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A FIGURA DE MAIMÓNIDES

A arte de Galeno não cura senão o corpo, mas a arte de Maimónides cura o corpo e a alma. A sua sabedoria podia curar os ignorantes dos seus males. Se a Lua se submetesse à sua arte, ele podia livrá‐la das suas manchas quando ela brilhasse na sua plenitude, curá‐la das suas imperfeições periódicas e, na altura da sua conjunção, impedi‐la de minguar.

Ibn Sana’ al‐Mulk (século XII)

Procure‐se o nome Maimónides em qualquer dicionário ou história da filosofia, da religião ou da medicina, e aparecerá envolto num radioso enxame de epítetos: «culto», «erudito», «renomado», «brilhante», «eminente», «ilustre», «lendário», «a Grande Águia», «um segundo Moisés». Mas o que explica ao certo a sua extraordinária reputação?

As perseguições e adversidades por que Maimónides passou durante grande parte da sua vida não parecem extraordinárias para a vida de um judeu na Idade Média. Mesmo os seus feitos intelectuais, realizados sob as difíceis circunstâncias das suas peregrinações forçadas, podem parecer magistrais, mas não necessariamente superiores aos alcançados por homens em condições semelhantes de exílio (ocorre‐me Dante, por exemplo). Os esforços de Maimónides a fim de harmonizar as várias correntes filosóficas gregas e judaicas não são únicos: no século I a.C., Fílon de Alexandria tinha tentado, com algum êxito, harmonizar o pensamento grego e o pensamento judaico, lançando as bases para todo o futuro comércio intelectual entre Atenas e Jerusalém. Compreende‐se melhor a importância de Maimónides se se considerar, por um lado, o interesse que demonstrou ao longo de toda a vida pelas leis que definem o povo judeu, colectiva e individualmente, e, por outro, as suas tentativas de compreender a nossa relação com o Criador, através do poder da razão.

Para Maimónides, a identidade dos judeus residia nos Dez Mandamentos que Deus deu a Moisés, transmitidos no Monte Sinai num discurso desprovido de fonemas distintos. (O grande Salomão ben Isaac, mais conhecido por Rashi, foi mais longe e argumentou que Deus proferiu a totalidade dos mandamentos de uma assentada incompreensível e aterradora. Outra exegese midráchica imagina a voz de Deus transformada em sete vozes falando em 70 línguas, uma cacofonia digna de Babel que se dirigia simultaneamente a todos os povos do mundo e não era compreensível por nenhum.) Começando com este momento fundador de instrução divina, a Lei Mosaica foi codificada, estudada, interpretada, anotada e ampliada de diversas formas. O resultado foi a fixação de uma Lei Escrita, tal como consta do livro do Êxodo e dos outros quatro livros do Pentateuco, a que mais tarde, progressivamente, se acrescentaram as leis dos 24 livros do cânone judaico, ou Tanakh. Esta Lei Escrita (em hebraico, torah she‐bikhtav) foi complementada pela Lei Oral (torah she‐ba’al peh), dada por Deus a Moisés, e transmitida por este e ensinada aos líderes rabínicos de cada geração judaica subsequente, sob forma de um código legal paralelo, mais tarde preservado nos dois Talmudes, o da Babilónia e o da Palestina (ou Jerusalém). Esta Lei Oral devia incluir, além das leituras originais da Lei, todas as interpretações futuras — um manancial de comentários e explicações que incluía tudo o que tinha sido discutido no venerando passado, tudo o que andava a ser discutido no conflituoso presente, e todas as interpretações possíveis no incognoscível amanhã. Só no século II d.C. é que este enorme conjunto de material sagrado e erudito (englobando tudo o que a tradição rabínica pudera compreender) foi apresentado por uma ordem ou sistema evidente: durante a ocupação romana da Judeia, o rabino Judah ha‐Nasi (por cuja erudição era conhecido como Judá, o Príncipe) tentou uma primeira classificação em 63 tratados que hoje conhecemos como Mixná, a parte mais antiga do Talmude. Tenha ela sido escrita pelo próprio Judah ha‐Nasi (como Maimónides afirmava), ou só tenha sido escrita muito mais tarde (como sustentou Rashi), a Mixná tornou‐se a base de quase todos os escritos talmúdicos subsequentes. Mas ainda havia muito a fazer.

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Além dos Dez Mandamentos originais, muitos outros preceitos e decretos aparecem dispersos, tanto na Bíblia hebraica como no Talmude, sem estarem agrupados de acordo com o tema ou o uso, mas antes apresentados numa variedade desconcertante de títulos e contextos. Nove séculos depois de Judah ha‐Nasi, Maimónides empreendeu o projecto colossalmente ambicioso de extrair todos os preceitos de teor obrigatório, fosse qual fosse a sua importância, e organizá‐los em grupos temáticos, interpretando‐os e comentando‐os, e traduzindo‐os em termos lógicos, para ajudar todos quantos tivessem boa vontade na «grande paixão pelo estudo» que lhes permitiria levar sãs vidas judaicas.

Para Maimónides, os judeus tinham forçosamente de acreditar que as leis que os governavam tinham sido prescritas pelo Divino e que a dádiva da razão, concedida por Deus, os obrigava a estudar e a tentar compreender essas leis o mais profundamente possível, de acordo com as capacidades de cada indivíduo. O conhecimento conduz ao amor de Deus, escreveu Maimónides, e «o amor será conforme a medida do seu conhecimento». Talvez a necessidade de questionar seja um dos traços definidores do judaísmo ao longo dos tempos. Como é o desejo de inquirir e interpretar.

A ambição de Maimónides era nada mais nada menos do que definir em termos tão claros quanto possível, tanto para si como para as gerações vindouras, o que é ser judeu. Maimónides não era um historiador: embora os acontecimentos registados na Torá e no Talmude se lhe afigurassem indubitavelmente verdadeiros, ele via a história bíblica «pelas lentes da lenda rabínica». A sua resposta tornou‐se, não uma série de aforismos ou uma súmula histórica dos sofrimentos do povo judeu desde o tempo do seu exílio, mas um sistema lúcido e atemporal de pensamento que fornece, mesmo para os seus leitores actuais, um fundamento racional à questão existencial em aberto «Quem somos nós, judeus?». Os autores de uma biografia de Maimónides argumentam enfaticamente que a maior conquista dele foi «ter ensinado os seus confrades a pensar; mostrou‐lhes como viver». Estas palavras bastariam como epitáfio de qualquer académico considerado digno de memória e louvor.

Um dos aspectos mais desconcertantes do pensamento de Maimónides é o facto de as suas aparentes contradições, até num mesmo parágrafo ou página, não parecerem preocupá‐lo. Para Aristóteles, as afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras ou ambas falsas: se uma é verdadeira, a outra tem de ser falsa, e vice‐versa: os unicórnios existem ou não existem. As contrárias, por outro lado, não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas falsas: os unicórnios voam, os unicórnios não voam. O filósofo político Leo Strauss sugeriu uma forma útil de lidar com as aparentes contradições nos escritos de Maimónides: «Podemos [...] estabelecer a regra de que, de duas afirmações contraditórias no Guia ou em qualquer outra obra de Maimónides, a afirmação que ocorre com menos frequência, ou mesmo que ocorre apenas uma vez, foi considerada por ele como verdadeira.» Para o leitor moderno, a ideia parece ecoar as palavras de Walt Whitman: «Será que me contradigo? / Pois bem, contradigo‐me, / (Sou imenso, contenho multidões.)» Porém, ao contrário das de Whitman, Maimónides não estava ciente das suas contradições: se estivesse, teria explicado que usava palavras diferentes para se adaptar à capacidade de compreensão de diferentes públicos, ou encontrar significados diferentes (mesmo se contraditórios) a cada leitura da Lei. Como diz o Talmude, «Sempre que um bebé procura [uma mama] para mamar, encontra leite, e o mesmo acontece com as questões da Torá. Sempre que uma pessoa medita sobre elas, descobre‐lhes um novo significado», por mais diferente que o significado possa parecer em cada ocasião. Já estão lá todos os significados possíveis: não há versões novas ou antigas do texto sagrado. As contradições surgem da descoberta de diferentes aspectos das mesmas palavras eternas e imutáveis. Questionar a persistência invariável da palavra de Deus é uma blasfémia. A fé não é um exercício filológico.

Em 1978, numa discussão acesa com o eminente crítico Harold Bloom, que imaginava a literatura como um ciclo constante de morte e reinvenção do texto às mãos de cada geração nova, a escritora americana Cynthia Ozick declarou que entender a expressão poética como um sistema fechado em si mesmo, que não se refere a nada além de si mesmo, era uma forma de idolatria. Segundo Ozick, na tradição judaica de interpretação da Palavra, «não há retardatários». Era este o significado das palavras na Hagadá da Páscoa, «Nós mesmos saímos do Egipto», e do midrache que afirma «Todas as gerações estiveram juntas no Sinai». Por conseguinte, no pensamento judaico, não há «nenhuma luta de poder com o original, nenhuma inveja do Criador». Só o criador de ídolos «espera competir com o Criador e se afadiga a inventar‐lhe um substituto». Maimónides formulou a mesma acusação sobre a tentativa de substituir a palavra dada por outras novas: «Se cada homem seguisse os caprichos do seu coração», escreve, seguindo a advertência de Números 15,39, «o resultado seria a ruína universal, pela estreiteza do intelecto humano.»

A grande e plural personalidade de Maimónides interessava‐se por quase tudo (à excepção, parece, da música e das artes visuais): religião e direito, evidentemente, mas também matemática, lógica e retórica, astronomia, comportamento ético e moral social, política e a questão do que pode ser conhecido. «Há o Maimónides defensor da tradição e o Maimónides pensador que procurou reformulá‐la, o Maimónides estudante de Aristóteles e o Maimónides crítico, o Maimónides crente e o Maimónides céptico. Qual é o verdadeiro Maimónides?», pergunta um notável estudioso de Maimónides.

Outro aspecto intrigante é a diversidade de estilos que Maimónides emprega nos seus escritos, uma variedade de tons discursivos que parecem provir de pessoas diferentes: conciso e claro na Mixná Torá, por exemplo, destinado ao leitor comum; ambíguo e luminosamente imaginativo no Guia, virado para um círculo muito restrito de sábios; paternal e compassivo nas suas epístolas e na sua obra médica. No Guia dos Perplexos e noutros textos, Maimónides não propôs uma concepção dogmática fechada da identidade judaica, mas antes uma visão multifacetada que, embora baseada nas leis estritas presentes nos textos sagrados, permaneceu aberta a uma panóplia de interpretações por parte de diferentes públicos, com variados níveis intelectuais. Só os leitores que interpretavam intencionalmente mal as palavras eram descartados. Na maior parte da sua obra, Maimónides encontrou uma relação equilibrada entre a obediência obrigatória à Lei e as origens misteriosas dessa Lei, não porque conciliasse as duas, mas por mantê‐las num diálogo contínuo.

Ele próprio admite que as suas ideias divergem das que se encontram em várias fontes estabelecidas e insiste em dar «uma interpretação diferente»: «Vereis que muitos dos Sábios, mesmo entre os comentadores, contradizem a [sua] interpretação de certas palavras e muitas noções expostas pelos profetas. Como não havia isto de acontecer nestes assuntos obscuros?» E concluiu, com honestidade: «Além disso, não vos obrigo a preferir a minha interpretação. Procurai compreender a sua explicação pelas observações que fiz, e a compreender também a minha. Só Deus sabe qual das duas cor‐ responde ao pretendido.» Esta atitude explica a riqueza dos textos de Maimónides.

Um homem ignorante, escreveu ele, «imagina que tudo o que existe não existe senão para ele, como se nada existisse para além dele. E, se lhe acontece alguma coisa que é contrária ao que deseja, ajuíza contundentemente que tudo o que existe é um mal. No entanto, se o homem considerasse e concebesse o que existe e soubesse o pequeno lugar que ocupa no universo, a verdade tornar‐se‐ia clara e manifesta para ele.» Talvez seja esta honestidade intelectual, apoiada por uma prodigiosa erudição, que faz de Maimónides «o mais sólido dos rabinos hebreus» como disse John Donne, e um dos mais notáveis buscadores da verdade.

Empreendi este livro plenamente consciente da minha ignorância em matéria de religião, da Halachá (parte legislativa do Talmude) e de medicina, e não sabendo nem árabe nem hebraico. A minha única desculpa é um ávido interesse pela demanda de Maimónides, que almejava compreender o que está para além das palavras, e a pôr esse conhecimento ao serviço do «Bem Maior». Sei que sigo os passos de centenas de enormes especialistas que analisaram e discutiram, com bastante inteligência e argúcia, os escritos de Maimónides ao longo dos séculos, até aos dias de hoje. Não posso reivindicar mais do que as duvidosas virtudes de um leitor curioso.

2

AL‐ANDALUZ

Assim foram os doces dias passados,
Quando, aproveitando o sono do Destino,
Nos comportámos como ladrões de prazer.

Ibn Zaydun (século XI)

Maimónides recebeu muitos nomes. No mundo árabe é conhecido como Musa ibn ‘Ubayd Allah, o israelita de Córdova; no judaico, como Ha‐Moreh (professor) ou Ha‐Rav ha‐Moreh, seguindo o título hebraico da sua obra mais conhecida, Moreh Nevukhim ou Guia dos Perplexos. Após a sua morte, os seus devotos admiradores designaram‐no pelo acrónimo Rambam (RaMBaM) ou Rabbeinu, «Nosso Mestre Moshe ben Maimon». A história da vida de Maimónides tem uma certa dimensão épica, inclusive mítica, e as histórias lendárias sobre os seus poderes milagrosos circularam muito antes e muito depois da sua morte.

Algumas das histórias têm o sabor de um conto das Mil e Uma Noites. Uma delas passa‐se durante a estada de Maimónides no Egipto, quando o sultão lhe impôs um teste para responder às acusações de um rival ciumento. O rival afirmara‐se capaz de provar que Maimónides tinha engendrado um plano infame para envenenar o sultão. Dado que, de acordo com o rival, toda a gente sabia que um veneno mortal podia tornar‐se inofensivo pela ingestão de outro mais forte, o sultão devia ordenar aos dois, ele e Maimónides, que preparassem o veneno mais forte que se pudesse imaginar: se fosse servida comida envenenada ao sultão, tudo o que ele teria de fazer seria tomar o veneno mais forte e a sua vida seria salva. O sultão concordou e ordenou a Maimónides que bebesse a preparação do seu rival e depois, como antídoto, a que ele próprio tinha preparado. Maimónides fê‐lo sem aparentemente sofrer efeitos nocivos. Mas, quando bebeu a preparação de Maimónides e depois a sua, o rival desmoronou e rapidamente expirou. Maimónides explicou então ao sultão o que tinha acontecido. «O meu rival sabia que eu podia preparar um veneno mais forte do que ele, pelo que elaborou um plano astuto: tomou um veneno lento antes de vir para o palácio e trouxe uma preparação inofensiva. Ao beber o que pensava ser o meu veneno mais forte, ficaria curado da mistura menos letal que tinha tomado em casa. Beberia então a sua própria mistura inofensiva e tudo ficaria bem, enquanto eu, entretanto, beberia a sua mistura seguida do meu próprio veneno forte, e assim, acreditava ele, morreria às minhas próprias mãos.» «O cão traiçoeiro!», exclamou o sultão. «Mas o que é que realmente aconteceu?» «Majestade, como suspeitei desse truque», respondeu Maimónides, «também preparei uma mistura inofensiva.»

Livro: "Maimónides"

Autor: Alberto Manguel

Editora: Tinta-da-China

Data de Lançamento: 14 de novembro de 2024

Preço: € 23,90

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Outra história dá conta da amabilidade e cortesia de Maimónides para com todos, fossem académicos famosos fossem pessoas comuns. Sabe‐se que Maimónides convidava pessoas a sua casa todos os sabats, sobretudo pobres. Certa noite, o anfitrião ofereceu ao seu convidado a honra de recitar o kiddush, a bênção cerimonial do vinho. Porém, nesse momento, decerto por nervosismo, o visitante fez inadvertidamente com que a sua taça tombasse e o vinho se derramasse sobre a toalha de mesa. Consciente da angústia do seu convidado, Maimónides deu um piparote intencional à mesa, fazendo tombar a sua própria taça. Depois, levantou‐se e disse: «Parece‐me que o chão não está bem nivelado.»

Outra das lendas salienta os talentos intelectuais de Maimóni‐ des na sua juventude. Corria o rumor de que a sua mãe era filha de um simples carniceiro com quem o pai de Maimónides, Maimon ben Yosef, foi instruído a casar num sonho. Dizia‐se que era por essa razão que o pai lhe chamava «filho do açougueiro», quando o menino não se dedicava aos estudos. (Há uma lenda semelhante associada ao jovem Shakespeare, segundo a qual ele foi aprendiz de açougueiro em Stratford.)

Outras histórias pertencem ao domínio da hagiografia. Diz‐se que, após a sua morte, o cadáver de Maimónides foi depositado durante uma semana num pequeno santuário algures na região de Acre, onde, quando era jovem, ele costumava estudar à noite e curar desconhecidos durante o dia. O corpo foi depois levado para a margem ocidental do Mar da Galileia, a fim de ser enterrado em Tiberíades. No caminho, um grupo de beduínos que se preparava para atacar o cortejo fúnebre apercebeu‐se subitamente de que o corpo transportado era o do homem que os tratara, a eles e às suas famílias, gratuitamente. Em vez de roubarem os enlutados, formaram uma guarda de honra à volta do corpo, para que o cortejo prosseguisse incólume. Joseph ben Isaac Sambari, um viajante judeu egípcio do século XVII, acrescentou à história o ponto de os transportadores do corpo se terem esquecido, por distracção, de um dos dedos do pé do mestre. Durante a noite, um deles teve um sonho em que lhe apareceu um velho que o repreendia pela sua negligência e lhe indicava o local onde estava o dedo. O carregador regressou, recuperou o dedo que faltava e enterrou‐o devotadamente com o resto do cadáver.

Os poderes mágicos atribuídos a Maimónides continuavam vivos ainda no início do século XX. Em 1935, quando o rei Fuade I do Egipto ficou gravemente doente, os leais habitantes do bairro judeu do Cairo pediram emprestadas algumas roupas do rei, levaram‐nas para a sala de oração da sinagoga que Maimónides frequentara e mantiveram‐nas lá durante uma semana, após o que, segundo se disse, «a saúde do rei melhorou milagrosamente».

Se o retrato espiritual do sábio iluminado se desvia por vezes do campo dos factos historicamente comprovados, a imagem física de Maimónides é igualmente esquiva, como cabe a uma figura quase lendária. A única imagem mais ou menos fidedigna que temos dele é a reprodução de um medalhão numa enciclopédia sobre antiguidades, em vários volumes, o Thesaurus Antiquitatum Sacrarum, impressa por Blasius Ugolinus em Veneza entre 1744 e 1769. O retrato representa um homem de turbante e barba com uma medalha anacrónica pendurada ao pescoço. Seja ou não uma representação verdadeira de Moisés Maimónides, foi copiada muitas vezes e é a que aparece hoje na maioria dos livros sobre Rambam.

Moisés ben Maimon, ou simplesmente Maimónides, como é conhecido hoje em dia, nasceu em Córdova, no coração do al‐Andaluz, o reino árabe ibérico a que os judeus chamavam Sefarad, em 30 de Março de 1138 (4898 no calendário judaico), véspera de Páscoa, alegadamente à uma da tarde. Ao longo da sua vida, Maimónides considerou Sefarad a sua pátria espiritual e referiu‐se frequentemente às suas raízes sefarditas. A Sefarad medieval alimentou grandes poetas judeus, como Salomão ibn Gabirol e Judah ha‐Levi, bem como sábios como Abraão ben Meir ibn Ezra, e ainda, no tempo de Maimónides, conservava muita da glória dos seus tempos antigos. Maimónides viveu os primeiros 13 anos de vida em Córdova, antes de a família ser forçada a um longo e errático exílio, primeiro noutras regiões de Espanha, depois no Norte de África e na Palestina. Por fim, em 1165, Maimónides estabeleceu‐se no Egipto, no que nove anos mais tarde viria a ser o Cairo de Saladino, onde morreu, universalmente chorado, em 1204. Estes são os simples factos cronológicos.

Os árabes tinham chegado à Península Ibérica em 710. A primeira vaga de povoadores era constituída por tribos berberes e árabes provenientes do Norte de África; não tardaram a juntar‐se‐lhes milícias da Síria, apoiantes da dinastia omíada. Com mão firme, os omíadas apoderaram‐se da sua nova província na região mais ocidental da Europa e governaram‐na durante quase 300 anos. Cerca de dois séculos depois da sua chegada à península, o jovem emir Ab‐derramão III subiu ao trono omíada em 912 e, em 929, adoptou o título de califa, pondo assim o até então emirado de Córdova a par do califado abássida de Bagdade e do califado xiita de Tunes. Assim começou aquela que é tida como a Idade de Ouro do al‐Andaluz, um florescimento sem precedentes das artes, das letras, do comércio e do poder político.

Durante o reinado dos omíadas, os judeus de Sefarad conheceram uma prosperidade inesperada, tanto comercial como cultural, e uma certa liberdade religiosa e intelectual. Anteriormente, sob o domínio dos governantes católicos visigodos, os judeus de Espanha tinham sido relegados para a camada social mais baixa; já os omíadas decretaram que os judeus, enquanto Povo do Livro, pertenciam à categoria de dhimmi, «protegidos», um estatuto por vezes concedido a não‐muçulmanos que viviam num país muçulmano. Exorta o Alcorão (29,46): «não disputeis com os crentes do Livro senão da melhor maneira, excepto com os injustos. Dizei‐lhes: ‘Cremos no que nos foi revelado, assim como no que vos foi revelado antes; o nosso Deus e o vosso são Um e a Ele nos submetemos.’» Assim, os judeus foram autorizados a participar na vida civil da comunidade e, sobretudo, a observar os seus costumes religiosos. Depressa os judeus adquiriram reputação como hábeis administradores e médicos, e também como argutos comerciantes de perfumes, peles e escravos.

Desde o século VIII que os comerciantes judaicos desempenhavam um papel importante no comércio de escravos na Europa e no Mediterrâneo. Sob o domínio de Abderramão, o comércio de escravos floresceu. Na época de Maimónides, só em Córdova havia mais de 13 mil escravos, dos quais um quarto trabalhava no palácio de campo do rei, Medina Azahara. Nos seus últimos anos, Maimónides prescreveria um tratamento compassivo dos escravos: «Todos os mandamentos que enumerámos no tratado Leis Relativas aos Escravos estão imbuídos de piedade e benevolência para com os fracos», escreve, observando que um escravo que foge de um senhor severo não deve ser devolvido a esse senhor. E acrescenta: «Não basta proteger aqueles que procuram a nossa protecção, pois temos outra obrigação para com eles: devemos considerar as suas necessidades, fazer‐lhes bem e não magoar os seus corações com uma única palavra.»

Obrigados a ser engenhosos, os judeus começaram a tirar partido da nova sociedade em que se integraram gradualmente, desenvolvendo uma cultura árabe‐judaica própria. «Em muitos aspectos», observa a académica María Rosa Menocal, «o florescimento da cultura judaica deu‐se de par com o apogeu da cultura árabe, sobretudo da cultura árabe laica. Em grande medida, os dois zénites culturais deveram‐se aos mesmos liberalismo e tolerância e acabariam por ser destruídos pela mesma intolerância.» Para nós, que assistimos hoje ao ressurgimento da islamofobia e do anti‐semitismo, esta última observação reveste‐se de uma importância crucial.

No século X, Córdova tornara‐se «a jóia do mundo»12, nas palavras de Rosvita de Gandersheim, erudita da época. As muralhas da cidade, erigidas sobre vestígios romanos, tinham 13 portas e 132 torres. Dizia‐se que a cidade contava mais de 400 mesquitas, 900 banhos públicos, 80 mil lojas, mais de 60 mil mansões para a nobreza e os comandantes militares, e cerca de 250 mil casas para o resto da população.

A administração da cidade aperfeiçoou os sistemas de governo tradicionais dos abássidas, dos bizantinos e dos persas. O poder dos omíadas era mantido pela maior frota do mundo à altura, aliada a um poderoso exército. Várias oficinas de armamento nas proximidades de Córdova produziam, entre outras armas, mil arcos e 20 mil flechas por mês. A própria Córdova, sede do governo central, estava ligada às províncias por uma rede de estradas muito bem policiadas e um serviço postal eficiente que empregava pombos‐correios. Importou‐se para solo andaluz aquilo a que o poeta Peter Cole chama «um quase‐alfabeto de plantas», que ali medraram: «açafrão, alcachofras, alperces, arroz, bananas, beringelas, cana‐de‐ ‐açúcar, cenouras, espinafres, figos, laranjas, limões, melancia, pastinacas, pêssegos, romãs e trigo‐duro.»

Com uma população de talvez meio milhão de habitantes, Córdova ultrapassou Constantinopla como a maior e mais prós‐ pera cidade da Europa, tornando‐se em simultâneo um dos principais centros intelectuais, como eram Bagdade e Toledo. Tanto muçulmanos como não‐muçulmanos vinham do estrangeiro para estudar nas suas famosas bibliotecas e universidades, levando para os seus países de origem os conhecimentos adquiridos em Córdova. Em meados do século X, sob o reinado de al‐Hakam II, a biblioteca central de Córdova possuía mais de 400 mil volumes, e as bibliotecas privadas e públicas mais pequenas eram conhecidas por conterem numerosos tesouros de valor inestimável. Dois séculos mais tarde, no tempo de Maimónides, a situação mantinha‐se. O mercado livreiro empregava mais de 70 copistas só para o Alcorão, muitos dos quais eram mulheres, que também trabalhavam como bibliotecárias, professoras, médicas e advogadas.

Boa parte do comércio do livro estava nas mãos de judeus. Moisés ibn Ezra, um ilustre poeta de Granada, assinalou que a capacidade dos judeus de Córdova para aprenderem a língua e os costumes árabes era praticamente milagrosa. «Tornaram‐se excelentes académicos nas suas várias disciplinas científicas. [...] Mas foi na arte da poesia que a imitação se tornou mais perfeita, porque assimilaram os seus métodos e foram muito sensíveis às suas maravilhas.» A poesia judaico‐árabe lançaria as bases do desenvolvimento da poesia espanhola e portuguesa que floresceu séculos mais tarde. Os ritmos e os temas dos poetas do al‐Andaluz ainda se ouvem em alguns poetas espanhóis de hoje.

A comunidade cristã, então em declínio e conhecida como moçárabes, também adoptou algumas das características da cultura árabe dominante, tentando ao mesmo tempo manter‐se discretamente fiel à sua religião. Mas os cristãos depressa sentiram que esse meio‐termo era impossível de manter e viram‐se confrontados com uma decisão dolorosa: converter‐se ao islão ou partir para o exílio.

Também os judeus seriam depressa confrontados com esse grave dilema. Porém, mesmo durante a adolescência de Maimónides, quando o regime tolerante dos omíadas fora substituído pelos al‐morávidas, os estudiosos judeus podiam prosseguir os seus estudos: continuavam a escrever e a comunicar diariamente em árabe, faziam parte da elite culta e abraçaram o pensamento árabe com paixão intelectual. E, com mais sucesso do que os moçárabes, conseguiram preservar os seus rituais e a sua liturgia.

As duas culturas, islâmica e judaica, eram vistas como estreitamente complementares e as comunidades respeitavam‐se, cada qual seguindo os mandamentos da sua própria fé. Talvez o facto de a comunidade judaica estar em minoria no al‐Andaluz árabe tornasse os seus membros mais sensíveis às ideias que floresciam no mundo dos seus soberanos. No entanto, o que é notável em Maimónides é não tanto o seu esforço por integrar os ensinamentos das diferentes culturas que conheceu quanto o vasto âmbito e a invulgar precisão da síntese cultural que alcançou com a sua obra.

No al‐Andaluz, as línguas árabe e hebraica mesclavam‐se. Maimónides, por exemplo, depois de determinar que as orações diárias eram obrigatórias para os judeus, recorreu a uma imagem do Alcorão para explicar que o Deus a quem rezavam era como um fogo. Em vez de se referir à sarça ardente do Êxodo, citou as propriedades que o Alcorão atribui ao fogo: propriedades de acção, não de identidade. O fogo pode amolecer a cera, endurecer a argila, escurecer o açúcar e branquear outras coisas, mas não é macio, nem duro, nem preto, nem branco: o fogo tem simplesmente esses efeitos sobre as diferentes coisas postas em contacto com ele. Não eram só as imagens tiradas da outra cultura que se arraigavam nos escritos de ambas as comunidades: os termos e as expressões de uma língua serviam para comunicar conceitos e práticas que não tinham nome na outra. Descrevendo este evidente entrelaçamento linguístico, por exemplo, na recitação de orações em hebraico, Maimónides observou: «Quando algum deles [os judeus] rezava em hebraico, era incapaz de exprimir adequadamente as suas necessidades ou de contar os louvores de Deus sem misturar o hebraico com outras línguas.» A maldição de Babel teve pouco efeito no al‐Andaluz.

«Quando nos servimos de uma taça preciosa num dia, arriscamo‐nos a parti‐la no seguinte» é a versão talmúdica do carpe diem. A era dourada de Sefarad foi sol de pouca dura. O califado de Córdova entrou efectivamente em colapso durante a guerra civil que eclodiu entre 1009 e 1013, e acabou por ser abolida em 1031. O al‐Andaluz dividiu‐se em várias pequenas taifas, ou facções, governadas por reis fracos e ineficazes, «partindo o colar e dispersando as pérolas», como disse um escritor árabe.21 Uma das sociedades mais apuradas do mundo passou a ser cada vez mais ameaçada pelos exércitos cristãos do Norte, especialmente os castelhanos liderados pelo rei Afonso VI. Procurando protecção contra esses ataques, os habitantes do al‐Andaluz apelaram aos almorávidas do outro lado do mar, uma tribo berbere do Sara que tinha conseguido estabelecer um poderoso império em Marrocos. Em resposta ao apelo, os almorávidas cruzaram o mar, mantiveram as legiões cristãs ao largo, depuseram os restantes governantes omíadas e, em 1086, tornaram‐se senhores do al‐Andaluz.

Apesar de submetida a um sistema de governo islâmico mais rigoroso e menos tolerante do que o dos omíadas, Córdova continuou, sob os almorávidas, a ser, pelo menos durante mais um século, um importante centro multicultural que permitiu a continuação do intercâmbio intelectual entre muçulmanos e judeus, pelo menos durante algum tempo. Graças aos esforços de filósofos e cientistas árabes, como Al‐Zahrawi (latinizado como Abulcasis) e Ibn Rushd (Averróis), que continuaram a traduzir e a comentar as obras dos gregos antigos (sobretudo Aristóteles, mas também Platão e neo‐platónicos como Plotino no século III d.C.), tanto os árabes como os judeus puderam aprender com os antigos mestres; escrever poesia memorável, notáveis tratados médicos e obras filosóficas profundas; e partilhar ideias e descobertas científicas. Depois, chegaram os almóadas.

Os almóadas eram um povo originário do Noroeste de África que seguia os ensinamentos do mestre sunita Al‐Ghazali, considerado um mujaddid, defensor da verdadeira fé que se pensa aparecer de cem em cem anos para reforçar o domínio do islão. À luz dos ensinamentos de Al‐Ghazali, e acreditando que um perigoso laxismo tinha infectado a vida religiosa de al‐Andaluz, os almóadas decidiram pôr fim ao domínio almorávida. Impuseram rapidamente graves restrições religiosas, dificultando bastante a vida da comunidade judaica. Um cronista marroquino da época observou que, sob o domínio almóada, o regime dhimma estabelecido pelos omíadas foi, na prática, abolido: os judeus eram obrigados a usar vestuário distintivo, as heranças judaicas eram confiscadas e as crianças judias eram por vezes retiradas aos pais e criadas como muçulmanas, seguindo uma velha máxima islâmica segundo a qual «todas as crianças são por natureza muçulmanas». Já em 1113, o líder almóada Ibn Tumart proclamava que todos os judeus deviam ser obrigados a abandonar a sua religião. «Vinde, e desarraiguemo‐los para que não sejam nação, nem haja mais memória do nome de Israel!»

Algumas décadas mais tarde, sob o reinado do príncipe Abd al‐Mumin, o segundo califa almóada a subir ao trono no Norte de África, foram aplicadas novas leis em toda a região estipulando que os não‐muçulmanos não seriam autorizados a entrar nos Estados almóadas. A liberdade moderada de que os judeus tinham gozado no al‐Andaluz esboroou‐se, enfim. Este facto levou Maimónides a declarar, mais tarde, a propósito dos almóadas, que «nunca houve contra Israel uma nação mais inimiga, nem mesmo a dos cristãos».

Em 1147, os almóadas atravessaram o Estreito de Gibraltar; no ano seguinte, entraram em Córdova. A população local rendeu‐se aos invasores por receio de um destino pior: cair nas mãos das hostes cristãs do Norte, ainda ameaçadoras. As sinagogas e igrejas foram demolidas ou transformadas em mesquitas, e tanto os judeus como os moçárabes foram obrigados a escolher entre a conversão imediata ao islão e o exílio. Muitos — judeus como cristãos — aceitaram converter‐se, continuando secretamente a observar a sua própria religião. Outros optaram por partir. Maimon ben Yosef decidiu levar a sua família de Córdova para uma casa mais segura. Nessa altura, a família era constituída pelo pai, a sua segunda mulher, o jovem Moisés, David, de um ano, e duas ou três filhas, das quais pouco mais se sabe do que o nome da mais nova, Miriam.

Maimon ben Yosef descendia de uma longa linhagem de notáveis académicos cujos nomes Maimónides enumera no colofão do seu Comentário à Mixná. «Sou Moisés, filho do rabino Maimon, filho do erudito Josef, filho do rabino Isaac, filho do rabino Josef, filho do rabino Abdias, filho do rabino Salomão, filho do rabino Abdias. Que a memória destes homens santos nos bendiga!» O rapaz recebeu instrução rabínica do pai, tanto em hebraico como em árabe, e foi apresentado a alguns dos mais notáveis eruditos árabes activos em Córdova na altura, a fim de cultivar aquilo a que os andaluzes chamavam adab, «refinamento cultural». Um estímulo nada negligenciável para uma mente que já então começava a conceber os projectos surpreendentemente ambiciosos dos anos seguintes.