Do pão popular ao pão gourmet

Em 4 de janeiro de 1513, Afonso de Albuquerque, capitão-geral e governador das Índias, ordenou ao feitor de Goa que entregasse a Diogo Dias mil réis em trigo, por este armar engenho de fazer pão para a mantença dos moradores da fortaleza. A extensão do processo a outros territórios do império e a disseminação do consumo de pão, feito ao estilo de Portugal, consumou a globalização do pão português.

As culturas arvenses ligadas à panificação foram, no transcorrer dos séculos, base de subsistência à escala global. «Fundamento de todos os manjares», como diria Duarte Nunes de Leão, o pão teria uma característica vincada, a unidiversidade. Das bodas quinhentistas à alta cozinha gourmet, da indigência do período moderno à lazeira da contemporaneidade, foi universal a sua importância. Na medida em que os processos, os métodos, as técnicas, os saberes e as experiências gerados em seu torno foram variáveis, nos diversos territórios, nas diferentes culturas, nos distintos tempos e conjunturas, também mostrou ser um universo de diversidades.

Fazia-se pão do trigo duro, mole ou tremês, galego e mourisco. Utilizavam-se, também, os praganosos de segunda linha, como a cevada, o centeio, a aveia, a espelta e o sorgo. Do milho, incluído no lote, que podia ser de regadio ou de sequeiro, conheciam-se diversas tipologias panificáveis: zaburro, marroco, maçaroca, miúdo, milhete ou painço. Em épocas de maior escassez, recorria-se à castanha, bolota, lande e lentilha. Era o pain de disette.

Nos alvores da expansão ultramarina, chegou à Europa uma nova espécie de milho grosso, graúdo ou milhão, que a botânica designaria de Zea maiz. Tido, inicialmente, como comida de «bugres» e animais, zarparia da América, no primeiro quartel do século XVI, para se generalizar, a partir de finais dessa centúria, nas regiões húmidas do Norte, centro e litoral de Portugal. O impulso dado pelas nações atlânticas ao comércio extraeuropeu e à exploração dos «novos mundos» difundiu-o. Nos finais da década de 1530, já se encontrava em Castela, Catalunha, Andaluzia, sudoeste francês e Veneza.

Até aos finais do século XVI chegaria à Península Itálica, à Birmânia e à China. Alterou a paisagem, diversificou o pão, modificou o regime da alimentação e transformou a economia.

Vinculada a condições edafoclimáticas, a implantação territorial dos cereais provocou assimetrias regionais, em relação às variedades de pão.

Do trigo, cereal mais caro em toda a Europa, resultaram em Portugal, pelo menos no século XVI, dois tipos de pão: o «da terra», mais barato, e o «de fora» ou «do mar», mais caro, também designado por «pão alvo», inacessível ao vulgo. Daí a popularização do pão de mistura, meado, terçado ou quartado, como a triga-milha, o pão de alfarroba, a broa do Alto Minho e o pão da Beira Alta, com mistura de farinhas de trigo, centeio e aveia. «Demasiadamente amargoso», no dizer de Viterbo, o «pão negro» seria mais tolerado quando misturado com o «milho maís»

Nos domínios da monarquia lusitana, os colonos procuraram manter os seus hábitos alimentares, requerendo cereais da metrópole para panificação. A obtenção do cereal in loco seria episódica e paliativa nos territórios belicosos do Magrebe, mas frutuosa na costa oriental africana e no Brasil. Os colonos adaptar-se-iam à disponibilidade de víveres, confecionando pão com as farinhas nativas ou utilizando o pão local. Manuel da Nóbrega diria, em 1549, que o pão meado da Baía escusava o pão de trigo português, ao passo que Baltasar Fernandes afirmaria, em 1567, que o pão de Piratininga era tão bom que «não alembrava o pão do reino». Assim também na Ásia. Em documentos relacionados com a feitoria de Cochim, da primeira metade de Quinhentos, abundam referências a «pães de jagra», confeccionados com açúcar de coco.

A mundialização do pão sobreveio dos empreendimentos expansionistas portugueses. Africanos, asiáticos e ameríndios contactariam com o biscoito, transportado nos navios. O momento determinante seria, contudo, o da transplantação das estruturas, métodos e técnicas portuguesas para confeccionar pão. Em 4 de janeiro de 1513, Afonso de Albuquerque, capitão-geral e governador das Índias, ordenou ao feitor de Goa que entregas e a Diogo Dias mil réis em trigo, por este armar engenho de fazer pão para a mantença dos moradores da fortaleza. Com efeito, nos anos seguintes, chegariam a Cochim várias mós, provenientes da metrópole. A extensão do processo a outros territórios do império e a disseminação do consumo de pão, feito ao estilo de Portugal pelos colonos, nativos e outras sortes de gente, consumou a globalização do pão português.

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Não falta eco da assimilação dessas técnicas ao longo de todo o período moderno, na tentativa de arremedar manjares lusitanos com produtos nativos. Surgiriam pães indígenas, como os «bolos miepês», de farinha carimã ou tapioca, e bem assim os beijus su e os beijus de água, de farinha de mandioca, referidos no Thesouro Descoberto, do jesuíta João Daniel (1722-1776). Quando espessos e torrados, substituiriam no Brasil o biscoito do reino.

A produção de biscoctu tornar-se-ia exponencial, a partir do século XV. Era um tipo de pão muito cozido, quase esturrado, cuja desidratação lhe permitia aguentar períodos longos, sem azedar. Preservado em barricas, necessitaria apenas de ser humedecido para consumo. Seria «munição de boca» das armadas reais, dos navios das carreiras transoceânicas, das fortalezas, praças e entrepostos comerciais portugueses do reino e do império, e principal meio de subsistência dos que missionavam. A sua produção obrigou à constituição de dois polos protoindustriais, os fornos da Porta da Cruz, em Lisboa, e o Complexo Real de Vale de Zebro, em Palhais, na margem sul do estuário do Tejo. Biscouteiros, mestres das masseiras e um número superlativo de escravos labutavam nos diversos fornos e moendas aí existentes.

A generalidade dos indivíduos praticava, à escala global, uma alimentação frugal, na qual o pão ocupava papel de relevo. Essencial no reino, fundamental no império. Modesto para o povo, refinado para as elites, cedo passou a fazer parte das ementas com que se recebiam os líderes e embaixadores dos mais variados reinos, potentados e civilizações. Na passagem dos embaixadores do Congo por Coimbra, em 1605, o município gastou soma avultada na sua receção, contando-se entre os produtos do repasto 300 réis em pão cozido. Também em Goa, a 19 de março de 1513, foi registada a despesa de 45 pardaus, relativa à compra de pão para a hospedagem dos embaixadores de Yusuf Adil Xá, fundador do sultanato de Bijapur, e do xeque Ismael, monarca do império Persa. Mas o inverso também ocorria. No seu Itinerário (1560), António Tenreiro incluiu o pão de trigo «feito à maneira de bolos muito delgados» entre as iguarias que compunham os banquetes com que as embaixadas portuguesas eram recebidas na Pérsia.

A escassez de cereal e carestia dos preços do pão, que no transcorrer dos séculos assolaram a Europa, chegariam a ser dramáticos em Portugal, nas três primeiras décadas do século XVII, arrastando-se para lá do fim do período de união das Coroas ibéricas. Conhecem-se iniciativas para as frear, com o recurso à importação de «trigo do mar», da Andaluzia, Bretanha, Flandres, Inglaterra, Alemanha, mundo báltico e territórios italianos. Nalguns momentos, as próprias colónias proveram Portugal de pão.

Os fluxos de abastecimento e os níveis de consumo de pão, na Europa pré-capitalista, variavam, consoante as conjunturas de abundância ou crise. A escassez de cereal; ausência de um movimento de arroteias; carestia do pão; opressão e sucção fiscal; açambarcamento ou deferência alimentar para com privilegiados; vexações impostas à riqueza tributável; e situação generalizada de fome, conduziriam a crises de subsistência, seguidas de levantamentos e motins a uma escala global, não raro com responsabilidades no deflagrar de acontecimentos decisivos, como a independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Revolução Francesa (1789).

Com relação direta aos preços do cereal, os valores do pão foram instáveis e fortemente variáveis no mundo inteiro, embora mantendo a tendência de subida. Em Lisboa e Porto, os preços do alqueire do trigo subiram, respectivamente: 161% e 302% - 1542/3-1643; 18% e 128% - 1643-1743; e 138% e 45% - 1743-1843. Movimento semelhante se registou no milho: 39 % e 380% - 1542-1641; 52% e 100% - 1641-1742; e 106% e 128% - 1742-1842. Em apenas 25 dos 223 anos, do período compreendido entre 1565 e 1850, para os quais existem dados seriais comparativos, os preços do trigo foram mais altos em Lisboa do que no Porto. A diferença residirá, em primeiro lugar, no maior número de quilos do alqueire portuense, face ao vigente na capital, e na relação entre a oferta e a procura. Lisboa, «cidade mercado e armazém», do Terreiro do Trigo e dos celeiros comuns, era um grande empório comercial, centro privilegiado de abastecimento e distribuição, que recebia ainda, via terrestre, o cereal dos «obrigados do pão», não sujeito a franquia. Era, também, um importante núcleo de consumo. Em meados do século XVI existiam aí 170 forneiras, 782 padeiras, dez fornos de fazer biscoito e 500 de pão. Além disso, desde o reinado de D. Manuel I que a cidade usufruía de medidas de redução ou abolição dos impostos sobre o cereal, importado para consumo nos seus limites. Daí que, em 1619, o alqueire de trigo custasse mais em Grândola (200 réis) do que no Porto (180 réis) e em Lisboa (154 réis), o mesmo acontecendo, no ano de 1708, em que o valor do produto, em Coimbra (553 réis), estava acima do praticado no Porto (219 réis) e Lisboa (199 réis).

A venda do pão era regrada e a prevaricação correntia. Tendo como referência o valor do alqueire do respetivo cereal, as autoridades locais fixavam o preço e atribuíam-lhe determinado peso, obrigando os profissionais da venda a possuir sistema de pesagem, sob pena de coimas e confisco do pão, fiscalização geralmente a cargo do juízo da almotaçaria. Também aqui houve flutuações. Em Grândola, por exemplo, o pão de 8 réis pesava 12 onças, em 1612; 11 onças, em 1619; e 16 onças, em 1622. Três anos depois, já só custava 5 réis, tendo peso de 10 onças.

Considerando a manutenção do défice crónico da produção face ao consumo e a carestia generalizada do pão, seriam usuais as mercês, que desoneravam municípios, instituições laicas e eclesiásticas e até particulares da tributação imposta a esse produto (sisa e dízima). Do consulado pombalino (1750-1777) até à implantação da República (1910) procurar-se-ia intervir na matéria, oscilando as medidas entre o proteccionismo e o livre-cambismo, mas o setor do pão continuaria a ressentir-se com a instabilidade política motivada pelas Invasões Francesas (1807-1813), independência do Brasil (1822), revoluções liberais (1820-1834) e desacertos do terceiro liberalismo (1851-1891). Os problemas naturais, técnicos e comerciais manteriam Portugal afundado no atraso económico, situação que nem mesmo as leis dos cereais (1889, 1892, 1893, 1899, 1905, 1911) conseguiriam reverter.

Conhecem-se referências documentais a «fábricas do pão», antes do século XIX, mas só mais tarde esse ramo industrial se vulgarizou, nas grandes urbes. A investigação genética trouxe novas variedades de sementes panificáveis, ao passo que se iniciaria o uso de leveduras seleccionadas. O crescimento do setor faria aparecer organismos destinados a regular a produção, transformação, importação, comercialização, consumo e qualidade dos cereais e do pão.

Em marcha desde os alvores do período moderno, o processo de globalização do pão atingiu o ápice nos tempos hodiernos. O desenvolvimento da automatização da indústria da moagem e panificação permitiram a diferenciação das farinhas, com emprego de aditivos; a utilização de câmaras de fermentação e fornos elétricos; a utilização do frio para conservação de massas e congelamento de pão pré-cozido. Apareceram novos e variados produtos, adaptados às necessidades e novas tendências de consumo, utilizando farinhas estremes ou de mistura com combinação própria de diferentes tipos de grão e fermento.

Na classe do pão pequeno, tornaram-se comuns diversas tipologias autóctones ou de influência espanhola, gaulesa, espanhola e austríaca, nomeadamente, entre outras: papo-seco, carcaça, bico ou bica, rosca, bolas, padas, caralhotas, pão de casa, canhola, mimosa, boné, pádua, passarinho, pão de coroa, pão de quartos, pão minheiro, pão espanhol, cancra, cacete, viana, pinha, bijou e molete. No pão de fornada, salgado ou doce, a diversidade permanece com as broas ou pães: de trigo, milho, centeio, redondo, de testa, de leite, de calo, de cornos, de azeite, de quartos, trigamilha (meada ou grossa), pão doce, santoro, sovado ou arregueifado, cantelo, bolo do caco, folar, regueifa, fogaça e pão ou bolo podre. Acrescem as bôlas (pães condutados); os pães tradicionais de nome protegido; e tantos outros com a proveniência geográfica associada, de que é exemplo o pão alvo da Lapa. Outros caíram em desuso, como o pão rolão e as mindreiras. De surgimento recente é o pão de triticale, resultante da manipulação genética de cereais.

Tanto é apreciado au naturel, como ajustado a outros alimentos, bastando lembrar o aproveitamento que da sua ressecagem é feito desde tempos remotos, nas migas, papas, açordas, ensopados, caldos, sopas, molhos, recheios e doces. A conceção gourmet tem promovido a sua versatilidade, mostrando como uma matéria-prima simples pode originar um produto mais complexo (estético e/ou artístico), substituindo a quantidade pela qualidade. Utiliza-o com grãos e sementes variados, por vezes associados a culturas biológicas, como o trigo espelta, e sem fermento ou com leveduras naturais, provenientes de farinha, batata, iogurte ou soro de leite coalhado e melaço.

O pão acompanhou a liberalização do deleite no ato de comer, bem como a expansão do ecletismo alimentar no mundo. Daí a sua presença nas tendências mais vanguardistas da «nova cozinha», como o fooding e o fusionfood, e nas «ideologias alimentares», caso dos pães vegano e biológico.

História Global da Alimentação Portuguesa
História Global da Alimentação Portuguesa

Livro: "História Global da Alimentação Portuguesa"

Autor: Dirigido por José Eduardo Franco e coordenado por Isabel Drumond Braga

Editora: Temas e Debates

Preço: € 24,90

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Elemento nutricional do corpo e do espírito, nos territórios de implantação das três maiores religiões monoteístas, o pão patenteou a sua importância nos aspetos ou manifestações culturais mais comezinhos, como as tradições («pão por Deus»); rituais e festividades religiosas («festas do pão»). Ainda hoje é benzido ou abençoado, antes de ser cozido, partido ou ingerido, além de osculado, quando se desperdiça ou cai no solo. Também se verifica a ostentação do vocábulo «pão» como manifesto de ideias, estados de espírito ou sátira, em expressões, alocuções, adágios, provérbios, superstições e crendices populares. Tornar-se-ia, ainda, tema epigonal nas artes cénicas/performativas europeias, conhecendo-se peças, documentários e filmes, nacionais e estrangeiros, que lhe aludiram. A sua confecção era prática corriqueira, saber comum. Daí que os antigos livros de receitas o não ensinassem a fazer. As referências mais usuais dizem respeito à sua utilização, na confeção de outras iguarias, como mostram as obras de Domingos Rodrigues.

O pão é um símbolo meta-histórico. Nunca deixou de ser o «bastão da vida», um alimento basilar e decisivo na história das civilizações, valorado no plano natural e metafísico, como realidade imanente e transcendente.

Na confluência das técnicas culinárias: o pão de queijo

Substituições de ingredientes raramente disponíveis no Brasil, como a farinha de trigo, ocorreram desde os primórdios da colonização lusa. Preparos feitos com farinhas de mandioca ou de milho das populações ameríndias, por sua vez, foram submetidos a técnicas culinárias, assim como receberam acréscimos de origem europeia, como os ovos, o leite, o queijo, a banha ou a manteiga, dando origem a iguarias inéditas.

Migrações e trocas culturais sempre ocorreram na história da humanidade. Inúmeros estudiosos apontam que dois elementos fundamentais compõem a bagagem das pessoas que se deslocam: a língua e a cozinha maternas. Hábitos alimentares e receitas, mesmo quando submetidos a adaptações, que se impõem nos novos territórios, permanecem como expressões identitárias, padrões tradicionais de alimentação são mantidos como referências simbólicas, elementos de continuidade. No Brasil, desde o primeiro século da colonização portuguesa, relatos de cronistas, como Gabriel Soares de Sousa, apontam o facto. A carimã, farinha fina e alva feita de mandioca pelos nativos, era preferida à de trigo proveniente do reino, que chegava à Baía não tão fresca e alva. No seu dizer: «Desta carimã e pó dela bem peneirado fazem os portugueses muito bom pão, e bolos amassados com leite e gemas de ovos, e desta mesma massa fazem mil invenções de beilhós, mais saborosos que de farinha de trigo...».

Frei Vicente noticia o modo de preparo da farinha de carimã, referindo-se a um pão feito com ela. Relata brevemente o processo, que consiste em deixar as raízes de molho, em água, e culmina com a massa da mandioca espremida, posta a secar ao sol, podendo ser guardada por longo tempo e pilada no momento de utilização, resultando em um pó que ele compara à farinha de trigo, com o qual «amassado fazem pão, que se é de leite ou misturado com farinha de milho e de arroz, é muito bom...»

Cascudo (1983), na sua extensa etnografia histórica sobre alimentação no Brasil, reitera que, nos primórdios da colonização, houve substituição da farinha de trigo, nas receitas portuguesas de bolos, beilhós e brevidades pela «goma de mandioca» nativa – um subproduto dessa raiz, que consiste no amido, também conhecido como polvilho, humedecido. Em seu entender, a presença portuguesa valorizou o sal e revelou o açúcar aos indígenas e africanos. Introduziu a fritura – inicialmente feita com azeite português –, a banha de porco, a manteiga, os queijos e o leite de vaca ou de cabra. Apresentou também o ovo da galinha, propiciando farto rendimento culinário. Cascudo considerou que os grupos indígenas não apreciavam frangos, galinhas e ovos,
que destinavam ao comércio com os portugueses.

A receita de «biscoitos de massa» do livro de Domingos Rodrigues (1680) é indiciária da circulação de pratos, modos de fazer e das substituições que ocorreram, dada a semelhança com a elaboração de biscoitos de polvilho brasileiros. Amassa-se a farinha de trigo com manteiga de vaca, açúcar e gemas de ovos, sovando-se com água morna e enrolando os biscoitos em argolas ou tirinhas. Também a «massa real», que consta no livro de Lucas Rigaud, Cozinheiro moderno, é feita acrescentando-se farinha de trigo em água fervente com sal, açúcar e manteiga, mexendo sempre até soltar do fundo da panela, acrescentam-se ovos, constituindo base para diferentes preparos, entre os quais sonhos e «popelinos».

A proposta de modernização implícita no título do livro resultava das suas viagens e dos seus trabalhos, em diferentes países, onde teve oportunidade de conhecer outras cozinhas, técnicas e ingredientes, propondo incorporá-los à culinária portuguesa. A «massa real» é uma versão da pâte à chaud de Popeline, cozinheiro de Catarina de Médicis, retomada do seu antecessor Pantanelli, por volta dos anos de 1540. «Il reprend notamment une pâte à gâteau desséchée sur le feu appellée “pâte à chaud”, la retravaille, la dresse en petits “choux” et la cuit au four. Ces petits choux [...] une fois garnis de gelée de fruits, font fureur à la cour et baptisés “poupelins”.» (Ele retoma uma massa de bolo desidratada ao fogo chamada «pâte à chaud», formata-a em bolinhas, assando-as ao forno. Essas bolinhas [...] uma vez recheadas com geleia de frutas, provocam furor na corte e são batizadas «popelines»). A receita foi modificada por Antonin Carême, dois séculos mais tarde, recebendo o nome de pâte à choux, na versão que ficou conhecida e é executada até aos nossos dias.

É interessante notar que, em França, no final do século XVII, a mesma massa deu origem a um pãozinho feito com queijo gruyère, a gougère, que se tornou característica na Borgonha. Ferve-se água ou leite, com sal e manteiga, junta-se farinha de trigo, mexendo sempre em fogo brando até soltar do fundo da panela (na versão de Carême, a farinha é misturada fora do lume, e depois levada, novamente, a lume brando, mexendo sempre). Deixa-se arrefecer, acrescentam-se ovos e, em seguida, o queijo picado em pedaços bem pequenos. Formam-se bolinhas, levando-as para cozer.

Tudo indica, portanto, que, desde o primeiro século da presença lusa no Brasil, ocorreram substituições de ingredientes das receitas originais por produtos nativos ou aclimatados, posto que os portugueses efetivaram ampla globalização, levando para as suas colónias géneros oriundos da Europa, das suas viagens e das trocas comerciais. De outro ângulo, os beijus e tapiocas à base de derivados da mandioca das populações originárias, assim como preparos feitos de massa de milho ou das suas farinhas, entre
elas a variedade de fubás, receberam o acréscimo de ovos, leite, banha ou manteiga, resultando em iguarias inéditas. Destarte, pães e bolos eram confecionados com as farinhas nativas, ao passo que biscoitos de polvilho e broas de fubá constituíam criações locais.

O acréscimo de queijos às receitas é provável fruto dessas adaptações e recriações. No estudo sobre a construção histórica da cozinha considerada «típica mineira», acatamos a perspetiva da pesquisadora e escritora Maria Stela Libânio Christo, relativa à possível origem do pão de queijo, atribuída ao estado de Minas Gerais, sendo o uso mais frequente de queijos na culinária, associado à intensificação da pecuária e à consequente produção desses laticínios. Na região onde é o atual estado de Minas, a partir da segunda metade do século XVIII e início do XIX, a agropecuária aos poucos se consolidou como principal atividade económica, em decorrência do declínio das extrações nas minas de ouro e pedras preciosas. Houve aumento da produção e os queijos excedentes, não comercializados ou consumidos, iam desidratando, endurecendo e maturando – chamados meia-cura ou curados –, propiciando o seu aproveitamento em ampla gama de receitas, entre as quais o pão de queijo.

Em Minas pode ser utilizado o polvilho doce ou azedo (cuja diferença resulta do tempo de decantação do amido, que se deposita a partir do líquido extraído da mandioca ralada e, posteriormente, seco ao sol). O modo de fazer também varia, havendo inclusive mistura dos dois polvilhos, como se nota em uma receita da segunda metade do século XIX. Quando escaldado, verte-se uma mistura de água, leite e banha de porco ou óleo vegetal fervida sobre o polvilho, amassa-se bem com uma colher até arrefecer. Junta-se o queijo curado ou meia cura ralado e os ovos, um a um, até o ponto de enrolar as bolinhas, que são levadas ao forno. Para a versão não escaldada, não é utilizado líquido quente e a gordura pode ser manteiga de leite, misturada aos demais ingredientes. Notam-se as adaptações das receitas europeias acima citadas, quanto ao uso da farinha e aos preparos. A versão escaldada é também uma massa quente, no entanto o polvilho não é adequado para cozimento direto ao lume.

As confluências entre culinárias dos povos nativos das Américas e dos europeus colonizadores, observadas no Brasil, ocorreram também em várias regiões do território sul-americano. Uma vez que no continente europeu os cozinheiros, assim como os livros de receitas e técnicas culinárias, circulavam nas cortes, em que, pesem as diferentes contribuições das diversas nações que disputaram a colonização da América do Sul ou de seus habitantes que se mudaram para o novo continente, havia receitas, preparos e introdução de ingredientes comuns, como ovos, leite, manteiga, gordura de porco e queijos. Combinados àqueles que tinham por base mandioca e milho da terra, resultaram em produtos semelhantes, como, por exemplo, os pães de queijo mineiros e as chipas paraguaias. Godoy aponta pãezinhos e tortillas similares, elaborados com farinhas de milho e de mandioca, que recebem distintas denominações: «en Bolivia existe, en su término guaraní, el cuñapé, en Colombia y Venezuela, la arepa, en Brasil, la tapioca, la pamonha, em El Salvador, la pupusa, entre otros».

Esse substrato comum de conhecimentos e mescla de ingredientes faz-nos pensar, portanto, na coexistência de pratos novos e semelhantes ao longo dos territórios americanos, contudo é difícil determinar as suas possíveis deslocações. Afirmações quanto à origem bem demarcada desses similares pãezinhos e tortillas circulam fartamente pelas mídias e por vezes fundamentam disputas por comidas como símbolos identitários. Entendemos que têm de ser mais robustamente documentadas.

É facto que a apropriação cultural de cada iguaria, ainda que semelhante, resulta de formas singulares de abastecimento e de sociabilidade, implicando atribuição de significados particulares em contextos históricos específicos. Na fase rural da história económica de Minas, que sucedeu ao período da mineração, pães de queijo, biscoitos de queijo e de polvilho, broas de fubá, bolos, roscas e uma variedade de acepipes, que constituem a pastelaria caseira nomeada «quitanda» nessa região, passaram a figurar de forma mais constante na alimentação quotidiana das fazendas. A autossuficiência de suprimentos característica dessa fase propiciou uma produção contínua dessas iguarias, que abasteciam as despensas, guardadas em latas ou cestos de palha, em armazenamento permanente. No entanto, nota-se que a documentação relativa à comida mineira e à cozinha brasileira não menciona o pão de queijo, no século XVIII, o mesmo ocorrendo com as narrativas de viajantes estrangeiros do século XIX, na região, nas quais inúmeras vezes detalham os hábitos alimentares e as comidas que lhes eram servidas. O Códice Costa Matoso, importante documentação produzida pelo ouvidor-geral de Ouro Preto, em Setecentos, cita as várias comidas que se fazem de milho, incluindo as «quitandas», no entanto, não há menção a essas quando se refere aos usos da mandioca. É curioso notar que o códice também não relata a criação de gado para abate ou para a produção de lacticínios.

Desse modo, embora «quitandas» fossem centrais na alimentação, nas formas de bem receber e na sociabilidade, em Minas, a partir da «ruralização» da economia, que se sucedeu ao período de mineração, o famoso pãozinho não mereceu destaque especial na documentação daquele momento histórico. Na segunda metade do século XX, no entanto, tornou-se emblema da imagem de Minas Gerais no Brasil e, mesmo em outros países, é um ícone de iguaria mineira ou brasileira. Um dos fatores que contribuíram para a sua divulgação e popularização foi a abertura da Casa do Pão de Queijo, na década de 1960, na cidade de São Paulo, pela família mineira Carneiro. A loja tornou-se uma franquia, expandindo-se para várias regiões do país e instalando-se em pontos estratégicos, como aeroportos e terminais rodoviários.

Outro elemento importante para o seu reconhecimento, como símbolo identitário, que extrapola fronteiras, é a existência de investimentos políticos na imagem de Minas associada à cozinha, desde meados dos anos de 1970, como discutimos no nosso livro sobre a temática. No plano nacional, destacamos um episódio que envolve tal associação, tendo-o como referência: a posse do «mineiro de Juiz de Fora», presidente Itamar Franco, em 1992, quando foram servidos cafezinhos, biscoitos de polvilho e os famosos pãezinhos. O facto ensejou a alcunha «República do Pão de Queijo», legítimo representante da «República de Minas».

A adaptação, e mesmo sintonia, com os padrões alimentares contemporâneos provavelmente também constitui aspeto fundamental. Habitantes do estado de Minas conservaram-no como tradição passada por meio de cadernos de receitas, de geração em geração. Nascido nos fornos a lenha das casas rurais, adaptou-se à modernidade dos tempos, passando desses para os fornos a gás e para os elétricos. Incorporado aos hábitos regionais, não foi substituído por biscoitos industrializados ou quaisquer petit-fours, permaneceu firme nas mesas familiares, expandindo-se na terra natal ou migrando com as pessoas que se deslocavam.

O segredo que pertencia às cozinheiras, de saber sovar bem a massa, da exata «pitada» de sal, por vezes deu lugar à eficiência e à padronização de receitas congeladas, prontas para cozer, que ganharam o mundo, presentes em hotéis, em couverts de restaurantes, em padarias, cafés e confeitarias. O receituário amplia-se, adaptando-se sempre, ora com emprego de amido industrializado – a fécula de mandioca –, de grande diversidade de queijos – que podem substituir o original «queijo de Minas artesanal» meia cura ou curado –, ora com acréscimo de grãos e recheios à massa, ou ainda compondo sanduíches.

E ei-lo atravessando oceanos, exportado do Brasil ou em produções locais em vários países, inicialmente pelas mãos de imigrantes do Brasil, nas cozinhas domésticas, e, aos poucos, ganhando versões comerciais e congeladas. Em terras lusas parecem ter-se tornado um hábito, como atesta Braga: «Aliás, o pão de queijo tornou-se popular e pode consumir-se em muitos cafés e pastelarias que cozem pão, como, por exemplo, a muito portuguesa pastelaria Lido [...] em Lisboa». Reinventando-se, ou, quem sabe, retornando às origens, as «bolinhas de queijo de São Jorge da ilha de São Miguel», elaboradas com farinha de trigo, ovos, leite e manteiga repetem o ciclo das adaptações, recriando, passados quinhentos anos, a invenção da antiga colónia? Ou fazem parte de um movimento de recuperação de tradições ancestrais dos Açores, no bojo de um processo de globalização cada vez mais acirrado? Essa é uma história a ser investigada...