Não devia ter mais que seis, sete anos, e disse-o assim, cheia de sorriso, afro considerável a crescer-lhe na cabeça e sotaque de Vera Cruz: “eu adoro o Gilberto Gil!”, perante o olhar de um pai babadíssimo e de uma empregada de balcão surpreendida. Gilberto Gil, como todos os grandes artistas da sua geração, não pertence apenas à sua geração. Pertence aos filhos, aos netos, aos bisnetos, a todos os vindouros. A todos os que algum dia lutaram pela liberdade, seja de pensar ou de dançar.
Como Caetano, esteve preso. Também como Caetano, pegou na língua nossa, juntou-lhe ritmo samba e a audácia do rock n' roll, fez discos soberbos - “Expresso 2222”, por exemplo – e fincou o seu nome nessa coisa chamada tropicália.
Por não pertencer apenas à sua geração, decidiu fazer-se acompanhar pelas mais novas: a banda, em palco, nesta nova (derradeira?) digressão, é composta por dois filhos (Bem Gil e José Gil) e por dois netos (João Gil e Flor Gil). No centro, o patriarca, 81 anos de uma vida cheia de histórias, algumas das quais foi contando entre canções. Histórias, e canções, que merecem aplausos de pé, como aconteceu assim que entrou, pouco depois da hora marcada e de uma primeira parte cortesia de Bruno Capinan.
O violão cai-lhe nas mãos e de imediato os dedos dançam pelas cordas. 'Expresso 2222' enche o Coliseu dos Recreios, o público entoando cada número, poucas as cadeiras vazias. Vieram vê-lo sobretudo os seus, que não deixaram passar a oportunidade de matar saudades de casa. Saudou os fãs portugueses e foi um quase silêncio. Saudou os brasileiros, e centenas de gargantas tomaram de assalto a sala. “Hoje o boa noite é na mesma língua”, brincou, lembrando que antes destas três datas em Portugal passou por países como Itália, Bélgica, França ou Inglaterra, onde esteve exilado durante a ditadura militar.
Viajando até 'Viramundo' e sua glossolalia selvagem, Gilberto Gil mostrou que a idade, por vezes, não significa mais que um número num bilhete de identidade. Há ali uma força ainda inabalável, um calo que só se consegue obter quando a joie de vivre é tanta. 'Chiclete Com Banana', logo a seguir, foi o primeiro de vários sambas que prometeu apresentar nesta primeira noite, e os quais tem apresentado ao longo de toda a digressão. Com direito a aulinha: “o samba e o baião são os dois géneros musicais que mais formaram a canção pop no Brasil”, explicou.
De 'Upa, Neguinho', samba de Edu Lobo que foi um dos primeiros grandes êxito de Elis Regina, saltou para 'Ladeira da Preguiça', composta na Londres que foi sua segunda casa. 'É Luxo Só' e 'João Sabino' seguiram-se-lhe, soando tão frescas como outrora nos soaram, quando as escutámos pela primeira vez nos verdes anos da formação do gosto. Demasiado frescas, até: ficamos sem perceber se soam assim porque são intemporais, ou se soam assim porque Gilberto Gil se soube inventar e reinventar, transformar-se e transformá-las, trazer o passado para o agora.
A resposta foi dada imediatamente a seguir, quando 'Garota de Ipanema' ganhou, nas suas mãos, um instrumental reggae e deliciou os presentes com a voz da neta Flor, também teclista. Nascida em Nova Iorque, Flor teve direito a escolher a canção seguinte no alinhamento: 'Moon River', tornada famosa por Audrey Hepburn, com o avô a acompanhá-la no violão. Bento, um outro neto, subiu momentaneamente ao palco para tocar 'Tempo Rei', antes da chegada da eletricidade. 'No Woman, No Cry', de Bob Marley, em versão bilingue (com Gil intitula-se 'Não Chores Mais'), voltou a fazer a ponte entre o Brasil e a Jamaica.
Num concerto pleno de referências, uma não podia faltar: Gal Costa, lembrada com 'Esotérico' e com as vozes vindas da plateia. Falta pouco para o primeiro aniversário da sua morte e ainda dói, como não podia deixar de doer. Incompreensível a falta que ela nos faz e os gritos, no final, por uma Palestina livre – nada contra a mensagem, apenas contra o timing. 'Cérebro Eletrónico', composta enquanto Gilberto Gil esteve preso e com o auxílio de um sargento, que à altura lhe forneceu um violão, trouxe um funk modernista e arrojado, antes de uma breve incursão pelo francês de 'Touche Pas À Mon Pote', slogan do SOS Racismo em França.
O melhor estava, porém, guardado para o final. 'Back In Bahia', um solo avassalador de João Gil, tirou gente das cadeiras; permaneceriam de pé durante mais algum tempo, até porque logo a seguir veio 'Andar Com Fé' e 'Palco', para o encore reservada a magia de 'Aquele Abraço' e 'Toda Menina Baiana'. Saltou à vista a dancinha em 'Aquele Abraço', que muitos gritos recolheu, e aos ouvidos a ênfase que Gilberto colocou no verso pra você que me esqueceu. Mas há alguém que o tenha esquecido, ao seu samba feito rock ou rock feito samba? Diremos que não, e diremos o mesmo que um dos técnicos de som, depois das luzes se acenderem e do início da debandada geral: “ele fala baixinho, mas quando canta!...”. E precisaremos sempre de o ouvir cantar, tal como às vezes precisamos de um abraço.
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