Esta experiência não é totalmente nova para o autor de “Galveias”, que já anteriormente transportara José Saramago para dentro de um romance, “Autobiografia”, publicado em julho de 2019.
“Almoço de domingo”, que será publicado pela Quetzal no dia 25, “sobe um degrau”, porque a personagem retratada “ainda está aí”, disse o escritor em entrevista à Lusa.
Trata-se da história de um “homem de 90 anos, que olha para o seu passado e faz um balanço de vida a partir de episódios significativos da sua história pessoal, que em muitos aspetos tocam a do próprio país, mas tem esse outro lado que para mim foi muito desafiante que é o facto de ter como referência a história de Rui Nabeiro”, contou o escritor.
Contudo, a pessoa é subentendida na leitura do texto, pelo percurso que segue, pelo império que cria, pela geografia e pela família em que se insere, a partir das quais tudo parte, porque o sobrenome Nabeiro nunca aparece no texto.
José Luís Peixoto explica porquê: “do ponto de vista do texto, é um romance e como romance é um exemplo, a personagem é uma personagem, não é um texto histórico não é um texto biográfico”.
Os factos estão lá, mas para quem lê o texto é um aspeto que pode ser considerado ou não, não é essencial, porque trata-se de um “texto romanesco”.
A história deste romance começou em 2019, quando o empresário Rui Nabeiro assistiu a umas entrevistas de José Luís Peixoto, que ainda não conhecia pessoalmente, e lhe propôs a escrita da sua biografia.
Para o escritor, não era interessante a ideia de escrever uma biografia, por ser um texto completamente diferente do romance, e então fez uma contraproposta: escrever um romance que tomasse como ponto de partida essa experiência.
“Há uma oportunidade de dispor de um património de experiência e de vida, por um lado a vida de uma pessoa de 90 anos, a riqueza de privar com uma pessoa dessa idade com alguma realidade e com disponibilidade de partilhar memórias, acrescido de toda a especificidade da sua história, que é incrível”.
Rui Nabeiro nasceu numa família humilde, começou a trabalhar cedo a ajudar o pai e os tios na torra do café, e acabou por construir um império familiar que envolve negócios de café, azeite e vinho.
O livro está estruturado em três partes, cada uma delas é um dia e esses dias estão no futuro, embora no livro sejam o presente. São os dias 26, 27 e 28 de março de 2021, que é o dia em que o Rui Nabeiro real e o ficcional fazem 90 anos. Esse dia é domingo, daí esse “almoço de domingo” que é o titulo do livro e vai ser o momento em que tudo se cruza, num “final bastante apoteótico”.
Em cada um desses dias, existe o tempo em que a personagem tem 89 anos e é escrito com base naquilo que é a vida dele, que é uma vida ativa e com uma agenda intensíssima.
“O livro é mais constituído por memórias do que descrições do presente, e vão surgindo aleatoriamente”, de tal forma que há um recurso muito utilizado, que é o irromper de recordações específicas, quando estão a ser descritas certas situações, que no momento da leitura não se entende de onde vêm.
Exemplo disso é um momento em que a personagem acordou de manhã, está na cama, ainda imóvel, a pensar nas dores da idade e, de repente, “lembrou-se dos óculos de Marcello Caetano”. Esta memória é aqui interrompida, para passar de imediato para a memória “do cheiro avinagrado da massa das farinheiras”. Ideias aparentemente incompreensíveis.
Ao longo do romance as memórias vão compondo um todo narrativo, onde estas memórias se encaixam: quando era mais novo, no âmbito da sua vida profissional, teve um encontro com Marcello Caetano e a imagem dos óculos “sofisticados”, de lentes grossas, armação que prolonga as sobrancelhas e hastes mais grossas do que parecem na televisão, ficou-lhe gravada na memória.
“Acontece algumas vezes: no presente existem essas memórias, como dizem os brasileiros, que pipocam e que são prenúncios de descrições que vêm a seguir. Algumas ligadas com aspetos históricos, como Marcello Caetano, Mário Soares, a guerra civil espanhola, a inauguração da Ponte 25 de Abril, são vários, porque Nabeiro esteve presente em muitos momentos da História”.
Do mesmo modo que o cheiro das farinheiras remete para a família e a infância no Alentejo, em Campo Maior, a memória da mãe e de duas mulheres sentadas em bancos à roda de um alguidar a encher farinheiras.
Estes são outros aspetos do romance de José Luís Peixoto, para além das memórias que tocam a vida pública e os momentos históricos, que é a memória da família e da sua terra natal.
“Rui Nabeiro é um homem nascido no início dos anos 1930, com uma história que envolve o Alentejo, tema que me é muito caro, pois ele é do meu distrito [Portalegre]. Mas é um Alentejo particular, que é o Alentejo da raia, como toda a questão de Portugal e Espanha, as histórias do contrabando, e, numa outra dimensão, muito importante, que acho fascinante, que é a questão familiar, daí o almoço de domingo, que é o símbolo da família. É um homem conhecido por ter desenvolvido esta enorme empresa gerida familiarmente”, afirmou José Luís Peixoto.
Apesar das grandes diferenças, incluindo a idade, o escritor encontra uma identificação e empatia com o protagonista que lhe permitiram conseguir colocar-se no seu lugar e imaginar as situações como se as estivesse a viver, desde logo, pela “ligação muito forte” que tem com as suas origens e com o povo a que pertence, mas também pela morte precoce do pai e o sofrimento que esse acontecimento acarreta pela vida.
“Para mim, trata-se de um processo em que eu tenho acesso a estas memórias e a este património desta pessoa, mas depois tenho que os fazer meus […] e nesse momento eu estou a ser ele, estou a tentar ver por uma perspetiva que também me inclua, porque é o que pode dar verdade àquelas descrições”.
Por isso, se tivesse que dar um “tema” a este romance, seria sem dúvida a memória: “nós constituímo-nos pelo que fazemos, pelo que recordamos pela história que contamos a nós próprios de quem somos”.
Há uma frase no início do livro que marca o ritmo da história toda: “O passado tem de provar constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar. Há muita realidade a passear-se por aí, frágil, transportada apenas por uma única pessoa. Se esse indivíduo desaparecer, toda essa realidade desaparece sem apelo, não existe meio de recuperá-la, é como se não tivesse existido”.
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