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2
A VELHOTA
Triiiim. Triiiim. Triiiim.
– Acorda, acordaaa!!
As garras de Whisky batem incessantemente na janela da sala. Massimo abre um olho e depois o outro. Na noite anterior, adormeceu no sofá e agora ouve ao longe o som do telemóvel a tocar. Quem sabe onde terá ido parar...
À sua frente, na mesa baixa, está um copo com um restinho de vinho do Porto. «Ah, então é por isso que estou com esta dor de cabeça», pensa.
Entretanto, o telemóvel parou de tocar: é evidente que quem ligou não tem a mesma paciência de Whisky.
– E depois ainda têm a coragem de dizer que nós, gatos, estamos sempre a dormir...
Na verdade, são onze horas e Massimo teria continuado a dormir se não fosse o telemóvel e os miados de Whisky. Levanta-se e vai abrir-lhe a janela, enquanto resmunga:
– Podias ao menos deixar-me em paz ao domingo de manhã!
Ainda não consegue pensar com clareza sobre o que aconteceu algumas semanas antes com a Clio: teve a impressão de que era mais fácil compreender um felino do que um humano e sentia dificuldade em livrar-se dessa sensação. Whisky salta do parapeito e passa rapidamente entre as pernas de Massimo para lhe mostrar que é tudo verdade.
– Domingo, domingo... Achas que isso muda alguma coisa para mim? É um dia como outro qualquer. Ou melhor, não, não é um dia como outro qualquer, porque esta noite pensei que se ajudaste a Clio, então podes ajudar muitos outros «a-migos» (1). Ah, ah, ah! A-migos, percebeste?!
Massimo não está acostumado a ter alguém que lhe fale tão rápido de manhã e que entra na sua casa como se fosse o dono, pelo que lhe lança um olhar de desagrado.
– E, neste caso, nem sequer temos tempo a perder.
Whisky segue Massimo até à cozinha e com dois saltos chega ao frigorífico.
– Conheces a dona Lina da rua dos Cravos?
– Mmm...
Massimo tenta recordar-se, mas o nome não lhe diz nada.
– É uma senhora idosa que todos conhecem aqui no bairro porque nunca se recusou quando foi preciso ajudar, hospedar alguém, tricotar cachecóis para vender no Natal para a caridade... – diz Whisky. – As pessoas gostavam muito dela e beneficiaram da sua generosidade, mas sabes como é, os humanos têm memória curta. Às vezes mais curta do que a dos felinos! A dona Lina adoeceu há alguns meses e, desde então, está acamada, mas quase ninguém passa por lá para a visitar ou se preocupa com ela.
– Deixa-me adivinhar... Queres que eu e a Lisa encontremos um gato no gatil para lhe fazer companhia?
Whisky lança um sorriso malicioso.
– Na verdade, a dona Lina tem uma sorte imensa, uma gata fantástica ao seu lado. E há dezoito anos!
– Dezoito anos?! Mas como é possível, Whisky?
– É raro chegarmos a essa idade, mas acontece. A Dody vive com ela desde pequena e teve sempre uma saúde de ferro, assim como a dona Lina, até há pouco tempo. Mas, agora, a única preocupação da dona Lina é que a Dody possa acabar num gatil se ela tiver de ir para um lar de idosos ou ser hospitalizada, e isso é algo que ela nunca se perdoaria.
– E como é que sabes todas estas coisas?
– Bem, eu ando por aí e os gatos que encontro confiam em mim. Conheço bem a Dody, chamamos-lhe a «Velhota», sabias? Como já não a via há algum tempo, andei por aí a perguntar e acabei por descobrir o que se passava com ela.
– Basicamente, estás a pedir-me para lhe encontrar uma nova família. Claro, posso pôr alguns anúncios online e tratar de tudo. – Na verdade, estou a pedir-te que consideres ser a nova família dela.
– Eu?!
– Não faças essa cara. Não to diria se não achasse que era o melhor para ela e para ti.
– Mas eu... OK, agora consigo compreender-vos, mas... Isto é tudo novo para mim. E se, a dada altura, deixar de ouvir as vossas vozes? E se perder o emprego e tiver de sair de Novate? Sabes que gosto de gatos, mas acho que não é o momento certo, não conseguiria cuidar dela como deve ser. E, sendo velhinha, já estou a imaginar a quantidade de cuidados de que vai precisar e quanto irá custar-me. E não sei se aguentaria outro adeus.
Massimo olha pela janela enquanto pronuncia estas palavras. A sua voz está trémula e os olhos brilhantes ao recordar Red.
Whisky salta para o parapeito da janela e aproxima uma patinha da mão de Massimo.
– A Velhota já passou por muitas estações, mas acredita, está em melhor forma do que eu. É pequenina, muito meiga, compreensiva, uma gata que já passou por muito na vida e que sempre deu sábios conselhos a nós, mais jovens. A sua experiência pode ser muito útil.
Massimo suspira.
– De facto... às vezes, conseguir ouvir o que dizem não é suficiente para perceber como vos ajudar.
Ri-se enquanto acaricia Whisky e lhe faz festas na cabeça.
– E depois, a Dody já tem uma certa idade, no fim de contas só precisa de um lugar quente para dormir o dia todo. Não como tu, que nunca ficas quieto!
Whisky pisca-lhe o olho.
– Já me conheces o suficiente para perceberes que nunca conseguiria recusar, não é? – pergunta finalmente Massimo, soltando um suspiro.
O céu está cinzento, já não chove, mas o asfalto está cheio de poças do temporal da noite anterior. Os reflexos dos edifícios na água criam jogos de sombras que fascinam Massimo enquanto caminha em direção à rua dos Cravos. No dia anterior telefonou a Edoardo, o filho da dona Lina, explicou-lhe que tinha tomado conhecimento da situação e perguntou-lhe se poderiam encontrar-se: talvez juntos conseguissem arranjar uma solução temporária para a Velhota e tranquilizar a senhora. Whisky, que conhece a dona Lina através das histórias da Dody, sugeriu a Massimo que lhe dissesse a verdade sobre o poder especial que adquiriu, mas não o con- venceu, receando passar por louco.
Chegado diante de uma vivenda rosa-antigo, toca à campainha. Edoardo abre-lhe a porta. Vestindo um fato elegante, com o nó da gravata desapertado, fala rapidamente ao telemóvel enquanto levanta a mão para o cumprimentar.
– Sim, entrego-lhe a apresentação até às quatro horas, como combinámos ontem. Se me enviar as alterações, aplico-as rapidamente e devolvo-as até amanhã de manhã.
Massimo também faz um gesto de cumprimento e sorri, como quem diz:
– Sem problema.
Entretanto, Edoardo aproxima-se do portão e desliga a chamada. – Olá, Massimo, muito prazer. Desculpe-me, estou atolado em trabalho e não me dão descanso. Só me faltava mais isto, numa altura destas!
– Olá, Edoardo, o prazer é meu. Não se preocupe, entendo perfeitamente...
– Preferi sair porque queria falar consigo um bocado sobre a minha mãe sem que ela nos ouvisse. Basicamente...
O toque do telemóvel interrompe-o, ele olha para o ecrã, suspira e coloca-o em silêncio.
– Nada que não possa resolver mais tarde.
Edoardo olha para uma grande janela no rés-do-chão.
– Basicamente, como lhe referi ontem, a minha mãe está acamada há algumas semanas, desde que saiu do hospital. Já tem uma certa idade... E apesar de a doença progredir lentamente, ela está cansada e precisa de assistência contínua. E sabe perfeitamente que esta situação não vai durar muito mais tempo. Está completamente lúcida! Foi precisamente por isso que, com o consentimento dela, comecei a procurar uma vaga num lar de idosos. No entanto, para já, estamos na lista de espera.
– Não é a primeira pessoa que me fala desta situação. Aliás, disseram-me que a dona Lina era uma pessoa muito ativa, conhecida aqui no bairro, sempre disponível para os outros...
– Sim, olha, um furacão.
Massimo sorri ao ouvir este termo: é o mesmo que associam sempre a ele, porque não consegue estar parado nem com a cabeça nem com as pernas.
– É precisamente por isso que ela sofre ainda mais com esta solidão. No passado, gastou muita energia a ajudar as pessoas, nunca disse que não quando se tratava de ajudar alguém. E agora... Não pensava que a iria encontrar tão abandonada, parece que subitamente se tornou invisível aos olhos de quem pensei que lhe estaria grato. Ou, pelo menos, daqueles que pareciam gostar dela. Se não fosse a Dody na vida dela, acho que não teria encontrado forças para voltar do hospital para casa.
A descrição de Edoardo provoca uma onda de nostalgia em Massimo: lembra-se de ter sentido o mesmo em criança quando Red tornava os seus dias especiais; voltava da escola a correr para poder passar todo o tempo possível com ele, e, desde que o gato tinha aparecido, os momentos sem os pais ou os amigos já não lhe pesavam. Red estava sempre lá e a amizade com ele deu uma nova luz aos seus dias.
– Vem, vem, apresento-te a Dody e a minha mãe. Estão as duas a descansar, mas enquanto isso preparo-te um café.
Sobem as escadas, entram em casa e depois numa pequena cozinha logo à direita. Edoardo começa a preparar o café na cafeteira e continua o seu relato.
– Sabes, também gosto muito da Dody, não queria que pensasses o contrário. Já está aqui há dezoito anos, imagina! A ideia de a ver num gatil não me deixa nada feliz. Mas vivo em Dublin há quinze anos, viajo muito por causa do trabalho, tenho horários absurdos... Não é viável para mim organizar a mudança dela para o estrangeiro, é complicado, e com a idade que ela tem, ainda mais...
Massimo acena com a cabeça e diz que entende. Dá-lhe a impressão de que, vivendo no estrangeiro há tantos anos, Edoardo se convenceu de que só a Velhota podia dar o amor de que a dona Lina precisava. E que é por isso que ela lhe é tão apegada.
Enquanto tomam café, Edoardo conta-lhe como Dody entrou na família.
– Os meus pais estavam de férias em Molise e deram por eles a alimentar esta gatinha malhada que aparecia pontualmente à porta da casa que tinham alugado... Depois de três semanas juntos, não conseguiram deixá-la lá, meteram-na no carro e trouxeram-na para cá.
– Deve ser mesmo uma força da natureza se ainda está convosco depois de todos estes anos! – responde Massimo.
– Ela é pequenina, mas para a minha mãe é todo o seu mundo. Acreditas que ela não está preocupada com a própria saúde, mas só pensa no futuro da Dody? Anda, vou apresentar-ta, disse-lhe que vinhas.
– De qualquer forma, ainda não sei se poderei ficar com a gata, espero não ter dado falsas esperanças... Não estou numa situação fácil. Massimo repete para si mesmo que está ali porque a isso foi obrigado pelo Whisky, mas, obviamente, não o pode dizer de forma explícita.
– Ora essa, era só o que faltava. Não tinha a intenção de te pressionar, fico muito contente que tenhas vindo e que a minha mãe possa falar contigo.
Os dois homens encaminham-se pelo corredor. A porta do quarto da dona Lina está entreaberta, Edoardo abre-a lentamente e ficam ambos na soleira a observar a cena: a senhora idosa está deitada, com as costas apoiadas nas almofadas contra a cabeceira e uma gata magrinha estendida no seu peito. Olham-se nos olhos enquanto Lina a acaricia e lhe fala.
– Não precisas de te preocupar, minha Velhota. Passámos anos maravilhosos juntas e esta casa não teria sido a mesma sem ti. Se temos de nos separar agora é só porque não consigo suportar a ideia de partir sem saber se ficas em segurança...
Massimo sente-se como o espectador de um diálogo íntimo, sem que, por instantes, consiga deixar de permanecer imóvel.
– Sabes, a minha mãe sempre falou com ela, não enlouqueceu de repente... – murmura Edoardo, como se justificasse as palavras que saem da boca da mãe.
– Mas vamos encontrar-nos de novo, sabes? Ah, sim, vamos encontrar-nos de novo – continua ela. – Prometo-te que estaremos juntas e em melhor forma do que agora! Voltarás a dar os saltos que davas há alguns anos e eu andarei de novo de bicicleta. Mas não tenhas pressa de me voltares a ver, as nossas aventuras podem esperar. Tens de continuar a viver mesmo sem mim, tens de o fazer por mim: podes fazer outras pessoas felizes e também tu ainda podes ser feliz...
A Dody esfrega afetuosamente o focinho nela e Massimo fica com a impressão de que a dona Lina tem o mesmo dom que ele. Talvez ela consiga comunicar com a Velhota, o que explicaria a sua relação tão próxima. Apesar da diferença de idade, percebe de imediato que em comum com a mulher, além do caráter forte descrito pelo filho, tem também um lado oculto mais doce e disponível, sempre pronto a ajudar sem esperar nada em troca. Acabou sozinha com a sua velha amiga gata, dizia sempre ao filho distante que não precisava de nada, que não voltasse e que vivesse a sua vida; também Massimo fazia o mesmo, mantendo à distância aqueles que o amavam.
– Olá, mãe, chegou o Massimo, de quem te falei ontem.
Edoardo dá alguns passos em direção à cama, seguido por Massimo. Aproximam-se e Massimo finalmente consegue ver o focinho de Dody, que, ao ouvi-los chegar, se vira lentamente, embora permanecendo deitada no peito da dona Lina. A sua constituição é esguia, com a típica pelagem malhada dos gatos europeus e algumas falhas devido à idade; à volta dos bigodes e do nariz, a passagem dos anos deixou-lhe um rasto claro, da cor da neve, que lhe confere um ar doce e sábio. No entanto, os olhos são despertos, brilhantes, cor rubi. Fecha-os e volta a abri-los, mostrando sentir-se tranquila, mesmo na presença de um estranho.
A gata, como que capaz de compreender a fragilidade da sua amiga humana, é tão magra que parece não ter peso, mas a sua presença no corpo da idosa parece querer transmitir-lhe o seu respirar, além de calor e amor.
O olhar que Massimo e a Velhota trocam naquele momento diz mais que mil palavras. É como se ela tivesse reconhecido um semelhante e confiasse nele instintivamente; ele, por sua vez, emociona-se com aqueles olhos pequenos e vivos e sente já uma espécie de ligação com a gata. Um pouco como lhe aconteceu quando deparou com o Whisky.
Edoardo aproxima uma cadeira da cama e convida Massimo a sentar-se.
– Ela já não ouve muito bem, por isso é melhor falar-lhe em voz alta – diz, antes de os deixar sozinhos.
– Então és o Massimo. Esperava ver chegar um anjo com caracóis loiros e, em vez disso, estás aqui tu, todo tatuado... Pelos vistos, a minha Velhota não se incomodou e ela tem mais intuição do que eu para as pessoas boas.
Lina sorri timidamente e continua a passar a mão magra pelo dorso da Dody. Dada a proximidade, Massimo consegue agora ouvir o ronronar e sentir a energia que flui entre a mulher e a sua amiga felina.
– Dona Lina, contaram-me o que lhe aconteceu e gostaria de poder ajudá-la...
– Jovem, não precisas de te preocupar comigo. Tive uma vida longa e não posso queixar-me de nada. Antes desta terrível doença, fiz tudo o que desejei. Mas não queria ir-me deste mundo sem encontrar uma família para ela... Parte-me o coração pensar que a deixarei sozinha. Consigo cuidar de mim mesma sem ninguém ao meu lado, mas ela não!
A gata também parece compreender estas palavras, começando a pressionar delicadamente com as patinhas. É uma espécie de abraço peludo que pretende congelar o tempo e a doença da sua amada humana, para nunca ter de a abandonar.
Massimo, com os olhos brilhantes, agarra impulsivamente a mão livre da dona Lina e diz-lhe:
– Não precisa de ter medo, encontraremos um lugar seguro para a sua Velhota.
– O gatil é também um lugar seguro, se for preciso, mas não é o que desejo para ela. Saber que ela acabará lá seria para mim como morrer duas vezes – admite suavemente Lina, desviando o olhar da gata por pudor.
Massimo gostaria que Dody falasse, mas ela permanece em silêncio, apenas o seu ronronar discreto preenche o espaço. No entanto, sempre que procura ouvir o seu instinto, sente-se já ligado a ela; as emoções que o invadem ao observar aquela cena – ele segurando a mão de dona Lina, ela acariciando o dorso pelado da gata – fazem-no sentir-se parte de uma família, com a Lina no meio a tentar uni-los.
Quase sem força, a idosa retribui o aperto, com a mão quente e trémula. Continua a falar:
– Sei que estou a pedir a alguém que não conheço para cuidar do que é mais precioso para mim. Mas devo confessar que... a vida ensinou-me que nem sempre quem conheces há mais tempo se revela o mais bondoso contigo. Sinto que posso confiar em ti e vejo que até a Velhota, que está aqui tão tranquila, no fundo me dá razão.
A Velhota fecha os olhos e reabre-os, em sinal de aprovação.
– Sabe, sinto há algum tempo que tenho uma ligação especial com os gatos. Alguma vez pensou que poderia realmente entender a Dody?
– Olha, Massimo, passámos tantos anos juntas que eu ficaria surpreendida se fosse diferente. Não precisamos de palavras e ela percebe tudo, muito mais do que nós somos capazes. Desde que voltei do hospital, ela está sempre ao pé de mim, muitas vezes aqui mesmo, no peito ou na barriga. Sabe que me aquece e que não temos muito tempo pela frente. E sinto que lhe devo este último gesto de amor, encontrar-lhe um lugar onde possa ficar enquanto ainda estou lúcida e posso cuidar dela. O Edoardo, como viste, está demasiado ocupado com as suas coisas.
Massimo acena com a cabeça concordando e estende a mão em direção ao focinho da Velhota para se dar a conhecer melhor.
– E tu? Falavas de uma ligação especial... Não achas que eles compreendem tudo e que tu os compreendes também?
Massimo congela, chocado com a possibilidade de a sensibilidade de Lina ter-lhe permitido descobrir o seu dom. Murmura uma resposta vaga.
– Não precisas de te esconder de mim – continua ela. – Deve ser a idade, todos os anos que já vivi... mas quando me encontro diante de algo especial, reconheço-o.
O que Lina diz surpreende-o, mas ao mesmo tempo tranquiliza-o. Sente que pode ser completamente ele próprio e por isso começa a falar sobre o seu encontro com Whisky e o dom incrível que lhe permite ajudar os gatos. Abre-se como nunca o tinha feito antes, sem medo de ser julgado.
– Mas acredita em mim? Não acha que sou maluco? – acrescenta finalmente.
– Não só acredito em ti, como também acho que serias um companheiro perfeito para a minha Velhota. Conseguirias compreender as suas necessidades imediatamente. O facto de conseguires ajudar gatos a sentirem-se melhor... Não imaginas quanto me toca o coração. Gostaria de estar no teu lugar para tentar retribuir um pouco do amor que eles me deram ao longo da vida.
As palavras da dona Lina e a vaga lembrança de como Red o fazia sentir em criança convencem Massimo de que a Velhota poderá ficar com ele, e a promessa de cuidar da Dody é um raio de luz nos dias sombrios da dona Lina. A idosa, emocionada e sorridente, começa logo a dar recomendações: a Velhota adora que falem com ela, é uma grande conversadora, por isso o Massimo não deve ignorar este aspeto (e como poderia ele, com o poder que tem?); gosta de ter um cantinho ao sol onde possa dormir à tarde; prefere peru a frango; adora festas na cabeça, mas não que lhe toquem na cauda.
» Custa-me pedir-te também isto, mas tenho de tentar, caso contrário sei que me arrependeria de não o ter feito. – Lina suspira. – Poderias levar a Dody... já hoje?
A Velhota fica um pouco agitada: não fala, mas compreende claramente a situação.
– Sinto que a energia me está a faltar, cada dia mais. Seja numa casa de repouso, seja no hospital novamente ou no cemitério... O pouco tempo que me resta não será passado nesta casa. E sei que aqui ela não está bem sem mim, sozinha e sem pontos de referência. Adiar a nossa despedida seria tão difícil para ela como para mim.
Lina fecha as pálpebras e as suas mãos começam a tremer.
Ao ouvir a palavra «despedida», Massimo relembra a última imagem que tem de Red. A dor intensa daquele instante irrompe, trazendo à tona os momentos vividos com ele, as emoções das tardes no jardim de casa ou no sofá sem mais nada para fazer a não ser dar-lhe mimos. A sua ligação era tão forte por ser justamente desprovida de pretensões, preconceitos e negatividade: eram apenas eles os dois, uma criança e um animal, em toda a sua autenticidade, dispostos a conhecer-se, a surpreender-se, perdoar-se, amar-se; a relação entre a dona Lina e a Dody parece uma evolução dessa amizade, algo a que ele renunciou depois de sofrer com a perda de Red. Chegou o momento de refazer os seus passos, de se abrir novamente, de amar um animal e ser amado sem reservas.
Massimo responde emocionado que, a partir daquele momento, ela não deve temer que algo aconteça a Dody: terá uma nova família que cuidará dela até ao fim dos seus dias e que continuará a dar-lhe o mesmo amor que recebeu da dona Lina, esperando que, com o tempo, possa merecer o seu afeto. Depois, sai da sala para falar com Edoardo e ir buscar a caixa de transporte e algumas latas de comida. Quando volta, Lina está a murmurar palavras de despedida enquanto abraça delicadamente a gata.
– Aproxima-te, já lhe expliquei tudo, sabes? Sei que, por vezes, é necessário separarmo-nos para nos sentirmos melhor depois. Não voltarei a ser atormentada com preocupações sobre o seu futuro, que não me deixam dormir à noite. Ela poderá voltar a viver sem ter de se preocupar comigo e sem esperar que eu termine os meus dias nesta cama.
Massimo tenta pegar delicadamente na Dody, que, no entanto, se agarra com as suas frágeis patinhas à camisola de Lina e começa a miar.
– Não me leves embora! Quero ficar aquiii!
A vozinha delicada e rouca surpreende-o. Teme que a dona Lina o ouça a falar a linguagem dos gatos, mas não consegue evitar responder a este pedido de ajuda da Velhota. Sussurra:
– Dody, ouviste o que a tua amada Lina disse. Ela está angustiada com a ideia de que possas ficar nesta casa sem ela ou, pior, que o Edoardo escolha a solução mais fácil, a de te levar para um gatil. Se me permitires pegar em ti agora, a Lina sofrerá menos.
– Deixa-me morrer aqui... – suspira Dody. – Ou pelo menos pede para levar algo da dona Lina que me recorde dela e do seu perfume quando eu estiver longe.
Massimo volta a falar em voz alta:
– Dona Lina, agora que penso nisso, acredito que para a Velhota poderá ser útil ter na nova casa algo que a recorde da sua ligação consigo. Por acaso tem algum lenço, um brinquedo... que me deixe levar?
– Mas claro, Massimo, nunca te deixaria sair sem a manta preferida da minha gatinha! É aquela ali, no sofá atrás de ti, às riscas rosa e verde. Aliás, desculpa, devia ter dito ao Edoardo para a lavar antes... Amanhã peço para ta entregarem limpa!
– Não, não, isso seria um erro! Ela precisa mesmo do cheiro familiar para se sentir segura.
Massimo deixa que a Velhota retraia as garras e se deite novamente no peito da dona Lina. Agarra a manta, dobra-a em quatro e aproxima-se da cama. Com a ajuda de Edoardo, levanta a Dody com cuidado, que agora tem mais confiança e se deixa envolver pelo tecido.
Despede-se da sua companheira de toda a vida com um miado angustiado enquanto deixa a casa nos braços de Massimo, que, entre lágrimas, não consegue olhar para trás. Ao vê-los partir, a dona Lina percebe que tomou a decisão certa para o bem da sua querida companheira.
Em casa, espera-os Whisky sem se surpreender ao ver Massimo chegar com a Velhota. Apresenta-se, cheira-a e depois vai-se embora para a deixar explorar sozinha as divisões da casa e começar a conhecer o humano.
– Vais ver, no início pode ser que seja um pouco tímido, mas no fundo tem um bom coração – sussurra-lhe. Ela não responde.
A gata, embora magrinha, move-se pelo apartamento com a graça de quem já atravessou muitas primaveras. Está hesitante, mantém-se à parte, em silêncio, e Massimo esforça-se por compreender a sua desconfiança: prepara-lhe a manta que tirou do sofá da dona Lina, as tigelas para a água e a comida de que ela mais gosta, tenta não fazer barulhos incómodos; procura aproximar-se timidamente, mas ela foge quando sente que é demais (é certo que já não é rápida como antigamente, mas ainda assim...). Passa os dias a dormir, seja na manta ou debaixo da cama, come pouco ou nada e, por isso, raramente visita a caixa de areia. Embora saiba que é necessário tempo para se ambientar, estes sinais começam a preocupar Massimo.
É a intervenção de Whisky que, ao visitá-lo e vê-lo taciturno, o ajuda a sair daquela situação de impasse, em que a gata se recusa a falar e parece perder as forças dia após dia.
– Lembras-te do que aconteceu à Clio? Para ela, era impossível sentir-se confortável num ambiente em que não podia observar do alto, sentia-se sempre insegura. Talvez também seja assim com a Dody.
– Mas é uma gata velhinha... Não acredito que tenha vontade de saltar. Provavelmente já não tem energia e estar longe da dona Lina fá-la sentir-se abandonada. Mesmo assim, tens razão, vale a pena tentar.
Massimo, aproveitando os móveis da casa e movendo algumas prateleiras, prepara pontos de observação mais altos para a Velhota; depois de algumas horas, vê-a a aproximar-se, saltar e familiarizar-se com o novo ambiente. Agora que consegue controlá-lo a partir de alguns locais onde se sente segura, começa a observar o que Massimo faz, vê de onde são provenientes alguns ruídos e finalmente percebe que não há nada de perigoso em casa e que pode... relaxar. Voltar a ser a gata que era dantes.
Após os primeiros dias de desconfiança, Massimo dedica tempo e energia para estabelecer um vínculo de confiança com Dody e dá por si a pensar que a promessa feita à dona Lina acabou por se revelar, na verdade, um presente para ele: cuidar de uma gata idosa e frágil preenche-lhe o coração de uma forma completamente inesperada. Procura-a por toda a casa quando não a vê durante algumas horas e verifica sempre se está no quentinho e se come e bebe o suficiente. Os dias passam e quando a Velhota começa a fazer timidamente algumas exigências, ele faz-lhe prontamente a vontade, porque não consegue resistir àquele simpático focinho meio branco, àquele andar por vezes hesitante, àqueles miados roucos.
A gata, embora se lembre com saudade dos olhos cinzentos da sua querida amiga Lina, inicia um novo capítulo da vida dela em que os cuidados de Massimo a fazem sentir-se como uma rainha. Massimo, por seu lado, observa curioso o comportamento de uma gata que viveu muitos anos na companhia de humanos.
– Sabes o que me deixa mesmo fora de mim? – exclama Dody uma manhã, saindo da casa de banho em passo apressado.
– Não, Velhota, não sei. Mas aposto que me vais dizer.
– Mas como é que te passou pela cabeça comprar areia de sílica?! – Mas porquê? É a mais recente no mercado, pelo menos foi o que me disseram... Na loja, era a que custava mais e até estava escrito que é antiodor!
– Como te sentirias se tivesses de usar uma casa de banho que está sempre suja? Porque é assim que funciona. Estão lá as minhas necessidades do dia anterior e do dia antes desse... E eu tenho de ir lá na mesma sem sequer conseguir tapar o nariz! Sinceramente, dá-me vontade de fazer as necessidades fora da caixa... Mas como sou uma gatinha respeitadora e já tenho uma certa idade, prefiro primeiro falar contigo. Até a dona Lina sabia que é melhor areia aglomerante, talvez vegetal. E também tu sairias a ganhar: levas um minuto a limpá-la de cima a baixo e voilà!
Massimo encolhe os ombros, mas sente-se culpado por não ter pensado em perguntar-lhe que tipo de areia preferia.
– Na verdade, o Whisky nunca me falou de todas essas diferenças... mas imagino que para vocês sejam detalhes importantes.
– Quase tanto como os lugares onde comemos. E parece-me que não puseste a mesa ao lado do sítio onde fazes as necessidades, pois não?
Apesar da idade, a Velhota mantém o espírito mordaz que lhe ilumina os olhos.
– Se pudesses, por favor, mover as tigelas onde como e bebo...
– Também não tinha pensado nisso. Ufa... De que serve poder falar convosco se depois nem as coisas mais simples consigo entender? Dody desliza entre as pernas de Massimo e interrompe a conversa:
– Pelo menos tens vontade de aprender.
A certa altura, ao ver uma parte do sofá um pouco estragada e desfiada, Massimo dá-se conta de que nem sequer havia pensado na necessidade de a Velhota afiar as garras; não querendo repreendê-la injustamente, não lhe pergunta nada e regressa a casa com um presente: um arranhador novinho em folha. No entanto, passados alguns dias, repara que ela o ignora e insiste em usar o tecido do sofá; irritado, pergunta-lhe qual é o motivo:
– Ei, olha que isto não é uma peça de decoração, comprei-o para ti, mas continuas a destruir o meu sofá!
– Eu sei, percebi que o fizeste por minha causa e tive vergonha de insistir com outro pedido. O problema é que esse arranhador é pequeno, serve para um gatinho, eu nem consigo usá-lo... Para poder afiar as garras como deve ser, tenho de me esticar toda.
– Ah... então precisas de um maior e mais robusto?
– Exato... algo como o tronco de uma árvore! E já agora, se queres mesmo saber...
Massimo solta um suspiro abanando a cabeça, pronto para mais um sermão. A Velhota continua:
– Como não gostavas dele, enfiaste-o nesse canto entre a televisão e a estante, num espaço escondido onde nunca passo, mas para nós a zona do arranhador também serve para marcar território. Bem sei que agora vais começar a dizer que não preciso disso, mas olha, é o instinto.
– OK, está bem, então dá-me algumas indicações precisas.
Dody anda calmamente para a frente e para trás pelo apartamento, olhando em volta, e depois senta-se num azulejo específico. – Humm... Seria perfeito por aqui, entre a zona onde como, onde faço as minhas necessidades e a onde durmo.
– Podes ser a Velhota, mas continuas a ser uma verdadeira general!
Um pouco irritada, a gata continua com os seus pedidos:
– Sabes, com o passar dos anos compreendi que não devo simplesmente aceitar tudo e ficar em silêncio, especialmente quando é possível modificar as coisas de que não gosto. Vi que compraste alguns brinquedos para mim, mas não preciso de me mexer muito, tal como os velhotes a quem vai faltando a energia.
– Bem, o Whisky ainda é jovem e foi ele que me aconselhou a comprar os ratos e as penas...
A Velhota confessa-lhe que, com o avançar da idade, a única atividade que lhe interessa agora é dormir, de preferência confortável e quente. E que sente falta de ter camas diferentes para escolher para cada sesta.
– Eu sei que vocês, humanos, escolhem apenas um colchão, mas nós gostamos de trocar de cama também durante o dia. Há a manta da dona Lina que puseste no sofá, que continua a ser o meu lugar preferido, mas também gostaria de algo um pouco mais alto, talvez com almofada, e depois uma cama macia noutro canto... Não precisas de comprar muitas camas novas numa loja, mas se pudesses criar alguns cantinhos tranquilos e um pouco diferentes uns dos outros, ficaria feliz.
*
Já passaram três semanas desde que Massimo acolheu Dody e ele esforça-se todos os dias para a fazer sentir-se amada e protegida; apesar de ainda ter muitas saudades da dona Lina, começa a sentir-se menos dominada pela nostalgia, também graças a todos os cuidados do seu coinquilino (é assim que o define na sua cabeça). No entanto, por vezes ele ouve durante a noite os miados profundos e desespera- dos da Velhota; levanta-se e vai à sua procura. Quando a encontra, aproxima-se em silêncio e acaricia-a para a tranquilizar.
– Dody, estou aqui... O que se passa?
– Acordei e não sabia onde estava. Foi terrível... Não reconhecia nada à minha volta, nem sequer os cheiros.
– Não te preocupes, às vezes também acontece connosco, é normal, especialmente quando somos mais velhos. Esquecemo-nos de algumas coisas, perdemos a orientação, ficamos menos lúcidos. Quando voltar a acontecer, chama-me que eu venho logo para te lembrar que estás segura. Não vou a lado nenhum.
Enquanto pronuncia estas palavras, Massimo deita-se no chão ao lado dela e aninha-se. Coça-a suavemente atrás das orelhas. A Velhota enrosca-se, o seu ritmo cardíaco abranda e volta a dormir.
A compreensão de Massimo ajuda a gatinha a confiar cada vez mais nele: não força a aproximação, respeita os seus tempos e espera que seja ela a vir ter com ele e a procurar contacto quando quiser (cada vez mais frequentemente, para dizer a verdade). A relação entre eles constrói-se, tijolo a tijolo, graças aos progressos de Dody: ele, desde o primeiro momento, foi invadido pelo afeto por aquela frágil gatinha, enquanto ela, por sua vez, se afeiçoa lentamente. De esquiva, abatida e desconfiada, a Velhota revela-se uma gata que, apesar dos anos, ainda é ativa, tagarela e feliz. Massimo apercebe-se de que poderá contar com os sábios conselhos dela quando Whisky aparecer com uma nova missão para ele.
*
Uma noite, Massimo está deitado no sofá com os olhos fecha- dos, um disco de vinil toca e espalha pelo ar as suas notas. Quando a música termina, no silêncio que se segue, ouve o som das patinhas de Dody a bater no chão. Tic-tic-tic-tic. Tic-tic-tic-tic. Sustém a respiração ao perceber que ela está por perto, provavelmente a observá-lo e, por isso, procura não fazer movimentos bruscos para não estragar tudo. Ela espera alguns segundos e, incerta, dá um salto para os seus pés; encontra a posição certa para se aconchegar, suspira e faz um pequeno ronronar. Nesse instante, os lábios de Massimo esboçam um sorriso e permanece imóvel desfrutando daquele momento, quase com medo de a incomodar com a sua respiração.
Dody sente-se segura agora e disse-lho sem precisar de palavras.
(1) O jogo de palavras «a-mici», intraduzível para português, é um artifício linguístico que combina a palavra «amici», «amigos» em italiano, com «mici», uma forma carinhosa de se referir a gatos, em italiano, semelhante a «gatinhos», em português. (N. do T.)
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