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Variações em persona: Apresentação de si e ressubjetivação de António
É um processo de verdadeira metamorfose identitária, aquele que faz emergir a persona queer de António Variações do casulo António Joaquim Rodrigues Ribeiro. Na construção da sua persona, Variações articula a vida fora do palco e a atuação em cima dele numa ação dramatúrgica meticulosamente programada para obter um efeito de continuum, no qual biografia e obra se prolongam uma na outra de forma coerente. O sucesso deste programa nem sequer chega a ser interrompido pelo seu desaparecimento trágico, antes é potenciado pela precocidade e espetacularidade de uma doença e de uma morte saturadas de sentido(s) que funcionam como moldura interpretativa retrospetiva, mas doravante inevitável. Na verdade, na qualidade de factos que transcendem a sua capacidade de previsão e de controlo, a doença e a morte pare- cem apenas revelar post hoc, amplificando-o, o quanto o percurso de António sempre terá sido de alguma maneira governado por forças que insuspeitadamente o alçavam a um estatuto «maior que a vida». O seu propósito deliberado de assim se construir autobiograficamente parece estar em consonância com a ação de forças que estão para lá dele e de quanto com exclusivo recurso a ele lhe seria possível alcançar — facto que Variações dá mostras de reconhecer em A Culpa É da Vontade (Variações, 2006: 75–77): «A culpa é da vontade, que vive dentro de mim, e só morre / com a idade, com a idade do meu fim» (Humanos, 2004). Com efeito, os testemunhos de quantos o conheceram no início do seu cursus meteórico (Gonzaga, 2006: 254, 306) convergem todos quanto ao sentimento de descrença nas aptidões daquela surpreendente personagem, para sequer fazer uma carreira na música portuguesa:
Quando diz que para primeiro registo gravado quer pegar num tema de Amália — «Basta-me ouvir a voz dela para ter visões» — ninguém quer acreditar. O produtor Nuno Rodrigues trabalha com ele dias a fio. Em estúdio, sucedem-se as frustrações. Até que Ricardo Camacho entra no processo. «Eu pergunto-lhe, António, queres que isto soe como?» E ele diz aquela frase emblemática: «Entre Nova Iorque e a Sé de Braga». Variações sempre sentiu ter nascido antes do tempo. [...] Ao contrário do que temiam os executivos da Valentim de Carvalho, a aprovação do público é unânime e imediata. Dos pescadores da Nazaré à elite intelectual do Bairro Alto. Já parte da crítica revelar-se-á, como tantas outras vezes, mais tacanha que os desconhecedores. (Vilela e Fernandes, 2016: 49)
O primeiro desafio que se lhe colocou não era, porém, estritamente do foro individual, mas sim coletivo, e ele superou-o. Variações surge no preciso momento em que atingia o auge a acesa discussão, levantada pelo boom do rock português na década de 80, sobre a possibilidade de cantar em língua lusa uma forma musical, o pop/rock, geneticamente marcada pelo seu inglês matricial, e fazê-lo de maneira que essa apropriação cultural pudesse ser mais do que uma imitação pedestre — uma paródia pobre — do modelo de origem. Recorde-se a polémica dessa altura, quando nem sequer se acreditava que os portugueses pudessem cantar na sua língua materna o rock nado e criado anglófono, como retrospetivamente reconhece Pedro Freitas Branco: «E Portugal conheceu então o artista mais livre, exótico e genuíno, da sua música popular. António Variações era um original» (Branco, 2019: 244). E tanto maior era o ceticismo quanto o veículo dessa transliteração havia logo de ser aquela consumada ave rara, de capacidades irremediavelmente comprometidas à partida pelas suas limitadas origens (Gonzaga, 2006: 317; Marques, 2008: 17), obviamente talhada tão-só para criar algo de parecido com o que muito mais tarde virá a ser designado como música pimba. Quanto mais para fazer frente e levar de vencida os insuperáveis obstáculos com que o despeitado acanhamento da sociedade lusa embasbacada não poderia deixar de tolher a ousadia, tanto mais insuportável por vir de um menosprezado provinciano, daquele estilo, daquela autêntica curiosidade, e, no seu todo, daquela coisa completamente intempestiva no lugar e no tempo, como oportunamente assinalam Bruno Horta/Helena Soares (Horta e Soares, 2020: 62, 64–65, 83) e Paulo Pepe (Pepe, 2013: 10):
O porte atlético de António Variações e a sua avant-garde em vestir-se faziam deste cantor uma espécie de avis rara no contexto de uma Lisboa recém-saída de um longo regime ditatorial. As primeiras aparições de Variações foram marcadas pelo choque e pela incompreensão da sociedade portuguesa. (Pepe, 2014c: 553)
Essa incompreensão também explica em parte o enorme atraso que a editora discográfica Valentim de Carvalho levou a pôr em prática o contrato celebrado com o promissor, mas musicalmente iletrado, Variações — «A verdade é esta: durante os quatro anos seguintes ninguém soube o que fazer com o exotismo de António, com a tal música entre o Minho e Nova Iorque. Como produzir cantigas registadas em cassete apenas por uma voz, entre o fado e o folclore, que sugeria modernidade?» (Branco, 2019: 245). A dificuldade da editora também terá passado por uma questão conexa:
A principal dúvida residia no tipo de repertório a criar, se deveria enquadrar-se no folclore, na música popular ou na música pop. [...] Nos anos de popularidade do chamado rock português estava criado o enquadramento para lançar a carreira dum cantor que pretendia articular na sua prática expressiva o legado cultural do lugar onde nascera e vivera a infância (o folclore e a música tradicional do Minho) e a inspiração na figura e no estilo interpretativo de A. [Amália] Rodrigues e no universo de referências do pop-rock internacional que conhecera nas suas estadias em Inglaterra e na Holanda, numa época em que surgiram o glam-rock, o punk-rock, o disco sound, a pop «neo-romântica» e a new wave. (Cidra, 2010: 1312)
Tamanho embarras de richesses, e logo a convergir naquela pessoa, porém, só podia ser demasiado indigesto para a sociedade lusa.
Se a música portuguesa necessitava de uma picadela de mosquito que lhe inoculasse a febre da modernidade, Variações cumpriu esse papel: «A tal picadela da música moderna portuguesa não poupou quase ninguém. E, nesse contexto, arrisco afirmar que António Variações encarnou o mosquito» (Branco, 2019: 246). Especialmente incompreendido devido às suas idiossincrasias pessoais, ele não se encontrava, contudo, completamente só, num certo plano:
[...] existem alguns artistas e músicos que se encontravam mais interessados em resgatar e reprocessar determinados formatos ou símbolos do património rural ou da história lusa com o moderno, mediante as fusões com as sonoridades post-funk ou synth-pop que começariam a entrar em voga na Europa e nos Estados Unidos por volta da década de oitenta. Fazem parte desta vertente nomes como os Heróis do Mar, Sétima Legião, Xutos & Pontapés, António Variações, entre muitos outros. (Pepe, 2014c: 552–553)
Na sociedade portuguesa de então, caracterizada por indicadores socioeconómicos de estarrecer no contexto europeu a que nunca deixou de pertencer, lograr o que Variações alcançou assumiu foros de prodígio, precisamente porque a fuga ao destino coletivo não pode deixar de ser sempre prodigiosa nessas condições de partida e os seus trânsfugas tocados pelo insano heroísmo dos cegamente obstinados. Ao contrário da vulgar perceção pública, porém, ser-se notado — e notório — não corresponde automaticamente a ser-se acompanhado. Variações não o é, nunca o terá sido, muito menos amado ou sequer respeitado pelos seus pares. O deplorável comentário proferido por Pedro Caldeira Cabral bem pode resumir o sentimento experimentado por uma certa elite musical:
Bom, o António Variações. Aqui é um caso ainda mais dramático porque falo de uma pessoa que já morreu. Na minha opinião, ele nunca chegou a nascer em relação à música; sim, musicalmente nunca chegou a nascer: Os problemas principais talvez sejam a superficialidade de todo o seu trabalho, e aquela necessidade de afirmação pelo absurdo, pelo esdrúxulo, enfim, é dramática toda a história deste tipo. (Cabral, 1984: 194)
Cabral talvez nem se dê conta do cúmulo do desrespeito humano em que incorre, ao reduzir Variações a um caso — e casos não podem ascender à dignidade de uma carreira que os faça serem outra coisa que não aquilo de que não passam, de que não podem passar sendo o que são, dignos de mera comiseração por força da condição de marioneta do grand-guignol que é a sua vida:
Começam a notá-lo na rua e no circuito da noite pela exuberância no vestir, as cores garridas, as peças raras, os acessórios pobres mas tão vistosos — botas cardadas, boinas, camisolas de alças, calças largas em balão, robes, chinelos de quarto, brincos, anéis. Como sempre, tem poucos amigos, não gosta de se dar a toda a gente ou talvez não tenha com quem se dar. Poucos lhe conhecem a intimidade, menos ainda os que recebe em casa [...]. O grupo é restrito e nem todos se conhecem entre si, porque António fomenta relações compartimentadas. (Horta e Soares, 2020: 82)
Independentemente desse restritíssimo círculo de amigos e da atenção pública que concita a sua figura e a sua música, desde cedo conhece a solidão a que o vota a sua singularidade:
Viveu o sonho que criou, sozinho, à sua maneira, muito incompreendido, se é que ele próprio se compreendeu. Exigente e dono da razão, exótico, louco, apontado a dedo, foi, até ao fim, o mesmo miúdo que chegou a Lisboa sem nada, que falava baixinho, com vergonha e por isso desejou tantas vezes regressar à origem [...]. A sofisticação na imagem fez supor o que no seu íntimo não colhia, motivando interpretações desiguais e ideias fantasistas de um mundo artístico de eleitos em que imaginaram que gostava de se mover. (Horta e Soares, 2020: 131)
Que Variações enuncie, em época tão precoce da sua carreira, a tensão «entre Nova Iorque e a Sé de Braga» (Branco, 2018: 53) que lhe é constitutiva, só dá provas da lucidez com que ele próprio testemunha a estranheza dela logo no momento do seu lançamento. Estranheza que precisamente se acha nesta tensão, não do lado «Sé de Braga» da sua cultura musical, esse sim simples e evidente desde Olhei p’ra Trás (Variações, 2006: 59–60) e Deolinda de Jesus (Variações, 2006: 63–64), do CD Dar & Receber (Variações, 2000), até Povo Que Lavas no Rio (Melo, 2004: 64–66), Anjinho da Guarda (Variações, 2006: 42) e Voz-Amália-de-Nós (Variações, 2006: 45–46), do CD Anjo da Guarda (Variações, 1998), e que recorre na sua lírica, pontuada por conteúdos possuidores de grande afinidade com as máximas da sabedoria popular. O que encontramos em Deolinda de Jesus é o menino de sua mãe (Pepe, 2017: 195–196), com que uma limitativa abordagem psicanalítica da masculinidade portuguesa, e demasiado psicanalítica se a quiséssemos utilizar seriamente, nos devolve ao desgastado tema da regressão infantil, neste caso a fazer companhia ao português adulto expatriado do regaço do torrão natal que a si mesmo não escapa.
E isto por mais que, em Olhei p’ra Trás, insista que «[e] assim saí daí / de olhar p’ra trás» (Variações, 2000), consigo levando o santinho e a vereninha protetores, além do seu Anjinho da Guarda, que sempre o vela:
Eu tenho um guarda
Que é um anjo
Que me protege de noite e de dia
A toda a hora e em todo o lado
Posso contar com a sua vigia. (Variações, 1998)
Com efeito, foram sucessivas as suas partidas, e todas típicas de uma boa parte da população portuguesa no quadro socioeconómico daquele tempo — e que, em muitos aspetos, se mantém o mesmo após quase cinco décadas de democracia, sem poder ou sem saber dar melhor solução a algumas das entorses históricas do desenvolvimento português, herdadas do regime autoritário em que Variações cresceu. Primeiro, a migração interna para a capital, ainda mal saído da infância; depois, a mobilização obrigatória para o serviço militar na guerra colonial, a que se segue a emigração à procura de trabalho e melhores condições de vida; e, finalmente, as andanças por esses mesmos lugares, mas agora em busca de inspiração para uma carreira que não poderia ter cabido no colete de forças das suas origens:
A sua história de vida traduz, de forma singular, diversos processos significativos na história contemporânea de Portugal que afectaram um segmento da sua geração: as migrações dos meios rurais para as cidades e para a Europa, a participação dos jovens na Guerra Colonial, um tímido cosmopolitismo que sucedeu ao 25 de Abril de 1974 e que transformou os primeiros anos da década de 80 numa época de ensaio de expressões culturais (em larga medida) desconhecidas e de abertura a novos modos de vida. A sua prática expressiva sintetizou alguns destes contrastes e transformações. (Cidra, 2010: 1313)
De tudo dão minuciosamente conta as biografias de Manuela Gonzaga (2006, 2018) e de Bruno Horta e Helena Soares (2020), documentalmente ricas, mas, por mais informativas que possam ser, pouco mais proveito é possível tirar do seu registo descritivo e empírico para o nosso propósito essencialmente analítico. Ambas, porém, se propõem dar um contributo essencial para desfazer o cliché — já existente, mas exponencialmente hipertrofiado com recuperações da figura de António como a do filme Variações (2019), de João Maia — de uma vida, e do tempo em que ela decorreu, de despreocupada assunção da sexualidade, de vivência celebratória, inconsciente de riscos e contrariedades, de felix culpa, numa sociedade com sempre crescente à-vontade, vis-à-vis os seus dissidentes sexuais, e que abraçava entusiástica tudo quanto era inovação e experimentação. Nada disso:
No princípio dos anos 80 em Portugal, a homossexualidade e a transexualidade eram realidades obscuras, mas já abertamente tratadas em entrevistas e artigos na comunicação social e também na literatura. O Código Penal português caracterizava como crime os actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo (norma há muito em desuso, mas só revogada em Setembro de 1982) e havia quem confundisse orientações sexuais, identidades de género, prostituição, pedofilia.
Em Março de 1983, ao jornal Se7e, António fará uma declaração invulgar: a homossexualidade «é apenas uma opção sexual» e «deve ser assumida por quem a pratica e respeitada pelos outros». Alguns irmãos estavam provavelmente a par da condição de António, que interpretavam como bissexualidade, mas nunca falaram disso abertamente.
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