Letícia Novaes responde agora por Letrux, um clarão vermelho na nova música brasileira. Ela que já conhece bem o meio, depois de dez anos e três discos partilhados com Lucas Vasconcello, em Letuce.
Editado em 2017, "Letrux em Noite de Climão (2017)" foi considerado um dos melhores álbuns do ano por diversos meios de comunicação brasileiros e premiado pelos Prémios Multishow. Na sua estreia a solo, Letrux é a descendência perdida entre a espiritualidade tropical de Rita Lee e a sexualidade emancipada de PJ Harvey, nomes que a própria assume como influências. E esse furacão vai andar por cá. Não apenas para o espetáculo no B.Leza, que dita a abertura do festival MIL, como para uma série de concertos que a levará também ao Porto, no dia 28, e a Coimbra, no dia seguinte.
Antes falou com o SAPO24, sobre o seu regresso, muito desejado, a terras lusas, sobre "esse planeta terra que anda horroroso" e sobre um Brasil polarizado "onde quem fica calado coopera com o opressor".
O que perdeu de Letuce e ganhou com Letrux?
Acho que Letuce, querendo ou não, era mais uma banda que um projeto a solo. Eu dividia todas as funções com o Lucas [Lucas Vasconcellos] e a última palavra não era minha, a gente tinha de chegar num consenso. Em Letrux faço direção artística, escolho as músicas, componho, tenho parcerias, claro, mas acho que tenho um controlo maior da minha obra e do que quero passar e fazer enquanto artista. É quase como virar adulta.
Em Letrux é outra Letícia ou é a verdadeira Letícia?
Não sei [risos]. Acho que ainda sou a mesma Letícia de quando tinha cinco anos. Adquiri uns traumas e fiquei mais forte; espinha na cara e a gente vai crescendo. Aquela Letícia [de Letuce] era a verdadeira e essa também é. Estou mais adulta e posso estar um pouco mais esperta para o mundo, para o que está acontecendo, para quem eu sou, qual o lugar onde me encontro e onde a minha arte toca nas pessoas. Cínica acho que nunca vou ser porque o meu coração é muito puro.
E que lugar é esse onde diz que se encontra?
Encontro-me num lugar que envolve intimidade e emoção. Sinto muito isso nos shows e depois deles. Vivemos muito numa era de like, mas comigo não é assim. As pessoas escrevem-me, mandam-me longos e-mails a dizer coisas muito profundas. Então acho que cheguei num lugar em que entendo que a minha sensibilidade com o mundo, quando eu falo sobre ela, sensibiliza a sensibilidade das pessoas. É uma roda da fortuna. E fico muito feliz com esse lugar; o planeta terra anda horroroso. Ser sensível ainda é estar desperto para as coisas que valem a pena na vida.
É triste perceber que as pessoas não acreditam mais na amizade, tudo é fake news, tudo é uma pós-verdade. É o fim, n'é? É o fim do pensamento intelectual
Atalho já e pergunto-lhe: se o planeta terra anda horroroso, como anda o Brasil por estes dias?
Complicado, é muito complicado. É uma sensação de terror, mesmo. Com um presidente preconceituoso, misógino, racista. É muito triste, mas eu já passei do estado da raiva. Na época da eleição fiquei com muita raiva no coração, mas agora cheguei num lugar de profunda tristeza. Tristeza por perceber que há uma direita radical que só pensa em si, que não enxerga além do próprio umbigo. É triste, é triste. É triste perceber que as pessoas não acreditam mais na amizade, tudo é fake news, tudo é uma pós-verdade. É o fim, n'é? É o fim do pensamento intelectual. Está tudo polarizado; na família ou em qualquer lugar que você vá, é muito esquisita a sensação de polarização. Você não sabe se a outra pessoa te vai amar ou odiar só porque você votou noutra pessoa.
Já sentiu esse peso?
Já, na época da eleição foi pesado porque manifestei-me muito nas redes sociais e senti muito ódio. Muita gente me desejando coisas muito ruins. Claro que podem ser robôs, mas mesmo assim é um robô programado para odiar.
Você não sabe se a outra pessoa te vai amar ou odiar só porque você votou noutra pessoa
E sentiu-se penalizada enquanto agente criativa por estas opções que tomou ou pelo que disse durante o período pré e pós campanha eleitoral?
Não... Assim, pode ser que algum festival ou alguma marca possa não ter escolhido o meu show por conta das minhas opiniões. Pode ser que sim, mas isso não chegou a mim. E se chegar não tem problema. Porque, nesse momento, quem fica calado coopera com o opressor. E eu não vou ficar calada. É um momento muito complicado da nossa história. Fazer arte é uma forma de resistência, uma forma de a gente se manter sã. As pessoas falam que artistas é tudo maluco e eu olho e falo 'meu Deus, eu me acho tão sã'. Tão sã fazendo arte enquanto as pessoas estão nesse atraso cármico. E aí fala que artista é que é maluco? Acho hilário.
Por algumas expressões que já utilizou, pergunto se é uma pessoa espiritual?
Meu pai e minha mãe são muito espirituais. Inclusive, meu pai tem um centro espírita e a minha mãe um grupo de reiki. Desde criança fui exposta a isso e não consegui não ser absorvida. Claro que tive a fase de questionar Deus e questionar existências. Mas, para mim, quando arrepio é uma confirmação. Todas as vezes que estive em situações espiritualizadas, arrepiei e confirmei. E acho que o show tem um pouco essa atmosférica espiritualizada. A comunhão entre plateia e música é mágica. Claro que o show é um show e não o quero tornar um ritual. Mesmo sentido que existem alguns momentos em que falo: 'olha, aconteceu alguma coisa aqui'.
Tem alguma ligação especial com a cor vermelha?
Em 2016, aqui no Brasil, a gente teve o impeachment [destituição da Dilma]. Por essa altura realizaram-se muitas passeatas onde o pessoal de extrema direita começou a ir de verde amarelo e o pessoal de esquerda, pela cor do próprio PT, começou a ir de vermelho. E isso foi muito forte. Você saía na rua e era um statement muito forte. O disco ["Letrux em Noite de Climão"] não tem letras especificamente politizadas, apesar de ter algumas metáforas, mas foi feito nessa época de golpe, de um Brasil afundando, de amor afundando. Ficou impossível fazer um show azul, tranquilo e calmo. Vermelho é um statement. Vermelho também é humano, é a cor do sangue e toda a gente sangra, n'é?, apesar dos preconceitos e das diferenças.
A escrita é algo catártico para sí?
Acho que tudo começa na palavra e, apesar de ser cantora, ainda me enxergo muito como escritora. Não sei se a escrita é algo catártico. A escrita, às vezes, pode ser um pouco caótica ou desorganizada, mas é um lugar que me interessa muito e pelo qual tenho muita curiosidade. Quando me sento para escrever ou quando estou dentro do carro ou do avião e me dá uma ideia e eu saio escrevendo. Gosto muito do processo.
Escrever num diário é uma forma de você se entender
Esse hábito de escrita vem do período, na adolescência, em que tinha diários?
A minha mãe é professora aposentada e ela sempre me incentivou a escrever, a ler bons livros e a ter diário. Tive esse incentivo maravilhoso dentro de casa, que eu agradeço muito. Claro que isso também já devia fazer parte da minha personalidade, mas ter um incentivo ajuda muito. E recomendo aos pais a incentivar também os seus filhos. [Ter esses diários] era uma forma de fazer terapia sem ter terapeuta. Sou super a favor de terapias, já fiz várias e estou até para voltar, mas escrever num diário é uma forma de você se entender. Recomendo.
E era terapêutico porquê? Li que sofreu bullying durante esses anos.
Na adolescência, sim. Era muito alta, muito magra, muito nariguda. Tudo muito. E aí fui alvo de bullying, uma coisa estúpida. E o diário era um lugar onde podia desabafar, pensar que aquilo era passageiro, que aqueles meninos eram idiotas e que iam crescer e se tornar ainda mais idiotas. Escrever conseguia tranquilizar-me.
Como é que pode, através da sua música, passar o que passava para os seus diários?
Tenho um público muito jovem e eles falam muito isso, de me admirarem e de quererem crescer e ser fortes como eu. Porque eu acho que as músicas falam um pouco sobre isso, sobre não afundar e ir até ao fim de uma história. Depois de um ciclo, começa outro. Do chão a gente não passa; ficamos tristes, choramos, dançamos e depois alguma outra coisa te sorri.
Quais são as suas maiores influências, da música à poesia?
As minhas maiores influências são mulheres. Desde que sou criança que ficava muito impressionada quando via uma escritora ou uma cantora mulher. Nomes como Maria Bethânia, Janis Joplin, PJ Harvey, Patti Smith, Rita Lee, Marina Lima... Gosto muito de escritoras como a Sophia de Mello [Breyner] ou Clarice Lispector. Acho que essas mulheres me acompanham desde sempre e sempre vão estar perto. Fazem parte da minha formação enquanto ser humano.
Nos seus concertos, costuma declamar poesia. Já declamou, inclusive, Herberto Helder. O que vamos poder ouvir por cá?
Faço um show à parte onde recito muita poesia, mas no próprio Letrux em Noite de Climão eu declamo algumas poesias: um poema meu, um da Hilda Hilst e outros que sinto que o show peça. Já estou a preparar algum repertório para Portugal.
Será a primeira vez que vem a Portugal com banda completa. O que podemos esperar desta série de concertos, onde se inclui o MIL?
Temos feito esse show já há um ano e meio, mas esta será a nossa primeira vez fora do Brasil. A banda está, nesta fase, numa comunhão muito bonita e os shows estão cada vez mais sincronizados. Estamos muito animados e queremos chegar logo. Significa muito isso da primeira tour internacional, com tanta gente em Portugal pedindo, e não só brasileiros. Rola uma ansiedade natural e vai ser lindo.
Vai rolar Noite de Climão na abertura do MIL, onde atuará também a Lula Pena. Vão partilhar palco em algum tema?
Sim, vamos cantar uma música com a Lula Pena. Mas não sei se conto para não estragar a surpresa. Será uma música muito conhecida, uma música brasileira, que escolhemos e que fala muito dos momentos atuais. Tem uma letra fortíssima.
O MIL - Lisbon International Music acontece entre os dias 27 e 29 de março, em várias salas do Cais do Sodré, em Lisboa. O espetáculo de abertura da terceira edição, no dia 27, contará com as atuações de Lula Pena e Letrux numa travessia pelo mundo da lusofonia através da música. A noite terminará com a Noite Bacaneza, edição portuguesa de uma série de festas que procuram celebrar Carlos Eduardo Miranda, músico e produtor fundamental na indústria da música brasileira. O acesso ao espetáculo está reservado aos detentores dos bilhetes gold festival e dos pro tickets, à venda nos locais habituais e no site do evento.
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