Quem o ouve falar neste documentário fica desarmado, tal é a clareza de pensamento do ideólogo. Sem possibilidades de seguir uma carreira de jogador devido a uma lesão grave sofrida durante uma partida enquanto ainda era estudante, para Ginghină, a culpa da sua carreira abortada não foi sua nem do jogador que lhe fez falta, mas da natureza do jogo, que enfatiza a concentração de jogadores e o contacto físico. Foi por isso que, mesmo tendo um modesto emprego enquanto funcionário público para o governo romeno em Vaslui, Ginghină manteve-se ligado à modalidade, continuando a pensar em novas formas de aperfeiçoar o desporto.
Ao fim de várias décadas a afinar e corrigir aquilo que considerou serem as maiores falhas do futebol, Ginghină chegou a um modelo que lhe pareceu ser o melhor para o futuro da modalidade. Para si, um campo deve ficar sem cantos, sendo mais vantajoso para os atletas porque, assumindo uma forma octagonal, deixa de ter becos sem saída, permitindo maior fluidez nas jogadas. Mas ele não se fica por aqui: considerando que o foco do jogo deve ser a bola e não os jogadores, o técnico concebeu uma regra em que cada equipa passa a estar a dividida em dois grupos, que não podem passar da sua respetiva metade do relvado, dividido na já existente linha de meio-campo. Assim, com papéis mais bem definidos e menor liberdade de movimentos em campo, os jogadores passariam a ter de circular mais a bola.
Este é só o início das suas teses, que vão tornando-se cada vez mais complicadas. As suas ideias podem parecer-nos um absurdo, e o próprio realizador desta película, Corneliu Porumboiu - responsável por filmes como “12:08 Leste de Bucareste” e “O Tesouro”, ambos premiados em Cannes - não esconde o seu ceticismo. Para lá de ficarmos sem pontapés de canto - pelo menos como os conhecemos -, com jogadores sem mobilidade, nunca mais veríamos um contra-ataque mortífero, a subida vertiginosa dos laterais ou a heroicidade de um ponta de lança voltar para trás e ajudar a equipa a defender um resultado tangencial. Qualquer resquício de fluidez posicional, do “Futebol Total” de Cruyff e Michaels, seria proscrito.
Parceiros de combate
Ginghină, no entanto, não está sozinho na sua diligência quixotesca. No outro extremo do globo, também há quem lute por transformações no futebol, mas escolhendo batalhas mais específicas. Tal é o pleito de Tim Farrell, australiano que há dez anos defende um modelo por si inventado para acabar com os tão temidos desempates por grandes penalidades, capazes de deitar por terra todo o esforço de uma equipa com apenas um remate mal medido. Foi o que aconteceu a Roberto Baggio na final do Campeonato do Mundo de 1994, e foi esse evento traumático que levou Farrell a procurar uma alternativa.
Em seu lugar, o australiano pensou no modelo “Attacker Defender Goalkeeper”, em que cada equipa escolhe cinco atacantes, cinco defesas e um guarda-redes para disputar dez rondas. Utilizando uma metade do campo, em vez do tradicional penálti, cada equipa tem cinco oportunidades para lançar um dos seus atacantes contra o defesa e o guarda-redes adversários, tendo 30 segundos para marcar golo. Se os jogadores a defender fizerem falta, nesse caso marca-se um penálti normal.
Este modelo, segundo o próprio, é melhor em várias vertentes, mas sobretudo porque é um teste mais justo quanto à capacidade técnica dos jogadores, já que diminui a vantagem injusta que a primeira equipa tem na marcação de grandes penalidades — há uma probabilidade de 60,5% de a primeira equipa a marcar penálti ganhar, pois a segunda já vai pressionada com o resultado da primeira. E se hoje em dia a marcação é grandes penalidades é alternada, antes ainda era pior: cada equipa marcava os cinco de seguida — e não causa o mesmo desgaste psicológico.
No seu website, não só estão gizadas as 34 regras que desenhou para esta proposta, como exemplos de como um destes confrontos se processaria. A ideia pode ser inaudita, mas não é assim tão bizarra, tendo em conta que, nos EUA, a North American Soccer League, nos anos 70 e 80, e a subsequente Major Soccer League, nos seus primeiros quatro anos de vida (1996–1999), empregaram um modelo em que o marcador partia a 32 metros da baliza e tinha de enfrentar o guarda-redes em jogo corrido. Farrell, todavia, prefere distanciar-se desta variante, abolida na viragem do milénio para ir de encontro ao modelo europeu.
Revista sucessivamente pelo próprio, a proposta de Farrell foi recebida com simpatia tanto pelo International Football Association Board (IFAB) - o órgão que define as regras estardizadas do futebol - como pelo ex-Secretário Geral da FIFA, Jérôme Valcke, mas, em ambos os casos, o elogio ficou-se por aí. No entanto, Farrell não desiste. Ainda este ano, deu uma entrevista, onde prometeu que ia apresentar uma versão atualizada depois deste campeonato do mundo, pelo que o sonho não morreu.
Tudo teve de ser inventado
A mera possibilidade de dedicar uma vida a obsessivamente refinar as regras e os processos de um jogo sem obter reconhecimento nem conseguir que os seus projetos venham a ser materializados parece exaustiva e ingrata. Mas apesar da triste obscuridade de Ginghină ou das frustrações de Farrell, a incapacidade de implementar as suas regras não quer dizer que o futebol em si seja incapaz de se atualizar e de abraçar mudanças, pelo contrário.
Desde que as primeiras “Leis do Jogo” foram levadas à estampa em 1863, a partir de uma reunião numa taverna maçom em Londres, o “desporto-rei” passou por inúmeras etapas e retoques, muitos dos quais tomamos hoje por garantidos e que não são tão antigos assim. Se nos anos seguintes a este marco foram sendo implementadas pedras de toque da modalidade, como pontapés de baliza (1869), pontapés de canto (1872), a presença de um árbitro em campo (1891) ou a grande área (1902), outras chegaram bem mais tarde.
É difícil conceber o jogo de outra forma atualmente, mas os cartões amarelos e vermelhos apenas foram introduzidos no Campeonato do Mundo de 1970, 107 anos depois de se instituir quais os casos merecedores de punição em campo. Até então, os árbitros tinham de explicar aos jogadores qual o castigo e as razões para a sua aplicação, o que, num palco internacional onde várias nacionalidades com diferentes línguas se defrontam, descambava numa confusão babélica.
O Campeonato do Mundo de 1966, em Inglaterra, pode ter sido o de Eusébio, mas também foi aquele onde o árbitro Rudolf Kreitlein precisou que a polícia escoltasse o argentino Antonio Rattín para fora do campo nos quartos de final contra a seleção anfitriã, em Wembley, porque este, de carácter tempestuoso, se recusou a sair por não compreender as razões para a sua expulsão - tinha sido um olhar. PA solução foi pensada pelo colega Ken Aston, que também estava no torneio enquanto oficial e já tinha sobrevivido a um dos mais violentos jogos da história do desporto, entre Chile e Itália, na apropriadamente chamada “Batalha de Santiago” de 1962. Inspirado pela sinalética colorida de um semáforo, o árbitro inglês criou os cartões, que acabaram com as barreiras linguísticas e se instituíram universalmente no futebol.
Também as balizas foram sofrendo alterações. Objetivo último de qualquer equipa, seja para visá-las ou defendê-las, desde 1863 que não veem a sua largura mudar - aproximadamente 7,3 metros - mas a barra só foi universalmente instituída em 1882, apesar de alguns ensaios prévios. Até lá, fita e cordas eram a solução. Também as redes surgiram mais tarde, a 1891, e apenas devido a inúmeros casos controversos em que o árbitro não conseguiu perceber se a bola tinha entrado pela baliza ou não - se bem que ainda hoje há margem para erro. Contudo, foi apenas em 1987 que se deixou de ver postes quadrados nos relvados, compulsoriamente substituídos por exemplares de forma elíptica, sendo que no ano seguinte passou a ser obrigatório serem integralmente pintados de branco. Se ainda hoje é frustrante ver uma bola a ressaltar caprichosamente da baliza em vez de alojar-se nas suas redes, imagine-se quando esta era composta exclusivamente em ângulos de 90 graus. Houve várias vítimas desta estrutura arcaica, mas a maior é capaz de ser o Saint-Etienne, que num mítico encontro com o Bayern de Munique na final da Taça dos Campeões Europeus de 1976, em Hampden Park, viu dois disparos dos seus jogadores esbarrarem nos ferros, algo que ainda hoje os adeptos dos "Le Verts" consideram ter sido a causa da sua derrota.
Os próprios desempates por grandes penalidades foram uma solução para um problema muito mais grave que os precedeu. Se já existe enorme arbitrariedade em decidir um jogo com sucessivos disparos à baliza que nada têm a ver com a forma como uma equipa joga ou está montada, o que dizer sobre fazê-lo através de cara ou coroa. Assim se desenguiçaram empates em casos extremos até 1970. Até então jogavam-se duas mãos e, mesmo com o estabelecimento das regras dos golos fora em 1965 (sistema que pode estar em vias de extinção), em caso de igualdade, procedia-se a um terceiro jogo, em terreno neutral. Se este também não fosse suficiente para determinar um vencedor, então aí procedia-se a uma competição de cara-ou-coroa. Foi assim, por exemplo, que o Liverpool eliminou o Colónia na edição 1964/1965 da Taça dos Campeões Europeus, que o Celtic suplantou o Benfica na prova de 1969/1970 da mesma competição ou que a Itália derrotou a URSS no Campeonato Europeu de 1968 .
Mais recentemente, duas alterações, que nem 30 anos têm, já fazem parte integral do jogo, como se estivessem incluídas no primeiro rascunho das “Leis”: os atrasos para os guarda-redes e a mais recente definição de fora de jogo. A primeira foi simples, se bem que complicada de aceitar para muitas equipas. Como os passes para o guarda-redes se tinham tornado num flagelo epidémico pela perda de tempo que significavam, em 1992 passou a ser proibido um guardião agarrar com as mãos qualquer passe voluntário da sua equipa feito com os pés. Já a segunda tem toda uma história para lembrar.
Sendo uma das mais confusas regras a explicar sobre um jogo de futebol a um estreante, a atual regra do fora de jogo dita que um jogador não pode receber a bola ou interferir numa jogada se “qualquer parte da sua cabeça, corpo ou pés estiver no meio campo adversário (excluindo a linha de meio-campo)” e “mais perto da linha de baliza adversária do que a bola e o penúltimo adversário”. O que isto quer dizer na prática é que, regra geral, se um jogador receber ou tocar na bola estando entre o último defesa da equipa contrária e o último adversário (regra geral, o guarda-redes), está fora de jogo.
Porém, a regra não foi sempre assim, e isso foi alterando profundamente o jogo. Só em 1990 é que se definiu que um jogador podia estar em linha com o último defesa, a regra mais recente antes dessa datava de 1925 e dizia que o jogador tinha de se posicionar antes do corpo do seu adversário. Mesmo assim, esta adenda dos anos 20 já era muito progressista, tendo em conta que foi pensada para facilitar o ataque e resultar em mais golos. Antes disso, o entendimento geral é que só se podia receber a bola antes dos três ou quatro (dependia das universidades onde se jogava) últimos jogadores e a regra original de 1863 obrigava jogar como no rugby, podendo-se apenas receber a bola atrás ou ao lado do portador da mesma. Se mesmo por texto for difícil de perceber, um vídeo se calhar explica.
Pelo caminho, ficaram várias medidas falhadas, soluções honestas que não tiveram o efeito desejado. A mais flagrante foi o Golo de Ouro, regra que ditava que, em caso de empate ao fim de 90 minutos, as equipas jogariam o prolongamento e quem marcasse golo automaticamente venceria o jogo. Introduzido oficialmente pela FIFA em 1993 para impedir que as equipas se escudassem num estilo de jogo defensivo durante o prolongamento e para evitar o recurso às grandes penalidades, teve o efeito oposto, já que toda a gente sabia que bastava um passo (ou melhor, passe) em falso para deitar tudo a perder, ainda que nos tenha dado momentos inesquecíveis, como as finais ganhas pela Alemanha no Euro '96 ou a França no Euro 2000. Outros exemplos foram a tentativa de fazer os lançamentos de linha lateral com os pés, acabar com o fora de jogo durante as marcações de livre e a possibilidade do árbitro poder fazer a marcação de um livre avançar 10 jardas (9,15 metros) em caso de comportamento incorreto da equipa punida.
Os ajustes da era moderna e o que o futuro pode reservar
Nas últimas duas décadas, o futebol entrou numa fase de consolidação, não sendo alvo de alterações de peso, à exceção da cada vez maior inclusão de tecnologia para tornar, pelo menos em teoria, o jogo mais justo. Primeiro foi a tecnologia da linha de golo, medida consensual, aprovada em 2012; depois, ao fim de muita antecipação, chegou a autêntica pedrada no charco que foi o videoárbitro (também conhecido como VAR), que ainda não foi universalmente aceite e que se mantém um ponto contencioso: necessária inovação para garantir a verdade desportiva para uns, intrusiva medida que mata o ritmo de jogo e que não resolve as falhas de decisão dos árbitros para outros.
Contudo, são cada vez mais as vozes a pedir por mudanças radicais do desporto. Uma das primeiras foi Sócrates, velha glória brasileira, pensador dentro e fora do campo, que desabafou, num livro que não chegou a editar, que falta espaço ao futebol moderno, defendendo uma redução para nove atletas por equipa e que “assim, estaríamos retornando aos anos 70", período em que os jogadores não tinham tanta disponibilidade física e havia mais espaço para jogar, "o que permitiria um jogo muito mais bonito”.
Outra é a de Marco Van Basten. Tendo deixado marca enquanto lendário avançado, o holandês pretende fazer o mesmo fora das quatro linhas enquanto diretor para o desenvolvimento técnico da FIFA. Nos últimos anos, o ex-Ajax e Milan tem defendido uma autêntica remodelação do futebol, clamando pela substituição dos cartões amarelos por suspensões de 5 a 10 minutos, pela imposição de apenas os capitães de equipa serem autorizados a falar com o árbitro, pela cronometragem dos últimos 10 minutos da partida e pelo fim da regra do fora de jogo, a bem da espetacularidade de uma modalidade que, a seu ver, se tem tornado cada vez mais defensiva e parecida com o andebol.
Esta estas são algumas das ideias mais extremas, mas são só a ponta do icebergue do tem estado em discussão junto das instâncias oficiais. Em 2016, o IFAB lançou o documento Fair Play! onde propõe discutir a possibilidade de reduzir o tempo de jogo para uma hora, com duas partes de 30 minutos, com a lógica de tornar os jogos mais intensos e diminuir as perdas de tempo, ideia que tem vindo a reunir adeptos. Outras ideias incluem a possibilidade de os jogadores poderem passar a bola a si mesmos na marcação de cantos e livres, os pontapés de baliza poderem ser marcados com a bola corrida e os árbitros apenas poderem apitar para o intervalo ou para o fim da partida quando o esférico sair de campo.
Já algumas das medidas pensadas pelo IFAB têm sido introduzidas nos últimos dois anos. Antes do Euro 2016, o IFAB procedeu a uma revisão das “Leis do Jogo”, tendo não só revisto e emagrecido o texto de 22.000 para 12.000 palavras para uma mais fácil e clara leitura, como aprovado novas regras. Estas incluem, entre outras, poder passar em qualquer direção no pontapé de saída, um jogador não precisar de abandonar o campo para tratamento se sofreu falta para amarelo ou vermelho (para não beneficiar a equipa infratora em superioridade numérica), ou os árbitros poderem dar cartões vermelhos antes do jogo começar (podendo a equipa substituir o jogador expulso mas perdendo uma substituição). Mais recentemente, já começou a ser possível fazer uma quarta substituição durante o prolongamento.
O que o percurso do futebol nos tem demonstrado é que é imprudente descartar as ideias de entusiastas como Ginghină e Farrell, porque, apesar das suas bases fundamentais se manterem as mesmas, o futebol de hoje é muito diferente da sua versão oitocentista. Se se tivessem mantido as regras e mentalidade da viragem do século XIX para o XX, em que as equipas jogavam com formações “2-3-5” e passar a bola era visto como uma demonstração de fraqueza para evitar o contacto, nunca teríamos o "tiki-taka", o "falso 9" ou o médio vagabundo.
A verdade é que “Infinite Football” não é apenas sobre futebol, é um relato tragicómico sobre a determinação inquebrantável de seguir um propósito, sobre o potencial da imaginação e criatividade humanas, sobre a busca pela perfeição que, se bem que inatingível, permite abrir horizontes e inspirar os demais. A ideia de Ginghină é louca, sim, mas é uma ideia, original e ponderada ainda por cima, e essas são raras e a ter em conta. Para além disso, o romeno não tem a arrogância de considerar que a sua invenção atingiu o plateau do futebol. O título do documentário é devedor à filosofia do frustrado técnico. As alterações que propõe para o jogo são as bases duma versão 2.0 do futebol, idealizando que se possa continuar a refinar o jogo continuamente, sendo um processo, lá está, infinito. Sem pessoas como ele talvez o futebol não tivesse evoluído e assim nunca teríamos chegado ao atual estado de coisas: à espera do fim de semana para ver a redondinha a rolar.
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