Aos que dominam de forma categórica e impoluta o seu ofício, influenciando centenas ou milhares de pessoas e transmitindo todos os seus conhecimentos às gerações vindouras, chamamos de mestres. Homens ou mulheres que trabalharam desde a tenra infância em busca de algo indizível, de qualquer força retirada a outras dimensões que lhes permitisse, nem por uns instantes que fosse, superar a sua condição de “homens” ou “mulheres” rumo a algo bastante mais abstrato, teológico. Seres comuns que pela sua perfeição deixaram de o ser. Mark Freuder Knopfler, nascido em Glasgow a 12 de agosto de 1949, é um desses casos: um homem que em criança queria uma, apenas uma guitarra, e chegou esta terça-feira à Altice Arena rodeado delas, mestre de todas elas.
Knopfler é – para quem não o sabe – considerado quase de forma unânime como um dos maiores guitarristas da história do rock, sobretudo pelo seu trabalho nos Dire Straits, os quais ajudou a formar e com os quais acabou no momento em que estes começaram a tornar-se, grosso modo, demasiado populares. Em itálico, porque é sua a expressão. Assim como foi sua a história do rapazito de desejo único, contada perante uma sala cheia enquanto um roadie lhe ia passando instrumentos para as mãos, as mesmas que agora dizem adeus.
Não foi anunciado como tal, mas este concerto fez e faz parte da sua digressão de despedida. O anúncio foi dado poucos dias antes, em Barcelona, e confirmado em Lisboa. Os mestres, sabemo-lo agora, também dizem adeus; também têm direito a olhar pela última vez os seus fiéis admiradores, antes de partirem rumo a uma merecida reforma, longe dos olhares mais indiscretos que a fama traz, longe do burburinho recalcitrante dos jornais e dos voyeurs de diferentes tipos, capazes de levar à loucura alguém que só quer a música, a nobre música, e nada mais.
Apresentado por um mestre de cerimónias que vestia a bandeira britânica, Mark Knopfler exprimiu o adeus por palavras e por essa mesma música que tudo diz, trazendo consigo os temas do seu último trabalho a solo, “Down the Road Wherever”. E foi com ele que começou, através do funk branco de 'Nobody Does That', passando depois para o chk chk chk quase country de 'Corned Beef City', de “Privateering” (2012), rodeado por uma banda numerosa que ali estava para o enaltecer, turma atenta àquele que enverga o cinturão preto.
Vimo-lo praticamente imóvel, contendo e expressando todas as emoções do mundo em 'Sailing to Philadelphia', o momento em que os aplausos e os telemóveis começam a pairar sobre a Altice Arena. Vimo-lo encetar a primeira “fuga” rumo aos Dire Straits quando a flauta apresenta 'Once Upon a Time in the West', spaghetti rock onde mostrou ao que vinha – grandes licks, riffs e solos de guitarra variados. E vimo-lo envelhecido, calvo, já sem a bandana que durante algum tempo o caracterizou (sendo que Mark Knopfler é uma de apenas duas pessoas no mundo que pôde usar um lenço na cabeça sem parecer pateta; a outra é Bruce Springsteen).
Não que a velhice o tenha impedido de dar um espetáculo coeso e grandioso, apenas ao alcance dos maiores entre os maiores. Atrás do repórter, alguém comenta: “grande música!”, em muitas das que Knopfler foi desenrolando ao longo da noite. 'Romeo and Juliet', por exemplo, ou a beleza acústica de 'Matchstick Man', ou ainda 'Heart Full of Holes', cujos versos soaram de facto a despedida: If one of us dies, love, I think I'll retire... [«Se um de nós morrer, meu amor, acho que me irei reformar».]
Até final, foi possível escutar a pura balada eighties que é 'Your Latest Trick', mais uma do repertório Dire Straits, a soturna 'Silvertown Blues' a dar lugar à gloriosa 'Telegraph Road' (com dezenas de pessoas a levantarem-se das suas cadeiras e a correrem para junto do palco), e um encore com o clássico 'Money For Nothing', já com meia casa a dançar e a assistir a um solo de percussão como ponto último de uma carreira que foi explosiva. 'Going Home', tema que escreveu para a banda-sonora de “Local Hero”, filme escocês de 1983, constituiu o (irreversível?) adeus de Knopfler ao público português, que voltou para sua casa duas horas de concerto depois e sem ter ouvido as outras todas, como 'Sultans of Swing'. Mas a um mestre não podemos pedir nada. A não ser aprender com ele.
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