Só escreve à noite, quando está tudo em sossego, quando não há interrupções. "Não que esteja obcecado, mas não quero que haja nada a desviar-me a atenção". Mas nem sempre foi assim. Chegou a escrever em reuniões e até nas aulas na Faculdade de Direito, uma "batota" que lhe permitia fazer-se passar por aluno aplicado, até ao dia em que Marcello Caetano chamou a atenção do aluno "lá em cima", que em vez de tomar notas sobre a aula estava a escrevinhar papéis para passar na clandestinidade.

Soube que ia ser escritor quando os livros começaram a avolumar-se e deixou de ter disposição e tempo para outras coisas. "A pouco e pouco a escrita foi-se sobrepondo ao Direito e ao caso da senhora que ia ser despejada ou do senhor que podia ser despedido". A solicitação, muitas vezes interior, rapidamente passou a ser também dos editores, que começaram a fazer sentir que esperavam o próximo livro. Passaram 40 anos, mais de 30 livros e outros tantos prémios.

Mário de Carvalho acaba de lançar "De maneira que é claro..." — título inspirado na frase tantas vezes dita por um amigo -, onde vai escrevendo pequenos textos sobre momentos que fizeram a sua vida.

E é sobre a sua vida que fala também ao SAPO24, no seu escritório em Lisboa, que já foi de advogados: da infância em Alvalade do Sado, da prisão do pai, dos tempos da ditadura e da PIDE, da passagem pelas cadeias de Caxias e Peniche, do PCP e do exílio de dois meses e meio na Suécia, mesmo antes do 25 de Abril, do Portugal de então e do país de agora. Mas também da sua obra, dos seus hábitos e até da gata Mafalda ou do desgosto de não ter jeito para a música. 

Houve uma altura em que conhecia bastantes escritores, hoje conheço poucos. Porque há 30 anos fazia parte da Associação Portuguesa de Escritores e dava-me muito com o meio, agora menos, dou-me mais com o leitor. Quando vejo confrades — como será o feminino, confreiras? — dou-me bem com eles, habitualmente.

Desde que apareceu o neutro é difícil falar de género...

Pois [ri].

Antes de irmos às palavras e à escrita, gostava de recuar no tempo: "Quem para nada tem jeito vai para Direito", "Letras são tretas". Era assim que se dizia, não era? Por que motivo foi para Direito e não para Letras?

Sabe, na altura houve várias consultas, também com colegas, e digamos que o curso de Letras não tinha grande prestígio. Por outro lado, também não oferecia aquilo a que se chamava "saídas". De maneira que, como não tinha jeito para mais nada, lá fui para a Faculdade de Direito, onde não me dei mal. Falhei dois anos, mas por razões políticas — na altura estava envolvidíssimo no Movimento Associativo e na resistência, o estudo ficou um bocadinho para trás. 

Havia prioridades?

Com certeza. A luta estava acima de tudo, na altura. Para mim e para outros como eu.

Mas o que respondia, em miúdo, quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande?

Oficial de Marinha [ri]. 

O que o fez mudar de ideias?

Enfim, depois comecei a pensar na Academia, nas chatices que isso dava. Note que a minha ideia de miúdo era ainda uma conceção romântica do aventureiro, muito influenciado pela banda desenhada e pelos livros de aventuras que lia então. O mar, para mim, era um mundo de surpresas, de imaginário, de aventura. Depois cresci — fui crescendo. Perdi algumas ilusões que eram bastante gratas.

"Penso que essa ideia de que no nosso tempo se lia mais é capaz de merecer ser revista"

Que livros lia nessa altura?

Lia dois semanários de banda desenhada, que na altura eram importantes para nós — e que de vez em quando traziam uns álbuns —, o "Cavaleiro Andante" e também o "Mundo de Aventuras". Em minha casa comprava-se o "Cavaleiro Andante", em casa dos meus primos comprava-se o "Mundo de Aventuras", depois fazíamos o intercâmbio. De maneira que houve um contacto muito precoce com a banda desenhada.

Que hoje é um género menos lido, não?

Sim, é um pouco para especialistas. Já não é coisa que os miúdos leiam diariamente, como nós.

Atualmente lê-se menos, de maneira geral?

Sabe, estou numa posição um bocadinho especial, porque tenho um neto que é um grande leitor, devora tudo. Mas penso que essa ideia de que no nosso tempo se lia mais é capaz de merecer ser revista. Porque, pensando bem, as pessoas que tinham acesso a essas bandas desenhadas, a esses livros de aventuras, ao cinema eram uma minoria muito reduzida. A maior parte dos jovens não lia nada e havia até uma forte percentagem de analfabetos. Essa noção que se foi implantando, de que se lê cada vez menos, talvez merecesse ser reavaliada. Não acompanho diariamente, mas devo dizer que não tenho tido notas que exprimam razões de queixa ou coisas parecidas.

"Os autores deviam ser principescamente pagos, porque fazem algo de novo pelo mundo, algo que não estava lá e que ninguém mais fez, é único e insubstituível"

Oiço as queixas de professores, das editoras, vejo a quebra da venda de jornais. E não vejo tantas pessoas a ler, até nos transportes públicos — quando vejo alguém com um livro procuro sempre ver o título.

Curioso, aconteceu-me isso há minutos, quando vinha no metro. Estava uma rapariga em pé, encostada ao varão, a ler um livro e eu a tentar ver o que ela estava a ler... Não consegui. Apetecia-me ver o que era, até podia ser um livro meu, sabe-se lá. Mas há muitos anos que escrevo, há muitos anos que vou a escolas, e sempre ouvi os professores dizerem isso, "os jovens não leem". No meu tempo, se calhar, dizia-se a mesma coisa.

Sempre conseguiu viver da escrita?

Não.

Num dos seus livros, penso que no "Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina", faz uma alusão a que um escritor devia ser principescamente pago.

Não me recordo exatamente disso, mas subscrevo essa ideia. Os autores deviam ser principescamente pagos, porque fazem algo de novo pelo mundo, algo que não estava lá e que ninguém mais fez, é único e insubstituível.

Porque é que as remunerações são tão más?

Porque as editoras também precisam de sobreviver, temos de ver o outro lado da questão. E vivem com muitas dificuldades, muitas delas, temos de reconhecer isso.

Foi assim que apareceu o mercado de autor, nem sempre com qualidade.

Sempre houve edições de autor, pessoas que a todo o custo queriam ver o seu livro nos escaparates. Sabe que dá prazer quando vamos a uma livraria, a primeira vez que escrevemos um livro, ver os montinhos dos livros e como eles vão desaparecendo e como alguém lhes vai pegando. Tenho essa experiência, de ir a uma livraria num centro comercial, não sei se ainda existe, em Alvalade, e de estar a olhar, ver um senhor pegar no meu livro, folheá-lo e pô-lo de lado outra vez [ri]. E eu ali, na expectativa de ver o que é que o homem ia fazer. Não o levou.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Quantos livros já escreveu e publicou?

Pergunta bem, mas não sei... Aí uns 30.

Publicou o seu primeiro livro, "Contos da Sétima Esfera", em 1981, há 40 anos. Que balanço faz?

Tenho de dizer que o balanço é positivo, com altos e baixos, com momentos de apreensão e momentos de euforia, com a felicidade de algum reconhecimento, que aparece de vez em quando, com a expectativa em relação à recensão que aparece nos jornais, por exemplo (e aí há uns a que damos mais importância do que outros).

"Eu, francamente, nunca percebi qual o interesse que as pessoas têm em livros dedicados e assinados"

A crítica é importante para si?

Sim, é. Vamos ver, hoje dificilmente encontramos críticos. Lembro-me da altura em que havia mesmo críticos, que pegavam no livro e reviam vários aspetos de alto a baixo. Hoje isso não existe, está substituído pela recensão, mais ou menos alargada. Há quem diga que não liga nenhuma a essas coisas, que o importante é o leitor. Mas o leitor é alguém que está distante. Lembra-se de há pouco lhe falar de quando vejo um desconhecido a ler? O leitor é um pouco isso, alguém desconhecido. De vez em quando podemos estar com ele, em colóquios, mas é sempre alguém que não está na nossa frente. 

As feiras do livro servem também para isso. Gosta?

Não. É uma espécie de obrigação que tem de se cumprir e que se deve cumprir, e é também alguma coisa que devemos aos leitores, porque há leitores que se interessam. O facto de estar a fazer esta entrevista significa que há pessoas que se interessam. E há pessoas que nas feiras do livro também gostam de nos ver e de receber a assinatura. Eu, francamente, nunca percebi qual o interesse que as pessoas têm em livros dedicados e assinados. Dediquei há pouco um para uma pessoa amiga de um amigo, mas nunca percebi o interesse, nunca pedi dedicatórias a ninguém, tenho alguns livros com dedicatórias porque as quiseram pôr. É um mistério para mim. 

Publicou o seu primeiro livro há 40 anos. Já escrevia antes?

Já fazia umas tentativas, até antigas, nos anos 60. Mas recordo-me que um amigo me desanimou; eu tinha escrito triunfalmente umas quatro ou cinco páginas de qualquer coisa, devia ser uma coisa um bocadinho abstrata, e ele disse-me: "Eh, pá, os surrealistas já fizeram isto há muito tempo". Fiquei completamente desanimado.

Esse seu amigo ainda é vivo?

Não, faleceu há algum tempo. E era um bom leitor, um bom apreciador — um pouco severo, pelos vistos. Mas isso desanimou-me. Pensei: se calhar estou para aqui a insistir numa coisa para a qual não tenho jeito nenhum. E parei durante uns anos. Parei. Ia escrevendo uma coisa, mas sem intenção de a publicar, porque era um livro muito complicado, difícil, tinha muito que ver com opções minhas, que eu precisava de libertar, e que se chamaria mais tarde — já foi publicado — "O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana", um livro um pouco misterioso, em que eu próprio nem sei muitas vezes por onde andei em espírito. Mas havia qualquer coisa de que eu tinha de me libertar, esse livro exprime de certa maneira isso, qualquer coisa que tinha de ser dita e que eu não sei muito bem de onde vem — esta obsessão pela cidade de Tebas, não é a Tebas conhecida, nem a egípcia nem a grega, é uma cidade misteriosa que me assombrou e que me assombrava durante algum tempo e que eu tinha de pôr no papel. Isso está ultrapassado, esses tempos passaram e... bom.

Alexandre O'Neill contava que escrevia poemas e os guardava numa gaveta. Passado um tempo, meses ou anos, relia-os, e se ficasse surpreendido ou de alguma forma encantado, então é porque eram bons para publicar.

Isso é bom. Sou grande admirador de Alexandre O'Neill. O que me acontece muitas vezes é os textos interrompidos, raramente retomados — digo raramente porque há um ou outro que foi retomado. Mas, digamos, ao fim de uma página e meia de computador aquilo arranca ou não, há ali um limite que tem de ser franqueado, se não é, o texto fica para trás. E fica parado.

Consegue nunca mais pensar nele?

Quando lá volto já não me diz nada. Ou então, pelo contrário, pode acontecer pensar: "Alto, há aqui uma coisa interessante e posso pegar nisto". Já me tem acontecido. Mas esta maneira de recusar textos também é muito comum.

Tem um processo criativo? Porque são muitos livros.

Não tenho qualquer preocupação de manter uma regularidade, tem acontecido. Há ideias que começam a impor-se, depois vamos escrevendo alguma coisa, às vezes fica abandonado, outras vezes pensamos que pode continuar, as situações vão-se complicando e tornando interessantes. Pelo menos do ponto de vista do autor.

Concorda que os livros têm sempre alguma coisa autobiográfica?

Necessariamente e para todos os autores, não há maneira de fugir a isso. Agora, a autobiografia pode estar mais ou menos oculta, mais ou menos disfarçada, mas está lá sempre. Escrevemos também com a vida que tivemos e muitas vezes estamos a imaginar com esse lastro, que tem muito que ver com a nossa infância, com as surpresas da vida, aquilo que fomos encontrando, as pessoas — as personagens muitas vezes são feitas com pessoas que conhecemos efetivamente, há tiques de linguagem que são aproveitados, como "Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto" [título de um livro], a frase de um amigo que ainda é vivo, e que até me escreveu uma carta muito simpática, que diz isso de cinco em cinco minutos ou de minuto a minuto. Isso ficou-me, como outras expressões que aproveitei.

Tem temas recorrentes?

Tenho. Acho que tenho. Talvez o regresso, a descoberta, por exemplo.

"Não era um quadro clandestino do PCP, mas a minha atividade era, na maior parte do tempo, uma atividade clandestina"

A escrita acaba por ser uma espécie de desforra?

O outro lado das coisas, sim, talvez, de certa maneira. A nossa oferta, a nossa proposta, a inovação. Qualquer coisa no mundo que não estava lá e passou a estar. E não é de mais ninguém, é nossa.

créditos: Diogo Gomes / MadreMedia

Há pouco não perguntei: chegou a exercer advocacia?

Sim, cheguei a exercer alguma advocacia, a chamada advocacia de causas, por exemplo, na Associação dos Inquilinos ou no movimento sindical, casos para ir a tribunal algumas vezes. Mas, devo dizer, era uma vida que não me entusiasmava. Este escritório ainda foi um escritório de advogados e funcionava aqui com colegas. É um escritório que já está um bocadinho na reforma.

A propósito de causas, gostava que me falasse do seu papel no movimento estudantil, na altura da chamada Crise Académica de 1961/62.

Isso é uma longa história, tem que ver com o meu passado de resistência, que foi, devo dizer, extremamente intenso. Posso dizer que a determinado momento, lá para os anos 60, a minha vida era muito feita disso. Eu não era um quadro clandestino do PCP, mas a minha atividade era, na maior parte do tempo, uma atividade clandestina. 

O que fazia, que atividade era essa?

No fundo, encontrávamo-nos e conversávamos. Mas isso era um risco. Passávamos papéis uns aos outros, passávamos o jornal, íamos acrescentando à organização mais um camarada, era mais uma célula que se constituía, um trabalho lentíssimo. Porque o meu trabalho no PC segue-se a um período de prisões, em que tinha ficado tudo completamente devastado. Hoje posso dizer isto com bastante à-vontade, mas fui eu e outros que fomos, pouco a pouco, recuperando o partido, formando células nesta e naquela escola... "Olha, já está mais uma no Instituto Industrial", "olha, em Medicina já temos não sei quantos", e fomos formando os chamados organismos. Era uma coisa heroica, mas tinha a importância que tinha. Estávamos profundamente empenhados e a nossa vida, de certo modo, era muito aquela. Mas as coisas têm o seu lugar histórico e não há que fugir a isso.

Com que idade despertou para a política?

Bastante cedo. Sabe que o meu pai esteve preso, era um comerciante da Baixa, típico, mas que tinha uma ligação antiga ao PCP, já dos tempos do Alentejo, já tinha estado preso quando jovem. E tinha sido brutalmente espancado. Depois tornou a ser preso em 1959. Isso marcou-me. Eu ia visitar o meu pai ao Aljube e, mais tarde, a Caxias. Isso marcou-me também. Está a ver, um pacato comerciante... Que mal é que as pessoas faziam? Encontravam-se uma com as outras, trocavam papéis, conversavam. Era de uma injustiça tremenda estar-se a prender estas pessoas. Eu próprio, o que é que fazia? Conversava com os colegas, criava os chamados organismos, formas de nos encontrarmos e de estamos uns com os outros, uma tentativa de mobilizar e de trazer outros para nós. Tentativa nem sempre conseguida, devo dizer.

Apanhou Marcello Caetano como professor na Faculdade de Direito?

Ah, pois sim. E era um excelente professor. Ainda me recordo da forma como começava sempre as aulas.

Como era?

[Imita a voz de Marcello Caetano] "Minhas senhoras e meus senhores, na última aula demos o problema da executoriedade do ato administrativo..." Era sempre assim. Eram aulas, enfim, para quem quisesse aproveitar e não estivesse distraído como eu estava sempre, e outros, a fazer coisas, a passar papelinhos...

"Lembro-me de quando reparei que estava a ser seguido, ainda me recordo da matrícula do carro que andava sempre atrás de mim: LG-72-45"

Alguma vez ele percebeu e lhe chamou a atenção?

Houve uma vez: "O senhor lá em cima" — aquilo eram anfiteatros grandes — "faz favor"... Mas foi uma coisa de raspão. Porque nós entretínhamo-nos a fazer jornais e brincadeiras, era difícil acompanhar aquelas aulas. Penso que me deu 12 [valores], que não era uma nota muito boa. Nunca fui um aluno muito bom, mas as coisas correram. Na Crise Académica de 1961/62 tinha acabado de chegar à faculdade, nunca mais houve estudo; passou a haver correrias de um lado para o outro, encontros... Curiosamente, o PC não me tinha aparecido ainda, mas colaborei nas associações de estudantes com muito afinco. E, aqui para nós, com esta idade, talvez fosse uma forma de me escapar às aulas, de não ter de gramar aquelas perlengas que nunca mais acabavam. Hoje tenho netos no PC, o que até me espanta, porque eu não estou. Quando se trata destas coisas, política partidária, não nos metemos na vida uns dos outros... Mas, de certo modo, estou orgulhoso de ele ter tomado uma opção, seguido um caminho. Não é o meu caminho hoje, mas é um caminho.

E qual passou a ser o seu caminho?

Mais de observação. De observação e de reserva. Mas voto e voto sempre bem [ri]. 

Ia contar-me por que razão foi preso e como foram os tempos de prisão...

É uma história comprida. Eu era um ativista clandestino, embora não andasse na clandestinidade. Tinha a minha vida normal e, ao mesmo tempo, outra vida, de encontros, de reuniões, de entrega e receção de papéis, de aliciamento de outros membros para o PCP. Isso ocupava-me muito tempo, a dada altura estava profundamente embrenhado na luta. O meu pai, que já tinha estado preso, apesar das minhas cautelas, reconhecia aqueles movimentos e via isso com muito maus olhos. Recordo-me das indiretas, sempre alusões de desagrado. Já lhe disse que tinha havido uma onda devastadora e que o PCP tinha sido completamente destruído, de maneira que me coube a mim e a outros reerguer o partido. O que era muito difícil, porque foi sempre feito com o cerco da polícia. Lembro-me de quando reparei que estava a ser seguido, ainda me recordo da matrícula do carro que andava sempre atrás de mim — os tipos passaram e olharam para mim, era um Volkswagen verde, olhei e fixei a matrícula, que tornei a ver mais tarde: LG-72-45. Estava em nome de um tipo chamado Fernando Amaro Sebastião ou Serapião, que não me dizia nada, mas era um carro da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado]. A partir daí passei a tomar muito cuidado.

Ainda assim foi preso...

Fui denunciado, houve alguém que disse que eu estava na luta. Era sempre assim. Mas digamos que a vigilância da polícia, a dada altura, fazia-me jeito, porque conhecia os carros, conhecia as caras deles, fazia de conta que não, mas sabia onde eles estavam e sabia como escapar-lhes. Sabia, por exemplo, que se saísse de casa às seis e meia da manhã eles ainda não tinham pegado ao serviço [gargalhada]. Portanto, saía de casa cedíssimo. E, coitados dos meus camaradas, na altura marcava reuniões para de madrugada. Era um trabalho persistente, longo, com pouco frutos. Para nós era heroico, porque éramos novos, mas era um trabalho muito penoso.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Quando perdeu esse entusiasmo pelo PCP, foi um pouco como com o mar, desfez-se a ilusão romântica, de aventura?

Pelo mar ainda tenho um certo fascínio. Pelo PCP, vamos lá ver, sou dos tempos heroicos, como disse. Havia alguma heroicidade, o projeto de transformação do mundo num mundo melhor. E havia uma ditadura. Não há dúvida de que o PCP estava na primeira linha do combate à ditadura e havia pessoas que tinham tido um comportamento extraordinário, de coragem, de resistência, de abnegação, até, em prol do outro, de solidariedade. Era uma coisa extraordinariamente importante para mim, além do lastro familiar. O meu pai era alentejano, daquelas zonas onde o PC tinha importância, Alvalade do Sado, esteve preso muito jovem.

"A prisão acabou por me tirar da Guerra, imagine o paradoxo das coisas"

E a sua prisão, como foi?

A minha prisão teve várias fases. Primeiro fui preso durante um período, depois fui posto em liberdade provisória, quando foi marcado o julgamento. Depois fui a julgamento e fui condenado a dois anos de cadeia. Voltei à prisão. Passado algum tempo puseram-me em liberdade condicional. 

Não fugiu, como fez João Rendeiro?

Considerei isso muitas vezes. Mas mais tarde acabei por ir parar à Suécia.

Não esteve no Ultramar?

Não, porque fui preso. Essa prisão acabou por me tirar da Guerra, imagine o paradoxo das coisas.

Quando esteve preso, trataram-no mal?

Bem, se considerarmos que estar vários dias sem dormir é maltratar... Ao fim do sexto dia, quase a desmaiar, pegavam em nós — houve tipos que me ajudaram a andar para eu não cair a dormir. Isto não é nada comparado com o que aconteceu a outros. Mas ao fim do terceiro ou do quarto dia, uma pessoa cai para o lado, e eles sabiam disso. Estavam sempre a bater no tampo de uma secretária, iam falando, conversando... Houve uma altura em que me ampararam. Também houve uma altura em que me tiraram a cadeira, para me obrigar a estar de pé. Mas não me bateram — a não ser um tipo que me deu com o processo na cabeça —, ao contrário do que acontecia com outros. Havia aqui uma questão de classe, batiam mais nos mais desprotegidos, os da classe operária eram mais espancados. Também dependia das brigadas, e os espíritos mais sádicos vêm necessariamente ao de cima. 

Acabou por ir para o exílio... Vi que publicou no Facebook um post sobre a chegada a Paris, quando por uma janela aberta ouviu Jacques Brel e se emocionou.

Foi. Já conhecia o Brel, que circulava entre nós quando eu tinha os meus 16 anos, era um autor bem conhecido da minha geração. Quando apareceu, os discos eram passados de mão em mão, havia um qualquer sentido de resistência quando se punha Brel, que cantava a vida. E tinha aquela canção, "les bourgeois c'est comme les cochons/plus ça devient vieux plus ça devient bête" (os burgueses são como os porcos/ quanto mais velhos, mais idiotas) [ri]. Isso era para nós um motivo de atração, além de ser um grande cantor. Dava gosto ouvir Brel e as suas entonações e flexões. Ainda sei de cor canções dele.

"É um dos desgostos da minha vida, não ser capaz de cantar"

Gosta de música?

Gosto muito de música. Não sou melómano, ou seja, não coleciono, mas gosto muito de ouvir música. Gosto de ouvir, mas não tenho aquilo a que se chama ouvido, não sou capaz de reproduzir... Por exemplo, agora estive a cantarolar, mas deve ter sido com erros, porque não consigo reproduzir nada. Ainda por cima tenho ascendência alentejana — e como gosto de os ouvir cantar, ouvir aqueles altos e as canções. Enternecem-me. Enternecem-me muito. E o não ser capaz de reproduzir uma música é um desgosto, tem sido a minha vida toda. Em miúdo estava convencido que cantava, até que alguém me disse que não. 

Não aconteceu como com a escrita?

Não, não. Não dá, não dá. É um dos desgostos da minha vida, não ser capaz de cantar. Tive uma professora de piano, mas durou pouco tempo.

Voltando ao exílio...

Fui para França de passagem para a Suécia, porque na Suécia tinha familiares, o meu cunhado estava lá instalado, e eles na altura davam boas condições aos refugiados políticos, tinham um grande apreço pelas pessoas que em Portugal lutavam, estávamos em pleno vigor da social-democracia sueca, e eles apoiavam as pessoas, davam casa e um subsídio e davam aulas de sueco. Ainda cheguei a ter aulas de sueco.

Ainda fala alguma coisa?

"Hur mår du?" (como é que estás?), "tack så mycket" (muito obrigado). Aprendi uma coisa ou outra, mas rapidamente esqueci. Mas eles tinham o cuidado de nos ensinar sueco imediatamente, chegávamos lá e havia umas professoras, simpaticíssimas, que nos iam ensinando, falando sempre sueco. Ali estava perfeitamente seguro e tranquilo, com uma boa situação. Só que, a dada altura, vinha a caminho de casa, precisamente do curso de sueco, era muito cedo, seriam umas oito da manhã, e alguém me diz: "Mário, rebentou uma revolução em Portugal". Bom, acabou-se a Suécia. Corri para casa com amigos portugueses que lá estavam. Antes, fomos ouvir a rádio, aqueles matacões, rádios enormes, até que ouvimos: "Aqui Movimento das Forças Armadas". Não sabíamos que revolução era, admitíamos que pudesse ser uma contra-revolução. Mas, logo a seguir à notícia, o "Grândola, Vila Morena". Só podia ser uma revolução boa. Foi uma grande euforia. E pensámos imediatamente em vir embora. E conseguir o passaporte? Nós estávamos em Lund, no extremo da Suécia [sudoeste], a capital mais próxima era Copenhaga, na Dinamarca. E foi aí que conseguimos passaportes. Na embaixada, ou algo assim, houve alguém que facilitou os passaportes. Só de regresso. De maneira que cheguei com um passaporte que dizia "apenas válido para Portugal".

Sabia o que lhe ia acontecer à chegada a Portugal?

Bom, tinha havido a revolução. Tinha cá os meus pais à espera. Mas na Suécia estávamos muito bem instalados e prontos a fazer vida lá, a minha mulher tinha acabado de chegar. E a vida correr-nos-ia razoavelmente, na altura vivia-se bem naquele país. Mas viemos embora. Cheguei pouco depois do 1.º de Maio, no dia 3 ou coisa parecida. Fomos recebidos aqui em grande festa — estávamos numa época festiva, ainda.

"Vivíamos num mundo vigiado e a nossa imaginação ainda o tornava mais opressivo"

Quando é que percebeu que, afinal, a festa não era a que esperava ou o futuro não era exatamente aquilo que pensava?

Sabe, engrenei imediatamente numa atividade política quase frenética e muito empenhada, muito entusiasmada e, às vezes, até um pouco alucinada. De maneira que só bastante tarde, com os acontecimentos que são conhecidos, em que a ligação de algumas pessoas ao Partido Comunista começou a ser diferente, começaram a pôr-se questões, dúvidas que tiveram muito que ver com o mundo socialista e aquilo que era de facto e que fazíamos de conta que não era para manter o espírito de resistência. Mas esses aspetos começaram a vir à tona e tornaram-se insuportáveis, começámos a ver que o mundo socialista não era aquele mundo maravilha de que se falava quando eu era miúdo. Já havia muitos sinais que se iam acumulando e não eram entusiasmantes, era preciso muita confiança revolucionária para aceitar aquilo como estava.

Como olha para o Portugal de hoje?

Olho para Portugal como um país interessante. É o meu país. Não há dúvida, a língua que eu falo é a minha gente, o meu povo, e não se compara, mas não se compara mesmo, com o Portugal em que eu fui criado. Às vezes, as pessoas pensam que estamos na mesma, mas não estamos na mesma, mudámos muito. Lembro-me das dificuldades do meu pai e de outros escritores com quem ele se dava, o Urbano [Tavares Rodrigues], por exemplo. Nunca se sabia se o tipo na mesa ao lado estava a espiar, se o carro que vinha atrás de nós era da polícia. Vivíamos num mundo vigiado e a nossa imaginação ainda o tornava mais opressivo. A polícia política era uma coisa sinistra. Hoje somos um país livre, isso é inestimável.

Somos? Para si a democracia e liberdade andam sempre juntas ou podem ser conflituantes?

Não me parece, associo sempre a liberdade à democracia, e sempre me bati por isso em várias formas, vários lados. E parece-me fundamental. Neste momento, o que mais prezo é a democracia, é esta possibilidade de estarmos aqui a conversar sem peias, sem receio. 

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Para as gerações que não viveram a ditadura, a liberdade não é sentida da mesma maneira. Muitos sentem-se hoje condicionados pelo politicamente correto, por exemplo. Isso não é falta de liberdade?

É capaz de ser um pouco uma certa ditadura, mas entre aspas. A ditadura do politicamente correto é, de facto, insuportável. Note que é uma forma de orientar um pensamento e de constranger um pensamento. Mas, sabe, o politicamente correto comigo não funciona. Curiosamente, era a expressão que antigamente usávamos dentro do PCP, mas tinha outro sentido, era aquilo que estava ou não de acordo com a linha do partido, era completamente diferente disto. Este politicamente correto, o bem-parecer é uma coisa... Mas é-me indiferente, penso que se está a notar nesta conversa. É insuportável termos de dizer aquilo que convém, é condicionante e limitativo.

A liberdade não é um dado adquirido?

Não, está sempre em risco, sempre em perigo. E mais: sob ameaça. Mas é, de facto, uma grande conquista. Talvez as gerações que já nasceram em democracia não valorizem tanto. É preciso ir contando sempre a história, é preciso que os jovens tenham a noção de que isto é uma conquista, que este país já passou por muita coisa, que os avós não tiveram as mesmas oportunidades que eles têm agora, nem a mesma liberdade de se exprimir, de se mexer, de se deslocar sem estar preocupados com quem possa estar a vigiar.

De que gosta e de que não gosta nada?

Gosto de tranquilidade e de sossego. Gosto de algumas pessoas, muito. Gosto de animais — com tino, não é com exacerbação. A minha gata mordeu-me, a Mafalda. Não gostei. 

Gosta mais de escrever do que de falar?

É verdade. Nunca fui um grande orador, nem nunca tive essa pretensão. Às vezes as circunstâncias obrigam-nos a falar e até a discursar [ri]. Nesta vida, que já vai longa, já me tem acontecido de tudo, e também isso.

Cinco objetos que não dispensa na sua vida e porquê?

Cinco? Cinco é muito. O computador, sem dúvida, a secretária, a esferográfica e o automóvel.

"Evito sempre ler qualquer coisa que tenha escrito e publicado. Depois de publicado não leio nunca"

Escreve com caneta?

Escrevo muito pouco com esferográfica, mas gosto de a ter à mão. É indispensável. Embora escreva fundamentalmente no computador, se não tiver uma caneta à mão, não me sinto à vontade. E antigamente, antes do computador, escrevia sempre à máquina, uma Messa. Trabalhei na Federação dos Metalúrgicos e havia uma secção de datilografia — era giro, aquele ruído.

O novo livro, "De maneira que é claro...", já está à venda e será lançado no dia 27. Surge a que propósito?

Mas os livros vêm a propósito de alguma coisa?

Pergunto-lhe...

Ocorrem. Mas tem que ver com alguma coisa que escrevi nos jornais, em tempos, e com uma expressão que um amigo usava muitas vezes: "De maneira que é claro...", rematando as conversas. Talvez tenha havido um acontecimento que tenha motivado alguma coisa, pelo menos um aspeto, mas sempre transfigurando e refigurando, a ponto de eu não me lembrar do que deu origem àquilo. Isto não cai do céu, é feito por homens e com base na sua experiência. E mesmo que essa experiência seja muito transformada, nunca deixei de lá estar. Às vezes descobrir onde é que é complicado.

Quando sabe que um livro está pronto? Não tem a tentação de estar sempre a alterá-lo, a emendá-lo?

A partir de certa altura corta-se. E é bom que se corte, porque de cada vez que abrimos o livro... Bom, eu evito sempre ler qualquer coisa que tenha escrito e publicado. Depois de publicado não leio nunca.

Porquê?

Porque vou irritar-me. Porque penso: hoje não escreveria isto assim. Como é que fui capaz de escrever isto, o que é que me deu? Por isso, está feito, está entregue, já não me pertence, não volto lá. E também porque somos várias pessoas ao longo da vida e mudamos de perspetivas e de pontos de vista. Mas não quero confrontar-me com isso, evito. Não gosto das situações que me perturbam e que me incomodam, evito-as. Chama-se "evitação", dizem os psicólogos, esta maneira de fugir às coisas. Admito que sou assim e que há certos problemas que prefiro deixar quietos. 

E os livros que não são seus, gosta de os revisitar? O que gosta de ler?

Depende, de vez em quando vou lá. Mas por alguma razão especial, ou porque há um livro que é mencionado e me interessa rever ou porque me lembro de alguma passagem que me interessa. Mas a nível de leitura sou completamente anárquico, à la fortune du pot, como dizem os franceses, é o que vier à mão. E leio o que me salta à vista a cada momento, pode ser um título, podem ser as mais diversas razões. E às vezes compro livros e não os leio, folheio apenas, outras vezes abandono a leitura porque não é aquilo que estou à procura num livro naquele momento. Não sei bem explicar, mas pode até ter que ver com o processo oculto da escrita. Mas posso dizer-lhe que já fui um leitor mais sôfrego do que sou hoje, hoje leio mais espaçadamente. Se calhar porque escrevo mais do que leio. Mas também não escrevo muito.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Para escrever é preciso ler muito ou é um mito, como o ter de sofrer para escrever bem?

Essa é uma velha questão. Costumo defender que os livros são feitos de muitos livros e que qualquer escritor deve ter um acervo de leituras que lhe permita evitar escrever o que os outros escreveram. Se queremos evitar a banalidade e o lugar-comum, temos de conhecer muita coisa e reconhecer imediatamente aquilo que já está dito. Mas admito que haja quem pense o contrário, que há uma espécie de inspiração que nos apanha... E às vezes acontece que jovens autores — olhe, o Almeida Faria, no meu tempo — que de repente aparecem com uma obra formada e que não podem, até pela idade que têm, ter um acervo de leituras muito grande. E de releituras. Mas há mistérios nestas coisas da arte e da literatura.

O que sente que tem mais hoje, aos 77 anos, e o que perdeu com o tempo?

Isso é muito difícil. Tenho uma acumulação de conhecimentos muito maior, muitas coisas esquecidas, mas que estão cá e que me formaram. E este prazer de ter netos [cinco], por exemplo, e de ter filhas crescidas [ambas escritoras] com quem já se pode conversar. Olhar também para as coisas com uma certa distância, saber que coisas a que se dava muita importância, afinal, não a têm. E um certo desprendimento, também. Há coisas que desaparecem, a ligação genésica desaparece, a vivacidade, a força. E a paciência. E depois vamo-nos preparando para aquilo que vai acontecer necessariamente e que sabemos que acontece com todos e que ninguém escapa. Mas, entretanto, vamos procurando tirar o melhor proveito.

A morte preocupa-o?

Não ganho nada em estar a pensar nisso. Há escritores que vivem obcecados, eu não. Quando acontecer, aconteceu. Não é coisa que me preocupe, que me tome os dias. Isso não é comigo.

Não é católico, mas é um homem de fé?

Fé significa confiança, fidúcia, não é? Não sou, sou um homem bastante desconfiado e reticente, digamos assim. 

Se fosse congelado hoje e descongelado daqui a 100 ou 500 anos, qual a primeira coisa que ia querer saber?

É uma boa pergunta... [Pensa] Como é que isto está, como está a sociedade. Estamos melhor? Suponha que estou numa cápsula e, passados 500 anos, acordo. Vai demorar algum tempo até me recompor... "Quem manda?", é esta a pergunta. Aí tem.