No seu mais recente livro — editado em Portugal pela Iguana —, a escritora e ilustradora espanhola faz uma digressão histórica pelas origens deste rótulo, desde as sementes plantadas pelos pensadores da Grécia Antiga até às flores brotadas nas representações femininas de Hollywood, das femmes fatales do cinema noir às super-heroínas sexualizadas.
Tudo começa nos mitos: se a Pandora da mitologia libertou todos os males sobre o mundo porque era uma tonta incapaz de conter a sua curiosidade, Afrodite, a deusa do Amor, não fez senão seduzir e enganar mortais e imortais. Se Eva mordeu o fruto proibido porque se sentiu tentada, Salomé seduziu o padrasto para levá-lo a matar João Baptista. Todas as bruxas merecem ser queimadas, todas as más mães merecem ser infelizes. Os exemplos seguem-se, mas a autora sevilhana é perentória: “não só trouxemos todos os males ao mundo como, além disso, os nossos sofrimentos são um castigo merecido até ao fim dos tempos, por termos sido desobedientes”.
Além disso, procurou-se justificar estas histórias, alimentando-se uma crença antiga e recorrente de que a mulher era uma versão inferior, incompleta, do homem. “Não é a limitação técnica do observador, é falha feminina”, escreve Hesse, com tanto sarcasmo quanto indignação sobre estas formas de submissão que apenas começaram a perder a sua força nas últimas décadas.
“Não só trouxemos todos os males ao mundo como, além disso, os nossos sofrimentos são um castigo merecido até ao fim dos tempos, por termos sido desobedientes”.
Com um estilo de ilustração marcante — definido tanto pelo contraste entre as cores garridas e os espaços em branco, como pelos desenhos despudorados e memoráveis — , a ilustradora celebrizou-se pela publicação das biografias ilustradas de Frida Kahlo, David Bowie e Marilyn Monroe. Pelo meio, aventurou-se pelo ensaio com “O Prazer”, dedicado a desmistificar o prazer feminino.
O que a impeliu a escrever esse livro foi a noção de que tinha sido educada na ignorância, sem referências para o que deve ser uma vida sexual saudável em todas as acepções do termo. Aqui aconteceu o mesmo: ao longo de “Mulheres Más” pontuam exemplos da sua vida onde sentiu que não cumpria o que era de si esperado, ou foi colocada à margem por não saber interpretar esse papel.
“Sempre estivemos muito perdidas porque as referências que tínhamos sobre mulheres eram narradas por homens, com as quais não nos sentíamos identificadas. A consequência é uma pessoa sentir-se culpada por não se adequar ao que se espera de nós”, conta ao SAPO24, numa entrevista por e-mail.
"As referências que tínhamos sobre mulheres eram narradas por homens"
As coisas estão hoje melhores: nem a histeria é considerada cientificamente uma condição clínica feminina, nem as mulheres estão privadas de votar ou abrir uma conta bancária na maior parte do mundo. Além disso, séries como “I May Destroy You”, de Michaela Coel, e “Fleabag” de Phoebe Waller-Bridge, mostram que a representação feminina concebida por mulheres ganha cada vez mais espaço.
No entanto, como María Hesse defende, não é suficiente. O menosprezo pelas mulheres permanece e apenas pode ser combatido “com conhecimento”. “É de vital importância construirmos um mundo melhor para todos, independentemente de como e onde nascemos”, aponta.
O que são, no seu entender, “mulheres más”?
Para mim, mulheres más somos todas, porque é impossível satisfazer todas as exigências que o patriarcado nos faz. É fácil que a dado momento nos tenham chamado loucas, más mães, putas...
A história do mundo e da humanidade tem sido escrita maioritariamente por homens, sobre homens e para homens. Uma das frases que usa é de que “aquilo de que não se fala não existe”. Quais pensa serem ainda hoje as consequências deste apagamento das mulheres?
Toda a gente procura por referências. Sempre estivemos muito perdidas porque as referências que tínhamos sobre mulheres eram narradas por homens, com as quais não nos sentíamos identificadas. A consequência é uma pessoa sentir-se culpada por não se adequar ao que se espera de nós. Por isso é tão necessário que se ouçam as nossas vozes, e como somos e queremos ser.
"É impossível satisfazer todas as exigências que o patriarcado nos faz"
O livro tem algumas passagens autobiográficas, onde descreve como se sentiu excluída na escola ou quando foi “a madrasta” de um relacionamento. Em retrospectiva, como é que estas experiências a afetaram criativamente?
Quando falo de mim, faço-o porque acho que isso cria empatia com a ideia de que estas narrativas passam por todos nós. São inevitáveis essas experiências que afetam a minha forma de criar, tal como os homens são afetados por suas próprias experiências. Acho-o natural, nutrir-nos do que vivemos.
Neste livro cita uma variedade de exemplos — reais e fictícios — separados por milhares de anos, de Penélope e Joana de Castela até Britney Spears e Sarah Connor. Como é que foi o trabalho de pesquisa?
Foi enorme! Não havia fim. Foi muito difícil fazer a seleção, mas o importante foi poder falar sobre todos aqueles arquétipos de mulheres más e como eles perduram ao longo do tempo. E ver como a ficção influencia o contexto real e vice-versa.
Alguns dos exemplos que cita no livro não parecem ser parte de um esforço consciente e programático de minimizar as mulheres, mas sim decorrentes dos estereótipos da época. Podemos considerar a Carmen de Prosper Mérimée ou Emma Bovary de Gustave Flaubert o resultado da misoginia internalizada ao longo dos tempos?
Às vezes são conscientes, como no caso de “Madame Bovary”, que foi salvo de ser censurado porque enviou uma mensagem doutrinária às mulheres. No caso de Carmen e tantas outras, pode ser fruto de uma misoginia de séculos, somada ao facto de menosprezar e silenciar a história que outras mulheres construíam.
A propósito de misoginia internalizada, refere no livro como as próprias mulheres foram afetadas, fruto da educação que lhes foi dada. Como se quebra o ciclo?
Com conhecimento. Para mim tem sido fundamental conversar com outras mulheres e ler muito. O ideal seria que esse conhecimento fosse ensinado nos centros educacionais, que fizesse parte dos currículos.
Em consequência do processo de emancipação das mulheres e da sua maior representação em domínios tradicionalmente masculinos, há hoje movimentos que lamentam a mudança dos papéis de género e estão contra o que consideram agendas ideológicas para minimizar os homens. Como encara estas posturas?
Fazem-me rir e ter pena ao mesmo tempo. É uma resistência em não querer perder alguns privilégios conferidos pelo facto de se ter nascido homem. Esses privilégios são sustentados pela opressão de outras pessoas, seja por género, raça ou classe. É de vital importância construirmos um mundo melhor para todos, independentemente de como e onde nascemos.
Afirmou em algumas entrevistas que lhe desagrada ser rotulada como uma “autora feminista”, mas a verdade é que em obras como “El Placer [O Prazer]” aborda a libertação sexual feminina e em “Mujeres Malas [Mulheres Más]” crítica a cultura patriarcal da representação feminina ao longo dos séculos. São temas sobre os quais acaba por se debruçar? Qual é o potencial criativo que lhe oferecem este tipo de temáticas?
Claro que sou feminista e isso perpassa o meu trabalho, mas não é só isso. Além disso, acredito que tal aconteça naturalmente a qualquer artista com a sua forma de ver o mundo. Não me importo com o rótulo em si, mas não gosto de ser reduzida a ele.
É dona de um estilo de ilustração muito particular e vincado. Como é que chegou até aqui? Vê-se a fazer-lhe alterações de futuro?
É fruto de desenhar muito, de tentar, de me deixar fluir. Acho que o meu trabalho vai mudar no futuro, porque mudou ao longo dos anos, basta olhar para uma ilustração minha de 2016. O que não sei é se haverá uma mudança radical da noite para o dia. Até agora tem sido um pouco mais orgânico. Não me imponho nada, apenas faço o que sinto que preciso
"Não me importo com o rótulo [de autora feminista] em si, mas não gosto de ser reduzida a ele"
Para os seus trabalhos biográficos, escolheu figuras como Frida Kahlo, David Bowie e Marilyn Monroe, todas elas icónicas, mas também contraditórias e passíveis de diferentes leituras. Sobre que outras pessoas gostaria de escrever e desenhar?
Muitas! Sei lá, eu adoraria trabalhar sobre Leonora Carrington ou Billie Holiday.
Um dos apelos que deixa às mulheres nesta obra é “sejamos perigosas”. O que é que isto significa?
Que sejamos ativistas, que rompamos com o estabelecido e que lutemos pela mudança que precisamos. Que não nos importemos com o que pensam, que incomodemos se tivermos de incomodar. Que sejamos livres
Que “mulheres más” tem como referência?
Absolutamente todas.
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