CAPÍTULO 1

José: Descoberta

Será com muito prazer que o receberei em Monticello, para lhe expressar pessoalmente o meu enorme respeito e receber directamente das suas mãos as cartas de apresentação dos meus amigos de além-mar que me dão a satisfação de o conhecer.

Carta de Thomas Jefferson a José Correia da Serra, 17 de Abril de 1812

— Venha, mude-se para cá. Dar-lhe-ei a cátedra de Botânica na Universidade da Virgínia. O senhor é o homem mais erudito que jamais conheci. — A voz exuberante de Thomas Jefferson ressoou por toda a sala de jantar e encheu-me o coração de alegria.

— Mas que grande convite. Muito obrigado, meu caro senhor — respondi.

— Que maravilha ter conseguido, finalmente, visitar-me em Monticello! Nunca pensei que teria de esperar mais de um ano para o conhecer. — Jefferson tocou-me no braço afectuosamente.

— O seu acolhimento é deveras inspirador e de uma profunda simpatia. — Ao dizer isto, tenho a certeza de que os meus olhos brilharam de alegria.

Cheguei a Monticello, à plantação de Thomas Jefferson no cimo da montanha perto de Charlottesville, já passava bem das seis da tarde.

Jefferson esperara amavelmente por mim para jantar. Tivemos, assim, a grande oportunidade de tomar a refeição os dois sozinhos. Uma ocasião rara, pois eu ouvira dizer que a sua filha Patsy, o marido e os filhos lhe faziam sempre companhia às refeições.

A sala de jantar de Monticello era um espaço intimista pintado com uma cor intensa e moderna — o chamado amarelo-cromado. Estávamos em Junho e a primeira coisa em que reparei foi que as janelas, com vidros quadriculados que iam do chão ao tecto, deixavam entrar a luz coalhada do Verão, apesar da hora do dia. Ao olhar para cima, vi uma grande clarabóia. Uma boa parte do mobiliário era europeu, sem dúvida peças que Jefferson trouxera para a América depois do seu mandato como embaixador em França. O relógio dourado ao centro da lareira era o epítome do requinte. O ambiente era elegante e, ao mesmo tempo, descontraído.

Eu vestira-me a preceito para esta ocasião. Levava a minha melhor casaca, os meus calções florentinos, uma camisa branca bem limpa e passada, e o meu único par de meias pretas de seda. Os sapa- tos que usava tinham fivelas e certifiquei-me de que as jarreteiras estivessem em ordem durante todo o serão. Jefferson, por seu lado, vestia um modesto casaco azul e calças pretas; usava uns sapatos de camurça que mais pareciam chinelos. Tenho a certeza de que ostentava com orgulho a sua simplicidade republicana.

Não havia criados por perto. Jefferson começou por me dizer que gostava de conversar com os seus convidados sem ser interrompido. Havia um carrinho de servir num dos lados da sala e, nas várias prateleiras de uma porta giratória, viam-se travessas repletas de comida. Jefferson disse-me que um mecanismo lateral junto à lareira permitia trazer os vinhos da garrafeira, situada na cave, para a sala, uma geringonça que me mostraria mais tarde.

Tânia Ganho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de setembro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu livro de memórias "O Meu Pai Voava", editado pela D. Quixote.

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Este é o regresso da autora ao clube, onde esteve em 2021 para falar sobre o aclamado "Apneia", romance que foi um sucesso junto da crítica e dos seus leitores. Agora, a conversa vai centrar-se na obra que chegou às livrarias em julho, "O Meu Pai Voava", um relato pessoal que é, em simultâneo, um tributo a um pai.

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— Quero atrair para a Virgínia as melhores mentes europeias. — Os modos de Jefferson eram suaves. — O senhor já vive neste país, o que é uma grande vantagem. A carta de apresentação sobre si escrita por André Thouin é verdadeiramente excepcional.

— O senhor lisonjeia-me! — Tremi de excitação ao dizer isto, enquanto olhava, pelas janelas, para a relva verdejante situada no lado oeste da casa.

Logo que cheguei ao Novo Mundo, e a viver em Filadélfia no momento, escrevi a Thomas Jefferson o mais rapidamente que pude, solicitando-lhe que me recebesse. Além disso, escolhera cuidadosamente os amigos que tínhamos em comum e que me poderiam dar as melhores cartas de referência. Sabia de antemão que o meu êxito na América dependeria da boa fortuna de travar conhecimento com pessoas da mais elevada proeminência. Na qualidade de botânico, já era então membro da American Philosophical Society e Jefferson continuava a ser o seu presidente. Dado que era minha intenção continuar a dedicar-me ao interesse que sempre nutri pelas ciências naturais, Jefferson estava no topo da lista de pessoas que deveria conhecer.

André Thouin era o conservador-chefe do Jardin des Plantes, o principal jardim botânico de França. Era uma figura de proa do establishment francês, um homem influente e grande amigo de Jefferson. De todas as recomendações que trouxe para a América — e tinha várias de reputadas celebridades europeias — tinha particular apreço pela de Thouin. Na carta que escreveu a Jefferson, disse-lhe que eu era um naturalista de primeira água, que as minhas credenciais científicas eram as melhores entre as melhores e que Jefferson podia confiar nos meus conhecimentos de botânica. Referiu que eu era um philosophe de mente prática que gostava de empreender expedições no terreno, com visitas ao campo, e que eu acreditava na utilidade prática da ciência. Disse ainda que estava convencido de que Jefferson iria apreciar a minha companhia.

Jefferson respondeu ao meu contacto inicial com um convite para o visitar em Monticello. Seguiu-se posteriormente uma troca de correspondência. Tendo de me instalar primeiro em Filadélfia, o que levou algum tempo, e estando hesitante quanto a uma viagem por terras desconhecidas, fui sucessiva, e infelizmente, adiando a minha vinda.

Mas agora tinha o privilégio de me sentar como convidado à sua mesa de jantar.

— Amigos comuns dizem-me que o senhor poderá estar a aguardar uma missão diplomática do Reino de Portugal. Conhecendo a sua paixão pela botânica, estou confiante de que vou conseguir atraí-lo para a minha causa. — Ao dizer isto, Jefferson pousou o copo de vinho de bordéus na mesa.

— Vejo que está bem informado! Mas a correspondência através do Atlântico é lenta e pouco fiável, pelo que a minha missão poderá nunca ter início. Uma coisa sei ao certo: pretendo ficar por cá, gosto deveras do seu país.

— Gostaria muito de recorrer aos seus conselhos no que diz res- peito à elaboração dos estatutos da Universidade da Virgínia. Tenho andado preocupado com este assunto e, afinal de contas, o senhor ajudou a criar a Academia Real das Ciências de Lisboa. Posso contar consigo? A sua reputação é amplamente conhecida.

— Seria uma honra poder colocar-me ao seu serviço. — Neste momento, tive esperança de que o meu sorriso mostrasse ao meu anfitrião quão feliz me sentia com tal convite.

— Quero criar uma instituição estatal paga com dinheiros públicos. Mas a minha universidade não pode ter nenhuma afiliação religiosa, ao contrário do que acontece com as universidades do norte do país.

Assenti, com um gesto de cabeça.

— Aproveito para o felicitar pela sua originalidade de pensa- mento! — Jefferson encheu o meu copo de vinho uma segunda vez. A comida que estávamos a saborear era de primeira classe. Comemos beef à la mode, medalhões de vitela, acompanhados com cebolas brancas, cenouras e cogumelos. A aguardente do cozinhado conferia à carne um sabor verdadeiramente delicado. Jefferson foi-me dizendo que o cozinheiro de sua casa usava as artes da cozinha francesa, tanto ao seu gosto. O serviço de porcelana, os copos e os talhe- res de prata eram todos franceses.

À medida que o jantar avançava, confirmei, com deleite, que eu e o sábio de Monticello tínhamos muito em comum. A Universidade da Virgínia era uma iniciativa monumental e um assunto que já havíamos abordado nas cartas que trocáramos anteriormente. Essas partilhas de ideias, mesmo que breves, tinham-me já convencido de que eu e Jefferson comungávamos do mesmo amor pelo mundo natural. Mas estava agora, presencialmente, a confirmar as minhas primeiras impressões.

Enquanto saltávamos de tema em tema, o meu anfitrião confessou que apreciava muitíssimo a camaradagem frequente de diversos visitantes que lhe faziam companhia desde que se aposentara, em 1809. Percebi que Jefferson era um homem sociável: gesticulava, olhava-me olhos nos olhos e, de vez em quando, tocava-me cordial- mente no braço. Entre os seus convidados, disse-me, havia tantos americanos como estrangeiros; eram pessoas que ele sabia que enriqueciam o seu mundo interior. As cidades eram-lhe agora abomináveis e preferia a tranquilidade da vida na sua plantação. Rodeado da família, encontrara a paz e o sossego de que precisava para amadurecer os projectos que tinha em curso. A criação da Universidade da Virgínia era, entre estes, um dos maiores.

Jefferson fazia-me lembrar um francês cheio de distinção. De facto, eu conhecia-os bem, pois vivera em Paris nos dez anos anteriores. Apesar de ter nascido e crescido na classe privilegiada dos proprietários de terras da Virgínia, Jefferson era completamente terra-a-terra, o que muito me surpreendia. Enquanto conversávamos, eu reflectia como ele encarnava a alma do que me parecia ser a nova América.

De fora, formávamos um par estranho. Jefferson era alto e magro, eu era — e ainda hoje sou — baixo e corpulento. O seu rosto era angulado, o meu era redondo. Ele tinha olhos azul-escuros, os meus eram castanhos. O seu cabelo, agora branco, ainda ostentava laivos de ruivo, o meu era negro. Ele tinha a pele clara, eu, a pele morena. O meu rosto era pálido, o dele também, mas com sardas. A nossa disparidade de idades — eu tinha sessenta e poucos anos, Jefferson, sessenta e muitos — não fazia diferença alguma.

Os Franceses adoravam Jefferson e, quando cheguei a Paris, ainda circulavam histórias sobre a sua conduta, já muitos anos depois da sua estadia por lá. As inconsistências da sua vida eram um eterno tópico de conversa. Era o autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, em que afirmava que todos éramos iguais. Mas tinha levado com ele dois criados mulatos, que os parisienses sabiam serem seus escravos. Estes criados eram membros da família Hemings; os seus descendentes, se os tivessem, seriam também propriedade de Jefferson. Além do mais, era de conhecimento geral que Jefferson ajudara o marquês de Lafayette a redigir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que também garantia a igualdade de todos em França. Este documento tivera uma enorme influência no início da Revolução Francesa, e os dois homens tinham permanecido amigos para toda a vida.

Estas ironias empolgavam, ou melhor, deliciavam a elite francesa. Jefferson nunca referia os escravos mulatos nos salões que frequentava, mas as pessoas diziam que os tratava tão bem como os criados franceses a quem pagava. Também nunca referia a sua ajuda a Lafayette; na qualidade de embaixador, estava proibido de interferir nos assuntos de França. Decidira, portanto, aconselhar o amigo em privado. Dado que ouvira estas histórias vezes sem fim quando vivia em Paris, eu tinha uma curiosidade irreprimível de conhecer este homem. As descrições apontavam para um indivíduo singular, de excepcionais qualidades de mente e coração.

Quando terminámos a refeição, Jefferson levantou-se da mesa.

— Gostaria de lhe mostrar os desenhos que fiz da universidade. Vamos, então, aos meus aposentos privados. — disse-me Jefferson.

Começava a escurecer lá fora. Jefferson pegou num grande candelabro que estava em cima da mesa para alumiar a travessia do vestíbulo de entrada.

Ali estava eu, atónito, a seguir atrás de Thomas Jefferson. Um sacerdote de Portugal, na companhia de um dos homens mais famosos — se não o mais famoso — da América. Mais ainda, ele não queria apenas que eu o ajudasse a criar a sua universidade, mas também que lá leccionasse. Muito em breve, suspeitei, seria atormentado pela decisão que teria de tomar um dia. Sabia de antemão que queria ficar na América. Mas o que preferia? Uma missão diplomática, um cargo sem dúvida prestigiante? Ou dedicar o meu tempo a estudos académicos na Virgínia rural? Na devida altura, era claro, teria de decidir. Ainda que não fosse uma decisão fácil, poderia sentir-me mais bem-aventurado do que me sentia?

Livro: "Leonor e José - Paixão, tragédia e revolução da idade das luzes"

Autor: Julieta Almeida Rodrigues

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 5 de setembro de 2024

Preço: € 16,90

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Os aposentos privados de Jefferson eram compostos por uma suíte que começava na sua biblioteca, que ele apelidava de sala dos livros. Todo o espaço estava iluminado por candelabros bem posicionados. Quando referi o ambiente tão luminoso, Jefferson explicou que usava velas de cera de espermacete, feitas de óleo de baleia. Segundo ele, eram as que davam melhor luz.

À semelhança da sala de jantar, a decoração da biblioteca incitava conversas intimistas. As portas eram de uma madeira escura, requintada. As paredes estavam inteiramente preenchidas, do chão ao tecto, com livros, mapas, quadros e parafernália. Uma gravura, num canto, mostrava Benjamin Franklin com o seu peculiar gorro de pele de castor.

— Agora tenho tempo para me dedicar às coisas a que dou valor, àquilo de que gosto — declarou Jefferson. — Venha aqui ver os meus desenhos. Deu-me muito prazer conceber estes esboços para a futura universidade.

Seguindo a indicação de Jefferson, sentei-me a uma mesa perto da janela — que tinha uma forma hexagonal bastante rara —, e ele trouxe os desenhos que acabara de retirar da secretária ali mesmo ao lado.

— Veja o que já fiz! Gosto muito de chamar à universidade a minha «aldeia académica». No extremo norte, há um edifício redondo, a Rotunda, e é aí que vai ficar a biblioteca. Vai ser construída seguindo o modelo do Panteão de Roma. Quero uma cúpula com um óculo a meio, mas será coberto com vidro, não o posso deixar aberto, como em Roma. Vai ser um espaço de uso diário, não pode ter chuva a entrar por um buraco aberto a meio do tecto!

Soltámos uma gargalhada.

— É verdade — concordei.

— Concebi a ideia de um relvado central rectangular, com duas filas de edifícios baixos de cada lado. A primeira fila de casas terá jardins nas traseiras.

— Não sabia que apreciava tanto a arte da arquitectura — comentei, enquanto admirava os desenhos à minha frente.

— É um dos meus prazeres! Gosto muito do arquitecto italiano Palladio, por isso quero que este recinto seja agradável aos olhos de quem o admirar.

— Como planeia usar os edifícios? — Apontei para estes nos desenhos.

— Cada um dos lados do relvado terá aposentos, tanto para estudantes, como para docentes. Os jardins por trás da primeira fila de casas terão árvores, hortas, flores e, possivelmente, gado. Todas estas zonas verdes serão cercadas por muros de tijolo em forma de serpentina. Os edifícios mais afastados do relvado serão zonas de encontro: salas de aula, salas de refeições, salas de estar e tudo o mais.

Analisei os desenhos em maior pormenor.

— O senhor desenha como um especialista! — disse.

— Queria referir-lhe um detalhe sobre os edifícios que ficam na primeira fila, os que estão voltados para o relvado. A luz da Virgínia vai, de certeza, reflectir-se nas fachadas, que vão ser pintadas de branco. Uso a designação francesa, Lumiѐre Mystérieuse, para referir esta luz, considero-a inexplicável. Agrada-me pensar que esta beleza inspirará os estudantes, já para não falar dos professores, a sentirem não apenas alegria no estudo, mas também a porem em prática as noções de virtude que todos partilhamos. — Enquanto Jefferson pro- feria estas palavras, as suas sobrancelhas pareciam flamejar.

— É bem possível! — Não sabia ao certo até que ponto Jefferson estava a falar a sério, por isso decidi responder pelo seguro. — Como português que sou, conheço bem a importância da luz do sol como garantia de um estado de espírito agradável. E essa agradabilidade, poderá, sem dúvida, inspirar um bom carácter e estimular o estudo árduo. Quando será inaugurada a universidade?

— Vai tudo depender do financiamento, mas já comecei a con- versar sobre o assunto com o governo do Estado da Virgínia.

— Estes desenhos são clássicos, mas planeados para se poder usufruir de um ambiente tranquilo e pastoral. Sente-se neles um sen- tido de comunidade. O senhor é mesmo um visionário! Que outra pessoa pensaria em construir edifícios tão magistrais em paragens tão desertificadas, no meio do nada?

O projecto era deveras fascinante e continuámos a debater alguns pormenores arquitectónicos por mais algum tempo. Quando colocou os desenhos de lado, Jefferson disse que, dentro em breve, teria o prazer de me mostrar o local onde imaginava, no futuro, outras edificações.

Levantei-me a seguir para examinar a estante de livros que ficava mais próxima. A biblioteca de Thomas Jefferson era enorme e diversificada. Alguns livros apresentavam uma encadernação simples de couro; outros ostentavam padrões de encadernação mais elaborados, com letras em folha de ouro. Reparei numa prateleira com livros sobre o tema Révolution, tinham as lombadas todas escritas em francês.

— Ainda bem que não tenho de lhe traduzir os títulos franceses! Comecei a coleccionar estes livros quando vivia em Paris — disse Jefferson. — Todas as tardes, tirava umas horas para visitar livrarias.

— Que sorte a dos Franceses por terem tido, primeiro, o senhor Benjamin Franklin e, depois, a si como embaixadores.

— O senhor Franklin possuía todas as qualidades sociais que me faltavam: adorava os salons parisienses e as suas mulheres, jovens ou mais velhas. Também adorava desafiar o protocolo francês, vestindo-se como um simples quaker.

— Quando preparei o meu elogio ao senhor Franklin na Academia Real das Ciências de Lisboa, li tudo o que se tinha publicado sobre ele.

— Deu uma palestra acerca do meu amigo?

— Descrevi o senhor Franklin como o representante por excelência das Lumières, do Século das Luzes. Falei sobre os seus ideais revolucionários, o seu internacionalismo e as suas experiências com electricidade.

— Os seus colegas apreciaram a apresentação? — Jefferson cruzou os braços momentaneamente, como era seu hábito. Seria uma atitude defensiva? Não me era possível confirmar, mas desejei em silêncio que não sentisse ciúmes do meu elogio ao velho ícone americano.

— Apreciaram, sim. O senhor Franklin era um «indagador da natureza», algo que sempre tentei aplicar ao meu trabalho.

— Adorei quando os Franceses o apelidaram de «embaixador eléctrico». Eles tinham conhecimento das experiências de Franklin relativas à electricidade. Mas a sua alcunha tinha um significado oculto: a liberdade tornara-se eléctrica, inevitável.

— O nosso Franklin actual é um académico brasileiro chamado Andrada e Silva, um homem que a Academia Real das Ciências de Lisboa enviou numa tournée pela Europa quando ainda era estudante. Teve tudo pago. Posteriormente, foi professor na Universidade de Coimbra durante muitos anos.

— Onde vê as semelhanças entre estes dois homens?

— Combinam o fervor científico com o zelo revolucionário. — E o que faz Andrada e Silva nos dias que correm?

— Está a posicionar-se para se tornar um dos fundadores da independência brasileira, se essa possibilidade algum dia vier a surgir. Espero que não, prefiro que o Império Português se mantenha intacto. — Está a ver o que acontece quando damos asas para voar àqueles que estão mais perto de nós? Eles abandonam-nos — observou Jefferson, com uma gargalhada jovial.
Devolvi-lhe a expressão, ele tinha razão. Gostei imenso da franqueza do meu anfitrião. Era inspiradora e, mais ainda, fazia-me sentir completamente à vontade.

A seguir, Jefferson dirigiu-se para uma mesinha, onde verteu cuidadosamente vinho Madeira em dois copos.

— À Universidade da Virgínia — disse ele, erguendo o copo. — Viva! — respondi.

— É interessante que os meus livros sobre Révolution tenham chamado a sua atenção, já há algum tempo que não olhava para eles — comentou Jefferson. — Com a Revolução Francesa em curso quando vivi em Paris, deitei mão a temas que me tocam o coração; acima de tudo, a chama sagrada da liberdade.

— Temas que lhe são dilectos a si, a mim e à nossa República das Letras — retorqui.

— Efectivamente — disse o meu anfitrião.

— Tenho nessa estante um texto escrito em português que é deveras intrigante. Devem ter-mo enviado para aqui depois do meu regresso a Monticello. Como não sei ler a língua, não teria tomado a iniciativa de o comprar.

Jefferson tirou um estojo de cabedal preto atado com uma fita vermelha e trouxe-o até mim.

— É um manuscrito que me parece muito singular. Sempre tive curiosidade em saber o que é. — O meu anfitrião fitou-me com olhos inquisitivos.

— Deixe-me ver — pedi, tomando o estojo das suas mãos e abrindo-o.

— Como poderá ver, é um livrinho feito à mão que tem uma bolsinha na parte de trás. Dentro da bolsa, encontra-se uma carta dobrada em quatro, escrita com uma caligrafia diferente.

Ao examinar o livrinho, senti uma tontura. Tenho a certeza de que empalideci, pois Jefferson perguntou-me como estava, se me sentia bem.

— Não vai acreditar no que lhe vou dizer — comecei. — Estas são as memórias de uma mulher portuguesa de quem fui muito próximo em Nápoles. A minha Leonor! As nossas famílias conheciam-se bem; e nós mudámo-nos todos de Roma ao mesmo tempo. Mais tarde, ela tornou-se famosa como uma das poucas revolucionárias da República Napolitana. O rei e a rainha de Nápoles, Ferdinando e Maria Carolina, mandaram-na executar em 1799.

— Qual era o apelido da senhora?

— Fonseca Pimentel. Era filha do marquês e da marquesa Pimentel, nobres portugueses.

— Ela tem uma caligrafia muito fora do comum. E tão bem desenhada que imaginei pertencer a uma mulher com uma certa altivez — disse Jefferson.

— Como é que este manuscrito lhe chegou às mãos?

— Deve ter sido um livreiro francês que mo enviou. Ainda hoje continuo a receber livros de França.

— Os revolucionários napolitanos fugiram para França após o fracasso da República. A maioria viajou de barco para Toulon e, mais tarde, muitos instalaram-se em Paris. Algum deles deve ter levado o livrinho da Leonor, tendo-o vendido mais tarde, para alimentar a família. O governo francês não foi propriamente acolhedor para com os exilados. — Jefferson permaneceu em silêncio. — Meu caro senhor, tivemos um dia longo. Dou conta de que são quase nove e meia. — Senti nesse momento uma necessidade indescritível de estar sozinho. Queria ler as palavras de Leonor, senti-la perto de mim. — Acha que me posso recolher e levar o manuscrito comigo? Prometo contar-lhe tudo sobre ele quando terminar.

Certainement! — A expressão de Jefferson foi elegante ao responder na afirmativa francesa. — Vou mostrar-lhe o seu quarto e espero que durma bem.

— O senhor é um anfitrião generoso! Passámos um serão encantador, filosófico.

— A cátedra de Botânica da Universidade da Virgínia dar-lhe-ia grandes alegrias. Além do mais, se aceitasse, teria uma aposentação confortável e lucrativa.

— Obrigado, senhor Jefferson, vou ponderar a sua oferta. No entanto, tenho de esperar por notícias sobre a minha possível nomeação. Como bem sabe, a família real portuguesa está actual- mente a residir no Rio de Janeiro. O Brasil fica tão longe! Oxalá eu tivesse notícias mais amiúde. — Não queria parecer ingrato, por isso acrescentei, enquanto ia afagando o queixo: — Já ouvi dizer que estes bosques proporcionam ocupações seguras e inúmeras oportu- nidades a um botânico como eu.

Quando voltámos a atravessar o vestíbulo de entrada, com Jefferson empunhando novamente um candelabro, fui alertado de uma coisa que já sabia: o meu anfitrião não vivia sozinho. Alguns dos seus netos, tinha onze, rodearam-nos por uns momentos para cumprimentarem o avô. Formavam um grupo animado. Dois ou três lançaram os braços à sua volta e disseram que tinham sentido a falta dele à mesa do jantar. O meu anfitrião apresentou-me amavelmente como amigo de André Thouin e disse que eu ficaria de visita alguns dias.

— Qual de vocês consegue repetir este nome: «Correia»? É português — explicou Jefferson às crianças. Uma menina, que ele apresentou como sendo a Ellen, fez um esforço num sotaque inglês carregado. Todas as outras crianças se riram, já que ela não conseguira nem sequer chegar perto da pronúncia portuguesa.

— Tenho a certeza de que um dia vais conseguir dizer bem este nome — disse Jefferson, rindo-se também. — Só precisas de treino. — Avô, podemos ir ver o calendário do Thouin? — perguntou uma menina mais pequena. — Queria ver as imagens outra vez.

— Agora já é tarde, mas talvez amanhã. Isto se todos se portarem bem e forem já para a cama.

O grupo dispersou-se com lamúrias e gestos de desilusão.

Como as crianças se devem divertir a aprender com este avô, pensei para com os meus botões.

O meu anfitrião conduziu-me ao meu quarto quando entrámos no corredor da parte norte da mansão. Encontrava-me, finalmente, sozinho, apenas eu e os meus pensamentos. Fechei a porta e encostei-me a ela, reparando então que estava uma noite de Verão deveras amena. A cama tinha a forma de uma alcova e notei que a colcha fora elegantemente aberta, facilitando o meu deslizar lá para dentro. Um pote azul e branco fora puxado de debaixo da cama e colocado aos seus pés. Várias velas iluminavam o espaço, criando um ambiente acolhedor.

Esmorecido junto à porta, pressionei de encontro ao peito, com as duas mãos, o manuscrito encadernado a couro de Leonor. A vida tinha, por vezes, coisas extraordinárias! Abrindo o livrinho, virei freneticamente as páginas, lendo uma linha aqui, outra ali. Estaria realmente a ver, realmente a segurar naquilo que eu adivinhava ter comigo? Seriam estas, efectivamente, as memórias de Leonor, escritas pelo seu próprio punho? — Leonor, o meu amor de juventude em Nápoles? Ao folhear o texto devagar, fui constatando que, na verdade, eram, de facto, eram! Não apenas identifiquei algumas descrições da cidade onde cresci, como reconheci distintamente a assinatura da autora, Leonor Fonseca Pimentel. Como poderia alguma vez tê-la esquecido? Era a mulher com quem quisera, em tempos, fugir para casar; uma pessoa que toda a vida guardara na lembrança. Que não conseguira extirpar da minha mente.

Senti as pernas bambas, os joelhos tremeram-me.

Procurei a seguir a bolsinha posterior do manuscrito e, ao mesmo tempo, não conseguia parar de andar de um lado para o outro no quarto. Sentia um cheiro a bolor instalar-se nas minhas narinas, tinha a certeza de que ninguém mexera nesta relíquia há muitos anos. Quando puxei para fora a carta dobrada em quatro, um raminho de alecrim caiu ao chão. Oh, meu Deus! Leonor mantivera até ao fim o hábito de espalmar ervinhas aromáticas dentro dos seus escritos. O título no cimo da carta dizia Uma Execução em Nápoles e fora escrito por uma freira, soror Amadea Della Valle. Dizia ser a madre superiora da secção feminina da prisão da Vicaria, onde Leonor fora encarcerada.

Comecei a ler a carta e, para meu horror, constatei que descrevia a morte de Leonor. Eu vivia em Londres aquando da sua execução e soube pelos jornais ingleses que ela subira ao cadafalso, mas não conhecia de todo os pormenores.

Quando terminei a leitura de soror Amadea, meti, desesperado, o rosto entre as mãos. Um odor a sangue enchia-me as narinas: Leonor pagara pelos seus ideais com a própria vida. Fui então acossado por um sentimento de profunda vergonha. Eu deixara o amor da minha juventude abandonado ao seu destino.

E estava agora a ler os horríficos pormenores da sua execução, coisas que preferia ter deixado para trás. Leonor combinava um intelecto potente com uma vocação para a escrita de poesia lírica. Acreditava que os pobres mereciam receber uma educação para alcançarem um futuro melhor. Ao folhear as páginas iniciais das memórias de Leonor, reconheci o debate que ocorrera em França após a Revolução. O Dr. Guillotin, um médico francês do qual deriva o nome da guilhotina, propôs uma reforma da pena capital. A sua «máquina» era misericordiosa devido à sua velocidade cirúrgica. E deveria ser aplicada em todas as execuções — não apenas às da aristocracia —, como uma medida igualitária. O enforcamento, por seu lado, era longo, desumano e brutal.

A personalidade de Leonor ia emergindo à medida que eu passava uma página a seguir à outra, e suplantava a das muitas pessoas com quem traváramos conhecimento. Era superior não apenas em relação a todas as mulheres que eu conhecera em Nápoles, como também a todas as que conhecera posteriormente.

A sua ousadia, em particular, tornava-a muito diferente de mim. Eu podia ser um botânico de reputação mundial elogiado por Jefferson; mas tinha decepcionado Leonor. Ela era inabalável nas suas convicções. Seria ela ainda — passados tantos anos — o melhor de mim? Se eu me atrevesse a responder a esta pergunta, a resposta seria inegavelmente sim.

Por uma fracção de segundo, questionei-me se soror Amadea seria a pessoa que afirmava ser no fim da carta. A narrativa era respeitosa, a freira assumia ser uma admiradora de Leonor. Era o testemunho de uma mulher compassiva, que descrevia o derradeiro infortúnio da vida de uma outra mulher. A escrita era de uma pessoa instruída que sabia expressar-se. Poderia aquele nome ser um pseudónimo? Não importava, concluí.

Ao sentir-me inspirado, levei o raminho de alecrim ao nariz. Não restava qualquer aroma, haviam passado demasiados anos. Mas este recordou-me vivamente o dia em que me despedi de Leonor.

Apertei o raminho firmemente entre os dedos.

Foi neste momento que decidi registar estes apontamentos acerca da minha estadia ou, melhor dizendo, das minhas estadias em Monticello. O futuro dir-me-ia o que fazer com eles. Queria preservar uma fragrância, uma reminiscência, do passado. Algo que pudesse transportar-me para um futuro incerto.