A série documental recolheu mais de 50 testemunhos de jornalistas, políticos, ex-elementos dos serviços secretos e até de uma “ex-amante desconhecida até hoje”, como explica a plataforma de conteúdos na Internet HBO Max, que produziu a série e a transmite e que, sem avançar dados concretos de audiência, assegura que é já a segunda produção original espanhola com esta marca mais vista de sempre.
O objetivo foi fazer a “radiografia de uma época” de Espanha e um retrato do rei emérito do país, Juan Carlos I, um monarca que “acabou com 40 anos de ditadura”, mas também “pôs a monarquia em perigo” por causa de ligações extra-matrimoniais, relações suspeitas com empresários e Estados do Médio Oriente e o envolvimento em negócios para seu benefício pessoal.
“Havia muitas coisas que se sabiam ou que alguns jornalistas ou escritores tinham publicado em pequenas revistas no final dos anos 80 e princípios dos anos 90, ou em livros de pouquíssima tiragem, de que não tinham feito eco nem os jornais de referência nem as televisões. Havia muitas coisas publicadas que nunca tinham chegado ao grande público”, explicou à agência Lusa o realizador da série, Santi Acosta.
Além dos testemunhos, a série, que estreou em 09 de setembro, revela áudios inéditos de Juan Carlos I, que estava sob escuta de forma sistemática pelos serviços secretos, mas também por uma das suas amantes, com quem falava, segundo as conversas agora conhecidas, sobre questões de Estado.
Segundo a série, a primeira operação para “salvar o rei” é de 1956, quando Juan Carlos de Borbón já tinha sido escolhido pelo ditador Francisco Franco para lhe suceder, mas ainda não era monarca, e matou acidentalmente o irmão mais novo, com uma arma, no Estoril, em Cascais.
As notícias da época falam na morte por acidente de Alfonso de Borbón, então com 14 anos, mas ocultam que Juan Carlos tinha nas mãos a arma que acabou com a vida do irmão.
A série revela também a proximidade de Juan Carlos I com Francisco Franco, sugerindo que o agora rei emérito de Espanha traiu o pai para ser monarca e que esteve ele próprio por trás da tentativa de golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981, conhecido como 23F, e que acabou por o transformar em definitivo num herói da transição para a democracia, por ter assumido perante a Nação a defesa da Constituição democrática e a condenação dos autores da tentativa de golpe.
“É uma personagem que tem um pouco de duas caras”, sublinhou Santi Acosta, explicando que depois de terminada a série e “quando se vê o quadro completo, percebe-se que há muitas condutas que são inaceitáveis”, mas em paralelo, “é preciso dizer que se em Espanha há uma democracia” é porque Juan Carlos I “entregou ao povo espanhol o poder absoluto que recebeu de Franco”, quando o ditador morreu, em 1975, e que manteve nas suas mãos durante três anos, até se ter conseguido votar uma Constituição nova e organizar eleições.
Foi este lado da cara do rei emérito, de fundador e garante da democracia, que provavelmente o salvou tanto tempo e explica o pacto de proteção de décadas que existiu na generalidade da imprensa espanhola e também nos diversos organismos do Estado, algo que visto com os olhos de hoje pode parecer surpreendente, como admite Santi Acosta.
“Em Espanha, já não nos lembramos da pressão dos militares, do ruído de espadas, da pressão da [organização terrorista] ETA, que assassinou mais em democracia do que na ditadura, toda a pressão que havia dos militares franquistas que queriam um regresso ao passado. Nesse momento, salvar o Rei, que tinha entregado o poder absoluto ao povo espanhol outra vez para aprovar a Constituição, nesse momento, defender a figura do monarca era também defender a democracia, parecia que se o Rei caísse, caía tudo, caía toda a democracia”, disse à Lusa, para explicar o “pacto de editores para o salvar” e “não criticar demasiado”.
As mudanças na sociedade espanhola, que os meios de comunicação sempre acabam por refletir, e também uma nova geração de editores, acabou por ditar o fim do pacto de proteção e silêncio em torno do monarca e da monarquia em geral.
Foi um processo que avançou “pouco a pouco”, primeiro, “ligeiramente”, nos anos de 1990, até que, segundo Santi Acosta, se quebrou totalmente o pacto com o designado “caso Nóos”, que começou a ser investigado em 2010 e acabou com a condenação, a uma pena de prisão efetiva, por corrupção, de Iñaki Urdangarín, um dos genros de Juan Carlos I.
Hoje, a relação da imprensa espanhola com a monarquia e o Rei Felipe VI “é diferente”, diz Santi Acosta.
“A opinião pública espanhola já não suportaria de maneira nenhuma que se repetissem algumas das condutas que teve o seu pai. E ele [Felipe VI] é consciente, acho eu”, afirma.
Juan Carlos I decidiu viver nos Emirados Árabes Unidos desde agosto de 2020 na sequência de investigações judiciais em Espanha sobre suspeitas de corrupção.
Em 02 de março passado, a Procuradoria Anticorrupção espanhola arquivou os três casos que estavam relacionados com o rei emérito, um sobre a alegada arrecadação de 65 milhões de euros em supostas comissões para a construção do comboio de alta velocidade Medina-Meca, outro sobre alegadas doações não declaradas e um terceiro sobre suspeitas de ter escondido fundos em paraísos fiscais.
Os casos foram arquivados, segundo a justiça espanhola, por alguns dos alegados crimes já terem prescrito e por o rei emérito não poder ser processado pelas “irregularidades fiscais” de que foi culpado entre 2008 e 2012 devido ao estatuto de limitações à infração ou à sua imunidade como chefe de Estado.
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