lhe uma carícia maquinal de passagem.

Olá, mamã. 

Emma adora o seu apartamento. Antes da renovação, era a antiga sapataria do avô. A montra deu lugar a uma parede de tijolos transparentes que conferem à divisão um aspeto de aquário. A arrecadação foi substituída por um quarto e uma casa de banho que dão para um pequeno jardim, o terreno de caça de Mardi. A antiga bancada de trabalho faz agora as vezes de ilha central e separa a cozinha da sala de estar-aquário. Emma é muito apegada a este móvel grande cheio de riscos. Enquanto corta os legumes, sente os gestos mil vezes repetidos do sapateiro debruçado sobre a sua obra – cortar, lixar, coser ou pregar, polir, lustrar –, revê-lhe as mãos nodosas, incrivelmente ágeis, que a fascinavam em criança. Há algo dele que permanece nos veios da madeira. 

Esta manhã, o chão da cozinha parece-lhe gelado, devido à insónia que a manteve acordada até altas horas da noite. Abre o frigorífico, pega na lata de paté premium, esmaga a mistura num prato próprio para o efeito – «Musse de pato para gatos exigentes», afirma o rótulo. Meia lata de manhã e à noite, como recomendado pelo veterinário. A saúde é o único domínio em que ela impõe a sua vontade ao Rei Mardi. Em tudo o resto, ele faz o que lhe apetece…

Enquanto o café se faz, encosta-se à porta envidraçada que dá para o jardim. Uma catalpa ergue-se no meio de um canteiro de erva molhada. Encostado à parede de pedra, o solano está em flor. Todos os anos promete a si própria que vai fazer uma horta, sem nunca se decidir. A jardinagem obriga a projetar, algo que ela detesta.

A falta de sono provoca-lhe uma languidez agradável. Paradoxalmente, é nestes momentos de fadiga que o seu toque se refina e ela massaja melhor, acreditando que o excesso de trabalho a leva a entregar-se à lassidão, provocando um curto-circuito mental. De qualquer forma, se lhe houvesse sido dada a escolha, teria preferido dormir sete horas seguidas para enfrentar o dia.

Maldito Dia D!

O céu está pesado, mas a chuva parou. Lemonier corre o risco de ter um ataque de fúria se os VIPs desembarcarem sob uma tromba de água. A imagem fá-la rir, uma pequena vingança pela semana que passou. O diretor do centro de talassoterapia de Portivy atormentou-as até ao limite do assédio à medida que a data se aproximava. Foi tudo cuidadosamente revisto: o planeamento - ele pura e simplesmente cancelou as reduções de carga horária de trabalho e as folgas de fim de semana - a limpeza, recorrendo a uma equipa externa como reforço, toalhas novas bordadas a fio de ouro e roupa especial para o pessoal que tenha de estar em contacto com Sua Excelência e a Sua Comitiva - Emma consegue ver claramente as letras maiúsculas sempre que o big boss menciona a delegação. Segundo Claire, a sua colega fisioterapeuta, Lemonier mandou pintar o seu gabinete de vermelho e verde, as cores de Omã! Embora estejam habituados a receber celebridades, de grandes empresários a estrelas de cinema, ele nunca deixara transparecer uma tal excitação… Uma questão de dinheiro ou de prestígio?

Lemonier é um homem afável, na casa dos 50 anos, de estatura modesta e com uma calvície incipiente - em suma, um homem quase vulgar em que apenas a sua ambição sobressai. Para Emma, a sua cortesia é uma máscara que não lhe serve. Não conseguiu concretizar a vocação de tirano nem a sua vontade de dirigir um complexo hoteleiro, o mais prestigioso possível. O mais estranho é que ele provavelmente não tem consciência disso. Bajula os poderosos com a esperança de que o seu esplendor se reflita nele próprio, e a visita da delegação do sultanato de Omã produziu uma verdadeira explosão. Desde o anúncio da sua chegada, há oito semanas, que a cidade fervilha com os rumores e as conjeturas mais extravagantes. Emma não teria prestado qualquer atenção se Lemonier não a tivesse nomeado massagista titular de Sua Excelência, «um enorme privilégio, espero que seja digna dele!». E uma vez que ele dificilmente a poderá seguir até à sala de tratamentos, ficou limitado a preocupar-se com os mais pequenos pormenores e a verificar a logística três vezes por dia.

Habitualmente, o diretor é suficientemente subtil para manter as distâncias. Está à frente de um estabelecimento de luxo, Emma é apenas uma colaboradora, e não é exatamente uma funcionária exemplar. Na verdade, ele tê-la-ia despedido há muito tempo não fossem as suas massagens elogiadas pelos clientes mais exigentes. E pelos mais ricos... Por seu lado, apesar de Lemonier ser o estereótipo do chefe de quem se deve fugir, Emma não tem qualquer vontade de procurar trabalho noutro lugar, e muito menos de abrir o seu próprio salão. Pensar no futuro é como inclinar-se sobre um abismo vertiginoso. A ligação com a jardinagem surge-lhe repentinamente: nada se planta sem raízes, no entanto, é-lhe impossível planear a vida para além do fim de semana. Não com aquele passado que a puxa para trás…

Livro: "Emma"

Autor: Jean Reno

Editora: Casa das Letras

Data de Lançamento: 22 de abril de 2025

Preço: € 18,90

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O café está morno. Emma engole-o de um só trago. São 7h10 e a ideia de estar à espera da hora de partida, toda aperaltada, exaspera-a antecipadamente. Terá de estar no centro às 10 horas em ponto e a delegação por volta das 11 horas. Lemonier foi muito claro: devem estar todos nos seus postos! Se se apressar, ainda pode ir ver o mar.

As ruas estão quase desertas; apenas alguns velhos a puxar um carrinho de compras ou um cão relutante. Emma faz força nos pedais. A bicicleta só tem três mudanças e uma das rodas está meio deformada, mas ela usa-a todos os dias, haja vento ou neve. A sua amiga Pénélope não compreende como é que alguém pode passar sem um carro, convencida de que aquilo faz parte do «problema Emma»: ser linda, solteira, viver segundo os seus próprios princípios e com alguns problemas de sociabilização. Emma lembra-lhe o seu empenho em termos ecológicos. Em vão. Pénélope não quer saber disso. Jeanne também era uma grande amante da natureza, e uma ativista empenhada. Para Emma, a sua bicicleta é um amuleto da sorte e uma recordação dos valores que a mãe lhe transmitiu.

Por vezes, a sua necessidade de relacionar tudo com a mãe fá-la sentir-se como uma criança que se apraz a coçar uma crosta até sangrar. Precisa da sua dose para funcionar, um misto de culpa e de memórias felizes...

Ao chegar ao boulevard de la Teignouse, entra na ciclovia ao longo da costa. O céu oferece uma visão dantesca de luzes e sombras refletidas na superfície da água, que vão do verde ao preto. Nos dias de tempestade, a ondulação encharca o pavimento, mas o tempo está a ficar bom. Inebriada pelo vento, acelera a cadência, a boca aberta para abocanhar os salpicos. O oceano reacende-lhe a sensação de ser livre como o ar, esquiva.

Começa a cantarolar ao ritmo do seu andamento a balada de Pete Doherty, The Fantasy Life of Poetry and Crime.

Pouco antes da Ponta de Conguel, no fim da península, detém-se para vestir uma camisola. Uma súbita rajada de vento rouba-lhe a alegria. Conguel é a praia preferida da mãe. Era. Emma confunde os tempos verbais de propósito, é a sua maneira de manter uma ligação ou de preencher o vazio, pouco importa. As recordações, a bicicleta, este pedaço de terra batida pelo vento do Norte, as conversas na sua cabeça... Jeanne está ali, algures.

– Tenho saudades tuas, mãe!

O mundo dos vivos e dos mortos sempre lhe pareceu flutuante. Não há luto, não há ausência real, antes uma necessidade física de carícias e cheiros. Emma daria quase tudo para voltar a sentir o abraço da mãe. Faz nove anos este ano, o fim de um ciclo.

Mataste-a...

Enxota a pequena voz da cabeça e acelera, passa pelo parque de campismo de quatro estrelas, a longa alameda das casas móveis. Acossados pelo vento, os pinheiros assemelham-se a guarda-chuvas virados ao contrário.

Depois do parque de estacionamento, o caminho de areia que conduz ao pontão está interdito a veículos de duas rodas. Ela continua, sem fazer caso do sinal. Às 8h15, não haverá muita gente por ali para lhe chamar a atenção sobre a transgressão.

Chegada junto ao painel informativo, desmonta da bicicleta e caminha em direção ao mar, com os braços abertos como uma maromba. O vento é de tal forma forte que lhe tira o fôlego e lhe deixa na língua um sabor salgado de lágrimas. A mãe contou-lhe que ela já fazia isso aos três anos, com os pequenos braços esticados como asas, convencida de poder voar para longe.

«Tinha medo que a borrasca te levasse, meu amor…»

Aqui sente a presença da mãe em todo o lado. Emma tenta imaginar a sua figura graciosa a adentrar nas ondas. Jeanne era rebelde e destemida, assaz bonita para alvoraçar corações, e gostava de nadar no inverno, «para fazer as minhas células valsar», dizia ela a rir. 

Ao largo, duas ilhotas emergem do mar, «le petit trou» e «le grande trou». Na maré baixa pode-se caminhar até Toul-Bihan. Em Toul-Bras encontraram sepulturas gaulesas.

Ali é que deviam repousar os ossos da sua mãe.

No dia de Todos os Santos, Michel, seu pai, insiste em arrastá-la até ao cemitério. Para Emma, isso não tem qualquer sentido, exceto o mais trivial: uma fila de corpos em decomposição encerrados em caixões. Porque se prenderia a alma a este lugar lúgubre? Pensar no pai provoca-lhe um arrepio de exasperação. Por muito que o ame, o conformismo dele ultrapassa-a. Como é que Gérard, o sapateiro, herói de guerra, pode ter gerado um filho tão dócil, já derrotado?

E Jeanne? Deviam estar muito apaixonados um pelo outro...

Emma despe-se à pressa. Vestiu um velho fato de banho e pôs na mochila roupa interior e uma toalha. O vento gela-a em poucos segundos. Caminha pela pedra de granito até à beira da água. Uma onda lava-lhe os pés, uma mistura de febre e de amor, como se a pedra e a sua mãe tivessem nascido da mesma fonte. Sente a cabeça à volta, mas de exaltação. Agacha-se, com as mãos espalmadas sobre a pedra para melhor lhe sentir a força nas suas palmas.

- Estás a ver, eu também faço as minhas células valsar!

O vento nada responde, ela levanta-se então e entra no mar. A água gelada tem o efeito de uma dentada. Grita de dor, gelada até aos ossos. Se alguém a surpreender, ela vai ter um sermão sobre os perigos da irresponsabilidade, mas não se importa. Sem risco, o prazer não seria tão intenso.

Não penses!

Lança-se em direção à onda e começa a nadar num crawl frenético, levada pela força do oceano. O choque térmico transformou o frio em queimadura e provoca-lhe uma descarga de energia pura.

A corrente arrasta-a para o largo, mas ela aproveita a contracorrente para não se afastar demasiado, impulsionada pela ondulação. Após um momento de luta para se manter na enseada, encontra finalmente o seu ritmo e a sua trajetória. Amiúde, levanta a cabeça para verificar se não se desviou em direção à ilha, de onde seria impossível regressar. É como uma luta entre a água e ela, a minúscula rapariga animada pela sua raiva contra o oceano titânico.

Naquele momento, Emma está completamente viva, nada mais existe.