O espetáculo intitula-se “Venham enfim as altas alegrias” e, adotando para designação formal um verso do autor distinguido em 1998 com o Prémio Nobel da Literatura, terá três exibições nos jardins da Biblioteca Municipal, constituindo uma estreia absoluta no programa que levará à referida cidade do distrito de Aveiro mais de 140 performances por 35 entidades de 16 países.
A direção do projeto cabe ao artista plástico local Fábio Afonso que, tendo concebido parte dos textos e idealizado os materiais cénicos do espetáculo encomendado pelo próprio Imaginarius, conduziu uma residência artística com 10 estudantes do ensino secundário e universitário que se voluntariaram para participar na produção e também estarão em cena a 26, 27 e 28 de maio, como ‘performers’.
Em entrevista à Lusa, Fábio Afonso declarou que Saramago nem sempre é fácil e assume-se, ele próprio, como um convertido recente: “Na escola secundária tive que ler o ‘Memorial do Convento’, mas, apesar de ter achado graça à passarola, não fiquei impressionado com a obra, talvez porque naquela altura da nossa vida ainda não temos maturidade para um livro assim. Mas, depois, com este projeto, li outras obras de Saramago e agora conheço-lhe muito melhor o imaginário — que coloca questões absurdas, faz perguntas estranhas, tem muita fantasia”.
O espetáculo começará assim com “um prefácio” que serve de introdução a nove pontos do percurso, como numa viagem por diferentes estações e destinos que se iluminam à medida que é referida a obra que os inspirou.
Em associações mais óbvias para quem conhece as obras de Saramago, isso permitirá descobrir, por exemplo, um aquário em que o braço de Camões mantém à tona um exemplar de “Os Lusíadas”, numa evocação da peça de teatro “Que farei com este livro?”, ou uma bacia de zinco em que o banho se faz com sabonetes moldados na forma da Península Ibérica, numa readaptação de “A jangada de pedra”.
“Mas o espetáculo também é para quem nunca leu Saramago”, garantiu Fábio Afonso.
Essa descoberta será incentivada nos pontos do percurso em que literatura se cruza com cultura geral, como acontece quando as atrizes se esforçam por erguer uma coluna de livros com calhamaços vermelhos e pardos, numa referência tanto ao romance “Todos os nomes” como ao mito da Torre da Babel.
No mesmo contexto de alegorias e realidades paralelas, o arranjo cénico para “O homem duplicado” foi tratado como a lenda de Narciso, recorrendo a um espelho que é polido perante o público, e “A caverna” recuperará a ideologia do filósofo Platão, num jogo de desenhos e sombras chinesas.
“No fundo, os livros escolhidos para o percurso são muito diferentes”, concluiu o criador e encenador do espetáculo, “mas repetem sempre o elemento de um certo absurdo, transportando o espectador para o mundo de fantasia de Saramago e suscitando, mesmo em quem nunca leu nada dele, curiosidade sobre a sua obra e o seu universo literário”.
A edição de 2022 do Imaginarius não é a primeira que presta homenagem a José Saramago. Segundo a direção do festival, em 2011 já o evento integrou o espetáculo “The Blind”, uma produção da companhia polaca KTO baseada no livro “Ensaio Sobre a Cegueira”, e dois anos depois o mesmo aconteceu com o grupo de teatro O Bando, que estreou no evento o espetáculo “Jangada de Pedra” — inclusive na presença da viúva do escritor.
A Biblioteca Municipal da Feira também já recebeu Saramago, que a 16 de novembro de 2002 aí celebrou o seu 80.º aniversário, participando numa conferência sobre a sua carreira, inaugurando uma exposição artística sobre a sua obra e assistindo a um espetáculo em que as atrizes Laura Morante, Marisa Paredes e Maria de Medeiros leram excertos de “Memorial do Convento” e “Ensaio sobre a Cegueira”.
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