Cada vez que se anuncia um ciclo de cinema ao ar livre num espaço perto de nós, há algo de nostálgico e misterioso que nos remete para o filme “Cinema Paraíso”.
De imediato, somos transportados para recordações de infância, recuperamos imagens engavetadas na memória e viajamos para um tempo de longas e estreladas noites de verão em que vivíamos fascinados e desesperados pela chegada da itinerante cabine mágica.
Conduzida pelas mãos de um velho projetista, este desmultiplicava-se em diversos papéis, de montagem-desmontagem, da disposição das cadeiras à tela (não era desembrulhada quando as películas eram projetadas nas paredes de igrejas ou em praças centrais de cidades, vilas, aldeias e lugarejos), à venda de bilhetes que antecediam o desenrolar da bobine.
O Black Cat Cinema, ciclo de cinema ao ar livre, recupera essa nostalgia cinematográfica.
Percorre a cidade de Lisboa desde 2021. No verão de 2024, lato sensu, de maio a outubro, elegeu a Igreja da Graça para a sala de cinema a céu aberto.
Curiosamente, ou talvez não, “Cinema Paraíso” filme realizado por Giuseppe Tornatore, um dos masterpieces e clássico da 7.ª Arte, abriu o pano a 26 de maio, pano esse que desce em definito, este ano, a 14 de outubro, com a exibição de “Toy Story”, de John Lasseter.
Daniel Evans, inglês de 34 anos, é a mão que desenrola as sessões contínuas projetadas aos domingos e segundas-feiras de cada um dos cinco meses de exibição. Datas fixas, salvo raríssimas exceções.
De forma descontraída e cerveja na mão, o homem por detrás da ideia, conversou com o SAPO24 antes do filme iluminar a noite de poucas estrelas e uma sala quase cheia e retalhada de espectadores de variadas procedências e línguas.
Cinema no teto do mundo como inspiração
Os fins de dia alimentados por uma vista arrebatadora de Lisboa a partir do antigo Miradouro da Graça (hoje, Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen) servem de porta de entrada para a noite de cinema nos claustros do Convento conexo à Igreja da Graça.
Enquanto os tuk-tuk esperam os aplausos dos milhares de turistas mirones que, de boca aberta de espanto, assistem ao pôr-do-sol (quando a natureza permite) ou admiram o colorido dos telhados alfacinhas que a vista alcança, a antiga portaria conventual acolhe, a partir das 19h00, aos primeiros espectadores.
Aos primeiros passos, munidos do bilhete, pisam e repisam história de Reis e Rainhas. Assim como figuras do Clero. Atravessam a história de Portugal e à sua espera dispõe de 250 cadeiras com vista privilegiada para as janelas das celas dos frades, outrora habitantes do convento.
O velho “painel” branco é substituído por uma tela de projeção insuflável de 5,5 metros de largura. “Cabe num saco e é só meter no porta-bagagens do carro”, regozijou-se Daniel Evans com tamanha inovação.
Debaixo do Claustro Nobre, de frente para o palco, há barraquinhas de comes e bebes, a que não falta a tradicional pipoca e cerveja. “São de produtores locais, é tudo nacional e local”, nó comunitário engatado pela organização que quer “deixar esta peugada”, assinala Daniel. “Quando é possível fazer, é a 100%”, garante.
O compromisso é tal que no site aconselham a quem for ver o filme debaixo das estrelas a não levar farnel de casa para, assim, ajudar o pequeno comércio e comerciantes locais.
A música, também ela é feita por gente enraizada ao local onde o cinema assenta praça. “Temos uma curadoria que nos ajuda na escolha e a Black Cat, produtora, trabalha também com alguns músicos e projetos musicais”, elucida.
Num casamento desejado, os sons do mundo sobem ao palco (entre as 20h00 e as 21h00) para aquecer o ambiente antes de as luzes (naturais) levarem a música a ceder o papel principal ao filme.
Daniel Evans faz uma pausa no presente e rebobina a fita à génese de tudo o que possibilita estar hoje ancorado na capital portuguesa, na freguesia de São Vicente, um projeto que já se estendeu, amiúde, dentro de portas, ao Palácio do Grilo e IDB Rooftop e visitou a Ericeira, em Mafra.
“Tinha 23 anos, viajei até o Nepal, cheguei a Pokhara, segunda cidade, no meio das montanhas, na selva, a seis horas de Katmandu, queria ver um filme e apenas passava Bollywood. Pensei que outras pessoas talvez quisessem o mesmo e da ideia nasceu um projeto”, conta.
As provações suportadas, do frio ao ar rarefeito, eram largamente contrabalançadas pelo prazer de partilhar a paixão pelas maravilhas da sétima arte. “Construi todo o recinto”, um anfiteatro no teto do mundo, em Annapurna, recordou, obra que deixou para trás. “Ainda está lá a funcionar”, assinala.
“Visitei Lisboa em 2020 e pensei: este é o lugar”
A pátria da meditação fica para trás e entra em Portugal em plena Pandemia. “Sempre tive o sonho de fazer isso na Europa. Porque na Europa, podemos construir uma vida estável e o Nepal não é o lugar mais estável para construir a vida”, reconhece, embora necessitasse de muito pouco para viver. “Quando o negócio estava a começar dormia no “escritório” e podia viver com apenas 80 dólares por mês”, sorriu este inglês licenciado em Relações Internacionais e Filosofia que sempre foi “apaixonado por filmes e música”, descreve-se.
“Visitei Lisboa em 2020 e pensei: este é o lugar”, exclamou. “Regressei a Inglaterra e voltei para fazer isto”, recordou. “No primeiro ano (2021) era apenas eu. E uma pessoa ocupada com o social media, seis horas por semana. Era tudo”, recupera.
Enchia o ecrã, punha e dispunha cadeiras, empacotava-as no final da projeção, desarrumava-as dos sítios e arrumava-as num “armazém” onde repousam a cada intervalo exibicional e nos seis meses que hibernam à espera do próximo verão.
“Agora é estranho. Posso andar e está tudo aqui”, gracejou Daniel Evans acompanhado de uma pronúncia do norte de Inglaterra.
Andou, sim, falou com conhecidos e desconhecidos. Deu uma volta olímpica pelas arcadas dos claustros e certificou-se que tudo estava pronto para mais uma noite de projeção. Tiques de outro tempo de quem não quer que nada falhe.
A música ajuda as pessoas a acomodarem-se à luz das estrelas, a conversa prossegue enquanto os cinéfilos saltitam entre o local de abastecimento da cerveja e pipocas e os lugares sem direito a marcação.
Curadorias ajudam à seleção das fitas. Filme da vida: “Cidade de Deus”
Daniel Evans admite que “não viu todos os filmes” que já projetou. “Lady Bird, na verdade, nunca assisti e vou assistir (projetado dia 9)”, prometeu.
A escolha do reportório em exibição não passa em exclusivo pelo seu crivo. “Tenho ajudas, pessoas a sugerirem-me filmes, por vezes há sugestões terríveis, pego, uso a experiência e alguma sorte e está feito”, relatou. “Este ano estou a trabalhar com um diretor de filme amador, ajudou-me na curadoria de filmes com os quais não era familiar”, confessa.
Aproximamo-nos do fim da época de verão-outono, mas a próxima já ferve em lume brando na mente do britânico. “As pessoas acham que tenho meio ano de descanso, mas, quando acaba a temporada, começamos a preparar a próxima”, assegura.
Perde o fio à conversa e começa a falar de cinema. De fitas. Avulso. “12 Angry Men (12 homens em fúria). Conheces o filme?”, questionou invertendo os papéis. “É incrível, a forma como os personagens se desenvolvem. Basicamente, é apenas um drama. Tem a ver com crime, mas não se vê”, resumiu.
“Cidade de Deus” é o filme da vida deste projetista dos tempos modernos. “É baseado em eventos reais, há um realismo e isso significa que realmente chega a nós de uma forma muito mais significativa”, diz.
Apaixonado por filmes, admite uma fraqueza. “Não vejo séries e não tenho streaming na televisão. Um filme são duas horas e está visto. Uma série pode ser 40. Se começasse a ver e gostasse, não iria parar e ficaria quatro dias sem dormir”, sorriu.
Os sinos da igreja anunciam início do filme
Regressa à Igreja da Graça e ao cinema ao ar livre. “No fim dos dias de sessão e antes do intervalo de exibição recolhemos todas as cadeiras”, assegura. “Vai tudo numa carrinha e guardamos”. O gesto é repetido todas as semanas até o pano baixar, em meados de outubro. O destino final é um armazém.
Mecanizado em Lisboa, outras cidades começam a ocupar o pensamento de Daniel Evans. “Adoraria ver isto crescer a nível nacional. Agora, tenho um filho, em Lisboa, mas quero criar uma família”, usou a analogia familiar para antecipar um crescimento orgânico.
“Estive no Porto no outro dia e pensei que lá seria diferente lá. Diferentes pessoas, diferentes lugares, diferente atmosfera. Definitivamente. Seria bom ter cada capítulo (leia-se local) com seu próprio caráter. Isso é parte do plano”, antecipa.
Um plano que pode rasgar fronteiras. “Porque não?”, questionou. “Não vejo nenhuma razão para não fazer isso e acho que deve ser parte do plano”, afirmou.
Entre antecipações do plano de expansão, Daniel aproveita e desvenda a origem do nome da produtora. “Movie Garden, era para ser o nome, mas queria algo menos óbvio. Durante o COVID senti-me deprimido com o lockdown, alterei para black dog, sinónimo de depressão. Deixei cair e escolhi Black Cat. Para mim é a reinvenção, mas para o comum dos mortais é apenas mistério, noite... e assim ficou”, pormenorizou.
Já não se ouve música. As badaladas dos sinos da Igreja da Nossa Senhora da Graça (21h00 horas) anunciam o filme da noite.
Na tela, uma mensagem a preto e branco “Of all the gin joints in all the towns in all the world, you´ve walked into ours”, ligeira adaptação de uma das mais imemoráveis “deixas” do cinema (Casablanca), antecede o início da sessão. O silêncio reinará nesta caixa-de-ressonância do tamanho do céu que permite abafar o som das pipocas a serem pescadas no balde numa cadeira perto de nós.
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