Cabo Verde é sinónimo de música. O 'Petit Pays' que Cesária Évora cantou tem morna, tem coladera, tem batuko, tem funaná. É este último, que Dino D'Santiago batizou como «o novo funk», que tem percorrido os ouvidos dos melómanos nos últimos tempos: por culpa dele, mas também por culpa de artistas como Scúru Fitchádu ou Fogo Fogo, só para dar alguns exemplos. Mas antes, muito antes, já os Ferro Gaita tinham colocado o funaná em aparelhagens e em headphones, já os Ferro Gaita percorriam o mundo, já os Ferro Gaita faziam dançar até sangrar. Literalmente, como se poderá ver nas próximas linhas.

São descritos como «embaixadores do funaná», são uma verdadeira instituição da música cabo-verdiana. Nascidos em 1996, numa altura em que o género se fazia com sintetizadores e outros avanços tecnológicos, os Ferro Gaita decidiram olhar para o passado e para a tradição. Olhar, precisamente, para o ferro e a gaita com que o funaná era feito, em tempos coloniais, proibido pelas autoridades e amaldiçoado pela Igreja. O regresso às raízes, por assim dizer, constituiu uma verdadeira revolução: “Fundo Baxo”, o seu primeiro álbum, vendeu 40 mil cópias num país que tinha, à altura, cerca de 400 mil habitantes – e fê-lo mesmo quando outros os achavam loucos. 

De súbito, o funaná explodiu de novo. Como explica o investigador e antropólogo Rui Cidra em “Funaná, Raça e Masculinidade”, livro essencial para quem queira entender melhor a história não só deste género como a de Cabo Verde, a popularidade dos Ferro Gaita «veio revitalizar a prática do funaná junto da comunidade de tocadores que havia inspirado os elementos do grupo». Uma espécie de, digamos, novo punk, em vez de novo funk. Se o funaná persiste e é escutado além-ilhas, há que agradecer aos Ferro Gaita, que têm vindo a celebrar 25 anos de existência com uma digressão que já passou, neste mês de abril, pela Casa da Música, no Porto, e que tem pousio marcado no B.Leza, em Lisboa, na próxima sexta-feira. Antes disso, encontrámo-nos com Manel Di Tilina, responsável pela percussão e voz, para uma conversa num hotel da Amadora. Sem grogue, mas com boa disposição.

Começo pelo óbvio: estão a celebrar 25 anos de carreira. O que significa este número, 25, para os Ferro Gaita?

Uma banda com 25 anos... Para nós é, sinceramente, um motivo de orgulho muito grande. Antigamente, em Cabo Verde, nenhum dos grupos chegou a essa idade. E nós, depois de 25 anos, estamos muito orgulhosos e muito contentes, e vamos continuar até que a banda chegue aos 50.

Quando começaram esperavam chegar aos 25?

Não... A gente ficava assim com um bocado de receio, de que o grupo não chegava lá. Mas, pouco a pouco, e também com muita humildade e simplicidade dos elementos... Foi essa a maior força, da gente chegar aos 25.

Há uma história curiosa sobre um concerto dos Ferro Gaita, na Áustria, em que um membro do público subiu descalço ao palco, cortou o pé e continuou a dançar...

Isso também aconteceu na China, já aconteceu em Lisboa... Há vários espetáculos na Europa, nos Estados Unidos...

As pessoas não resistem...

...Sobem ao palco, tiram os sapatos, depois é sangue...

Essa, em particular, é bastante curiosa, porque ele continuou a dançar e até disse que o ritmo não dava para parar... Ia perguntar se é esse ritmo que explica a longevidade dos Ferro Gaita.

É esse ritmo. Nós nunca saímos do estilo tradicional de Cabo Verde. É isso que [permitiu] chegar aos 25 anos.

Os Ferro Gaita são descritos como «embaixadores do funaná», mas na vossa sonoridade cabe também o batuko, a tabanka... Será mais correto escrever «embaixadores da música de Cabo Verde»?

Quem representava Cabo Verde era a Cesária [Évora]. Ela era a artista maior, a maior representação de Cabo Verde. Mas nós também. Juntamente com a Cesária, e com mais gente que se juntava. Acho que o nosso estilo, o funaná, foi o que nos levou mais [longe]. Nós tocámos tabanka, batuko, funaná lento, mas o funaná rápido foi o que nos levou mais longe.

Antes do funaná, antes do ferro e da gaita, tinham uma banda de reggae...

Sim, sim.

Aliás, na canção 'A Canadja', fazem uma referência a Jah Rastafari.

Também em homenagem ao Arlindo, baterista que vivia na Holanda, já falecido. Foi o baterista que gravou o primeiro e o segundo disco do grupo. Acabou por falecer na Holanda e a 'A Canadja' ficou como homenagem a ele, ele era um rasta. O Iduíno, antes dos Ferro Gaita, tinha um grupo só de reggae e só depois é que fundou os Ferro Gaita. Aliás, o Iduíno, para fundar os Ferro Gaita, teve de ir aprender a tocar a gaita. Ele toca trombone, mesmo, e trompete. Ele era da banda militar, depois foi da banda civil da Câmara Municipal da Praia, e optou por tocar a gaita.

Há uma biografia do Bob Marley, intitulada "So Much Things To Say", em que é dito que, no futuro, o chamado "terceiro mundo" irá superar os seus antigos colonizadores e declarar Marley um santo. Queria perguntar, primeiro, se concordam com esta ideia e, segundo, qual a importância da figura Bob Marley para os Ferro Gaita, menos como músicos e mais como pessoas que amam música.

Para mim, como santo, seria bom. O Bob Marley, para mim e para os elementos do grupo, é uma referência maior da música. As músicas do Bob, a gente ouve uma há vinte anos, ouve agora a mesma música, é como se essa música tivesse sido gravada ontem...

É intemporal.

É. Foi uma perda muito grande para a música do mundo. Se fizerem dele santo, gostaria muito.

Há uma compilação de 2019, de uma editora norte-americana, intitulada "Pour Me A Grog", que junta vários artistas de Cabo Verde, entre os quais os Ferro Gaita. Nas notas do álbum, o Iduíno afirma que o facto de terem rejeitado os sintetizadores, quando começaram, e terem apostado num som mais acústico constituiu uma "segunda revolução". Ia perguntar sobre esse período na história do funaná, nos anos 90. Porque é que optaram por seguir esse formato?

Nos anos 90 havia muitas bandas com teclados que tocavam funaná, e a gaita estava já esquecida. O Iduíno teve a ideia de ir tocar gaita e formar o grupo e, depois de o formar e lançar o primeiro disco, "Fundo Baxo", em 1997, houve uma revolução enorme. Apareceram mais de 50 a 100 grupos de gaita em Cabo Verde!

O que explica essa revolução? Porque é que apareceram tantos de uma vez?

Antigamente, era proibido tocar gaita. No tempo colonial, se você tocava gaita, a polícia chegava e ias preso, ias pagar multa... Há vários artistas cabo-verdianos que tocam gaita, que queriam tocar gaita, mas tinham medo e não conseguiram. Depois do Iduíno relançar a gaita nos anos 90 houve uma grande adesão dos tocadores, muitos que a gente não conhecia apareceram, foi uma coisa extraordinária. E o funaná com gaita levantou-se de novo. Hoje, só aqui em Lisboa, há mais de trinta tocadores de gaita!

Entendo que a Organização dos Pioneiros Abel Djassi (OPAD-CV) e a Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC-CV) foram duas entidades muito importantes para a vossa formação criativa, mesmo antes de formarem os Ferro Gaita. O que aprenderam por lá?

A maior parte dos elementos dos Ferro Gaita foram crianças do OPAD-CV e do JAAC-CV, e essa foi a maior escola que a gente teve em pequeno. Foi aí que tudo começou.

Foi aí que começaram a tocar...

Foi aí que começámos a aprender, primeiro a prática e a componente teórica, mesmo os elementos formaram um grupo que tinha como nome Djassi. Hoje, os Ferro Gaita, os músicos, estão a tocar graças ao OPAC-CV.

O Festival da Gambôa, em 1997, foi um dos marcos mais importantes do vosso início de carreira. Ainda se recordam dessa edição?

Em 1997 eu ainda não fazia parte do grupo, só entrei em 1998. Mas foi a gota d'água. O Iduíno e o Bino, e o Guga, o nosso manager, de vez em quando lembram isso. Foi o maior espetáculo dos Ferro Gaita, esse no Festival da Gambôa. O que mais marcou.

Tinham começado há um ano, e chegar logo àquele palco...

Foi o que mais marcou, mesmo.

Eles estavam nervosos?

Um bocado... O Iduíno disse que estava, sim. 25 mil pessoas aí, pá... O primeiro espetáculo grande. Foi tiro e queda, um marco histórico, mesmo.

É nesse ano, também, que um jornal de Cabo Verde descreve os Ferro Gaita como um «terramoto», escrevendo - e passo a citar - que «ousaram fazer um disco baseado em gaita, ferrinho e baixo». Eu gosto desta palavra, "ousadia". Vai ao encontro do que disse: é quase como se estivessem a fazer algo proibido ou mal visto...

Antigamente, em Cabo Verde, era só gaita e ferrinho: não tinha mais nada. Dava-se um concerto de gaita mas era só gaita e ferrinho. E os públicos batiam palmas. Com a ideia do Iduíno, ele introduziu a viola baixo e a bateria, e aquilo foi um escândalo, com o lançamento do primeiro disco. Foram gravar na Holanda, e os músicos cabo-verdianos que viviam lá faziam troça, se tinham teclas, muito bem, senão, não estavam muito bem da cabeça. "Os gajos vieram com uma gaita e um ferrinho para gravar um disco?"...

Mas correu muito bem, porque venderam 40 mil cópias num país com 400 mil habitantes...

Foi uma revolução de gaita nunca vista.

Terem tido tanto sucesso, logo ao início, colocou-vos alguma pressão adicional?

Foi tudo na simplicidade. Vendemos muitos discos, houve vários espetáculos pelo mundo, mas nós temos um dilema no grupo: ensaiamos sempre. Mesmo quando há espetáculos ou não. Quando estamos em Cabo Verde, ensaiamos sempre. Fazemos o nosso trabalho com simplicidade e sempre, sempre a pensar no próximo disco. Esse saiu em 1997, gravámos o segundo, "Rei Di Tabanka", em 1998, depois o "Bandera Liberdade", o "Cidade Velha". Com simplicidade, sempre a trabalhar, a trabalhar em música nova, até chegarmos a estes 25 anos.

Ia perguntar, precisamente, sobre o "Bandera Liberdade". Foi o primeiro disco que gravaram em Cabo Verde. Já que o funaná, em geral, e os Ferro Gaita, em particular, são símbolos culturais do país, esse facto torna-o, a esse disco, mais especial que os outros?

Para mim, acho. É o melhor disco, mesmo. Com mais trabalho, mais dedicação.

Quando estavam a gravar esse disco, qual era a vossa maior preocupação? De onde vieram as ideias?

O "Bandera Liberdade" foi um disco onde convidámos vários artistas. A banda já teve um bocado de cuidado em fazer esse trabalho. Foi um disco com muita concentração, o disco que nos deu mais trabalho a ser gravado. Se não 'tou em erro, só nos coros [demorámos] oito dias...

São muitos dias...

Muito trabalho. E é o disco onde mais gastámos.

Mas também correu bem.

Correu bem. Foi um grande disco.

O vosso último disco, o "Festa Fora", saiu em 2015. Estão a planear mais lançamentos?

Olha, neste momento, em Cabo Verde, lançar um disco, com a pirataria... Não dá. Mas a gente gravou mesmo aqui, em Lisboa, quatro músicas para lançar como singles. Temos quatro funanás. Vai ser lançado um daqui a dois meses, depois vem outro.

Não pensaram em lançar, por exemplo, uma compilação que celebrasse os 25 anos do grupo e onde pudessem incluir esses temas?

Sim, sim. Temos uma ideia, mas acho que este ano não vai ser possível lançar: um DVD historial, que conte a história desde o princípio até agora, e também com todos os videoclips do grupo. Vai ser uma compilação muito boa. Mas, se não dá para lançar este ano, vai ser no próximo ano.

Existe, nos Ferro Gaita, uma grande preocupação pelo lado social – criaram, por exemplo, uma escola de música para jovens, que ajuda a retirar crianças carenciadas das ruas. Como avaliam esse projeto? Quais têm sido alguns dos vossos melhores alunos?

A maior força do grupo é ter essa escola. Deixar um legado. Ensinar crianças. Já temos uma banda que já gravou um disco! Os putos já gravaram um disco, e um grande disco de funaná! O nome [deles] é Gaita Ferro...

Claramente inspirado em vocês...

Aquilo vai continuar, e isso é muito bom. Isso é que nos dá mais força para continuar.

Em 2007, o governo de Cabo Verde concedeu-vos a Medalha de Mérito Cultural, 1ª classe. O que significou, para vocês, esta distinção?

Um grande orgulho. Achámos que reconheceram o nosso trabalho.

O vosso trabalho, e a vossa importância para o país.

Nós representamos Cabo Verde, acho que para todo o mundo. Dá orgulho de continuar, mesmo.

O Bino já disse, por diversas vezes, que «música», em particular o funaná, «é vida e alegria». Nestes tempos de crise económica, de guerra, de tensões geopolíticas, faz falta às pessoas ouvirem mais música?

Faz, faz. Deu para ver, na pandemia. Houve uma paragem muito grande, dos festivais, mas nós continuámos a ensaiar e fizemos um live na horta do Iduíno, em São Filipe, para todo o mundo ver que nós não estávamos tão desanimados assim. Estar na música, no funaná, no nosso estilo, é um motivo de grande alegria.

Já tocaram com nomes como Cesária Évora, Tito Paris, Boss AC... Há algum músico com o qual ainda não tenham tocado e que esteja na vossa lista de desejos?

Olha, a gente já gravou com o Djodje, com o Zé Mário de Bulimundo... Hoje, para ver, o Iduíno e o Bino já gravaram, nestes dois meses aqui, com mais de dez artistas, do afrobeat, do afrorock, de batuko... Quando nos convidam a gente vai gravar.

Há alguém a quem tenham dito que não?

Não, nunca. Nós estamos de coração aberto, aberto para todo o mundo. 

Mas podia ter havido uma questão de falta de tempo, por exemplo.

Não, não. Se houver falta de tempo a gente combina uma outra altura. Mas quem chegar até nós, se é um artista que já tem nome ou que não tem nome, para nós tudo é igual.

O investigador e antropólogo Rui Cidra escreveu um livro sobre o funaná, onde explica que o género «assume diferentes significados para diferentes grupos sociais nas ilhas e na diáspora». Sei que, nos últimos tempos, surgiu uma espécie de variante, intitulada cotxi pó, que tem dividido opiniões: os jovens parecem gostar mais deste estilo, ao passo que outros dizem que este não é "funaná a sério". Em qual destes campos se posicionam os Ferro Gaita?

Olha, o nosso funaná é o funaná mesmo tradicional. E o cotxi pó veio aparecer assim com um ritmo mais quente. Por exemplo: você não consegue dançar três cotxi pós seguidos... Vinte minutos, trinta cada música!... [risos] No nosso funaná, você dança dez músicas nossas em cinquenta minutos. Há uma diferença muito grande. Mas acho o cotxi pó um estilo novo, de que gosto. Muita gente não gosta e muita gente gosta. Eu acho que a gente tem de gostar de tudo. Eu gosto de tudo. De morna, coladera, cotxi pó, reggae.

Para terminar, como é que olham para artistas como o Dino D'Santiago, para quem o funaná é o novo funk?

Para mim, o Dino D'Santiago é um dos melhores. Um artista cabo-verdiano que tem uma simplicidade muito grande, já atuou connosco em bares e festivais... E eu gosto do estilo dele, da maneira como ele canta. Para mim, o Dino está no top de Cabo Verde.

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